07 Dezembro 2022
"A compreensível emergência de guerra não deveria ir tão longe, mesmo levando em conta o tradicional 'entendimento' entre a Ortodoxia e os poderes locais. Além disso, existem problemas jurídicos complexos porque a lei reconhece as comunidades paroquiais, mas não as instâncias superiores que não têm personalidade pública", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 05-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nós os chamamos de "danos colaterais": são os efeitos, não desprovidos de ambiguidade e caráter problemático, da guerra sobre as igrejas na Ucrânia.
Em 1º de dezembro, o presidente ucraniano, Volodymir Zelensky, anunciou a disposição do governo de controlar e limitar as atividades religiosas de comunidades e igrejas ligadas de alguma forma à Rússia que invadiu o país.
A intenção das disposições é eliminar a fonte mais importante de influência russa ainda ativa no país, que é reconhecida na Igreja Ortodoxa "pró-Rússia" do Metropolita Onufrio. Com as decisões contidas no decreto, "garantimos a independência espiritual da Ucrânia", disse Zelensky. O presidente mudou sua atitude em relação à Igreja de Onufrio.
Muito respeitoso e distante no momento da eleição – ao contrário da oposição aberta de seu concorrente Poroshenko, elemento decisivo para a remissão o tomo da autocefalia à Igreja de Epifânio por Constantinopla – Zelensky convenceu-se dos colateralismos culturais da Igreja "pró-russa" durante a guerra.
O decreto do governo é dividido em seis pontos. A previsão é apresentar ao parlamento dentro de dois meses uma lei que impeça qualquer atividade na Ucrânia por parte de organizações religiosas de alguma forma ligadas à Federação Russa.
Além disso, decidiu-se vincular ao governo o serviço estatal delegado às atividades religiosas e às relações étnicas, deixando de ser, portanto, uma autoridade autônoma. E ainda, fazer uma verificação dos fundamentos legais da gestão de igrejas e mosteiros, a começar pela célebre Lavra das Grutas de Kiev. Espera-se uma análise precisa dos estatutos da Igreja Ortodoxa pró-Rússia de Onufrio e uma verificação sobre colaborações ambíguas com o inimigo.
É possível iniciar penalidades econômicas para instituições e indivíduos considerados culpados de entendimento com o invasor. Não é a primeira vez que um projeto de lei contra a Igreja "pró-Rússia" chega ao parlamento. Mas agora o governo está envolvido, também com base em uma petição de mais de 25.000 assinaturas, que torna legalmente obrigatório o início de um procedimento parlamentar.
Decisões corajosas foram tomadas pelo Metropolita Onufrio e sua Igreja (considerada majoritária até o início da guerra).
Ele imediatamente denunciou a agressão russa criticando diretamente Kirill, convocou um conselho local para afirmar a autonomia de Moscou, censurou quatro bispos que se manifestaram a favor dos russos, modificou os estatutos e garantiu a fidelidade à nação dos 10.000 padres ativos em suas dioceses. Até decidir consagrar o sagrado crisma em Kiev, rejeitando também nisto a ligação com Moscou.
Mas as mais de 300 intervenções da polícia secreta nacional em muitos mosteiros e várias dioceses teriam demonstrado contatos sistemáticos com os serviços secretos russos e a posse de numerosas publicações favoráveis à ideologia do "mundo russo", defendia pelo patriarca de Moscou e pelo presidente Putin. Os padres e bispos dos territórios ocupados colaboraram extensivamente com o exército invasor muito além de seu dever pastoral.
Cerca de 30 padres estão sendo julgados, acusados de apoiar o invasor. Em recente pesquisa de opinião, a maioria da população estaria de acordo com a limitação das atividades das igrejas de Onufrio. Aliás, em algumas áreas territoriais as autoridades administrativas já se orientaram operacionalmente nesse sentido.
A tradicional e evidente proteção russa sobre a Igreja de Onufrio torna suspeitas outras Igrejas, especialmente aquela Autocéfala Ortodoxa e a Igreja Greco-Católica.
A organização, alguns anos atrás, de imensas procissões como prova da força da Igreja "pró-russa", a criação de organizações leigas financiadas como garantia para as comunidades locais, o duro confronto com a Igreja autocéfala com a qual Onufrio nunca abriu um diálogo, o distanciamento das reivindicações por democracia e independência amplamente compartilhadas entre a população dificultam hoje o diálogo e o entendimento.
A corrida de Onufrio para se distanciar de Moscou não é totalmente convincente, apesar de sua credibilidade e seriedade pessoal. Até agora não há reações críticas às decisões do governo por parte dos greco-católicos e da Igreja autocéfala.
Mas a intervenção do governo e do Estado nas Igrejas e na fé de numerosas comunidades é motivo de preocupação e não é isenta de questionamentos. A responsável pelo serviço estatal para a liberdade religiosa, Elena Bodgan, alertou que a censura às confissões religiosas poderia causar desestabilização social e se prestaria a possíveis abusos.
A compreensível emergência de guerra não deveria ir tão longe, mesmo levando em conta o tradicional “entendimento” entre a Ortodoxia e os poderes locais. Além disso, existem problemas jurídicos complexos porque a lei reconhece as comunidades paroquiais, mas não as instâncias superiores que não têm personalidade pública. Vias administrativas serão viáveis: suspensão ou cancelamento de contratos de locação para igrejas e mosteiros, penalidades econômicas para indivíduos e grupos, controles administrativos muito intrusivos, etc.
As rudes defesas vindas da Igreja Russa não ajudam. O porta-voz do patriarcado, Vladimir Legoida, denunciou a "perda de todo bom senso" e a violação dos direitos proclamados na Declaração Universal.
Pena que não exista uma única voz episcopal russa questionando o apoio acrítico de Kirill à guerra de invasão e a todos os seus crimes. Para o ex-presidente Dimitry Medvedev, “as autoridades ucranianas se tornaram inimigas de Cristo e da fé ortodoxa”. E o porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, falou em guerra contra a fé ortodoxa.
Do impasse dos pesados e compreensíveis condicionamentos da guerra, em particular para as Igrejas dos territórios agredidos, se pode sair com as referências supranacionais, ou seja, ao patriarca de Constantinopla e ao papa de Roma.
Taraise Petrouniak, arcipreste de obediência ao trono ecumênico, decano do distrito do sul da Espanha, dirigiu-se ao representante de Bartolomeu em Kiev, bispo Michel de Cumana: “Hoje somos testemunhas de atitudes arbitrárias contra a Igreja Ortodoxa Ucraniana (não autocéfala). Os supostos responsáveis por garantir a segurança dos cidadãos e o respeito aos direitos constitucionais maltrataram nas últimas semanas não só os leigos, mas também padres e bispos. É necessário prestar homenagem à humildade cristã do primaz e do rebanho da Igreja Ortodoxa Ucraniana (o Metropolita Onufrio) que, em tempos tão difíceis, continuam carregando sua cruz com dignidade com uma oração silenciosa de ação de graças, como os protagonistas do Evangelho colocando sua esperança unicamente no Senhor".
Do lado católico, cabe ao Papa Francisco tanto o apoio sincero ao povo ucraniano agredido injustamente como evitar confundir a liderança russa com o povo, não demonizar ninguém para salvaguardar o necessário diálogo, não cancelar os extraordinários valores humanos preservados pela tradição da Igreja Ortodoxa Russa. A guerra pode tornar-se uma péssima mestra mesmo para aqueles que a sofreram injustamente.
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Ucrânia: igrejas e doenças de guerra. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU