CELAM: uma Igreja sinodal em saída para as periferias

Foto: celsoluis | Cathopic

02 Dezembro 2022

"O que é preciso?! Dá vontade de dizer que todos nós precisamos partir daí, justamente daí, do lugar impensado de um novo esforço, nós que estamos acostumados a ter a última palavra e sempre saber o que fazer. Para nós, Igreja da Europa, é o lugar da bênção, do esforço entendido como bênção. Precisamos perceber que temos pouco a oferecer, mas esse pouco tem um valor imenso", escreve Maurizio Rossi, em artigo publicado por Settimana News, 30-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Para a Igreja da América Latina e do Caribe, o ano de 2021 representa algo mais do que um período intenso de trabalho sinodal extraordinário. Foram meses em que se tentou reunir algumas passagens significativas da vida recente desta Igreja continental em uma renovada síntese missionária e, em particular, as quatro (históricas) Conferências Gerais que caracterizaram o período pós-conciliar: Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), sendo esta última a essência da teologia pastoral e um retrato do que é e quer ser a Igreja latino-americana e caribenha.

A agenda sinodal, alinhada com a etapa de escuta, traçou os caminhos destes meses cheios de encontros e partilhas, marcados por um intenso esforço redacional que levou à produção de quase uma dezena de documentos de diversa natureza; um trabalho que culminou em outubro de 2022 com a publicação do volumoso texto intitulado Rumo a uma Igreja sinodal em saída para as periferias. Reflexões e propostas pastorais da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe,[1] que nada mais é do que "a sistematização do que foi expresso no diálogo entre os participantes em quase uma centena de grupos de trabalho". [2]

Na realidade, é muito mais, é um texto surpreendente. Redigido com a intenção de deixar uma marca viva na vida da Igreja latino-americana, a verdadeira força desse documento está em sua intuição de que, para recolher e dar conta da experiência efetiva do povo de Deus em caminho, eram necessárias muitas palavras para dizer e voltar a dizer, mesmo à custa de se repetir, porque a experiência, seja ela qual for, é multifacetada e como tal deve ser restituída.

Os temas centrais que se espera de um documento dessa natureza estão todos aí (os sinais dos tempos e os desafios de hoje, uma Igreja samaritana, centrada em Jesus e na sua palavra, uma Igreja sinodal e missionária cuja essência coincide com o convite a proclamar o Evangelho, sustentado pela surpreendente fecundidade do Espírito Santo...); e a longa série de propostas pastorais e linhas de ação expressa o desejo de recolher o máximo possível daquilo que é sugerido pelos grupos de base.

No entanto, merece ser mais uma vez ressaltado, o tom convicto de agradável simplicidade de todo o documento, bem longe do óbvio. Isso leva alguns comentaristas a dizer que a Primeira Assembleia se candidata a representar um ponto de descontinuidade na Igreja latino-americana, porque a partir de agora será difícil evitar a participação do povo de Deus nos vários momentos de organização, de assembleias e de tomada de decisão.

O convite profético do papa

O texto não se deixa apreciar como perfeito, longe disso; a própria tradução, pouco cuidada do ponto de vista redacional, permite perceber muitas dificuldades. Deixa-se apreciar, pelo contrário, por não ter cedido a linguagens abstratas e por ter acreditado corajosamente na possibilidade de poder transmitir o intransmissível, isto é, a substância singular de uma experiência (cf. n. 18-20). Isso leva a escrever que “esta Assembleia é uma das primeiras acolhidas institucionais da proposta sinodal do Santo Padre” (n. 2).

O documento é fruto de um trabalho iniciado alguns anos antes (cf. n. 9). A intenção era “realizar uma VI Conferência Geral do Episcopado. No entanto, profeticamente, o Papa Francisco propôs dar vida a um processo mais adequado ao momento histórico: realizar um encontro eclesial e sinodal, onde todo o povo de Deus pudesse participar e expressar-se”, [3] dando assim vida a uma entusiasmante “experiência sem precedentes” (n. 1).

As três partes do texto são estruturadas numa lógica de análise, de aprofundamento e de proposta pastoral.

O diagnóstico social e eclesial da primeira parte - Sinais dos tempos que nos desafiam e encorajam - procura perscrutar em profundidade a história presente, e procura a presença de Deus e a sua vontade no tempo que estamos vivendo (cf. n. 38).

A pandemia, tão transversal em termos dos âmbitos afetados e de pessoas envolvidas, desempenha o papel de “marco da mudança dos tempos” (n. 39).

A lógica do mercado, agora um poder pervasivo que responde apenas a si mesmo, gera miséria, violência e morte. O grito dos pobres invoca dignidade e reconhecimento.

Se a lista de nomes das várias crises inventariadas é ampla (ética e cultural, ecológica e hídrica, política e urbanística, educacional e religiosa, etc.), o olhar realista e, ao mesmo tempo, espiritual não se deixa enganar por um pessimismo mortal invencível, mas vislumbra sinais de esperança capazes de futuros possíveis. O âmbito dos novos protagonistas é dedicado aos jovens (n. 79-84), às mulheres (n. 85-87), às famílias (n. 88-90); às populações indígenas e afrodescendentes (n. 91-93).

Algumas reivindicações intensas e veementes do povo de Deus completaram o quadro diagnóstico sobre o universo intraeclesial: um novo lugar para a mulher na Igreja (n. 108-109), a formação dos leigos e – particularmente forte – a "necessidade de superar o clericalismo" (n. 96), assim como "necessidade imperiosa de reconhecer e tornar visível o sofrimento das vítimas dos vários abusos eclesiais, de consciência, de poder e sexuais" (n. 120-124). Esses são alguns dos apelos recolhidos na Assembleia, vivida no seu conjunto como um autêntico desejo de uma "Igreja encarnada e disponível, não entrincheirada nas suas próprias comodidades, mas em saída, porque tudo o que é humano deve ressoar no coração dos discípulos de Jesus " (nº 127).

A segunda parte – Uma Igreja sinodal e missionária ao serviço de uma vida plena – é concebida como um elo entre a primeira e a terceira: favorece o discernimento sempre complexo dos desafios do presente histórico e prepara a proposta.

“Desempenha essa função articulada por meio da fiel e criativa meditação teológico-pastoral-espiritual, que assume grandes linhas gerais compartilhadas de diversas maneiras na Assembleia, das apresentações aos grupos” (n. 32).

Confere ao texto uma estrutura coerente ao vincular, em chave pastoral, as duas seções que o compõem: “A primeira, de caráter histórico-pastoral, situa a novidade da Assembleia eclesial no caminho da Igreja regional, e mostra sua relação com a Conferência de Aparecida e o processo sinodal promovido pelo Papa Francisco.

A segunda seção tem um conteúdo teológico-pastoral de inspiração bíblica, com ênfase espiritual” (n. 134) sobre a Igreja como povo de Deus em vista da fraternidade dos povos. Uma Igreja a quem se pede aquele tanto (na verdade, aquele pouco) que basta para que o Espírito Santo possa agir na história.

O seu ponto forte é a dignidade missionária e discipular de cada batizado e a capacidade de saber “reconhecer a plena presença de Cristo na Eucaristia e descobrir também os pobres como sacramento de Cristo” (n. 204).

Daí o fundamento do convite a sair para as periferias, não só como indicação para deslocar geograficamente as práxis do anúncio, mas como convite a olhar o mundo a partir daí (cf. n. 203).

Para concluir, a terceira e última parte - Superabundância criativa em novos percursos a seguir - identifica, na esteira do Concílio Vaticano II, seis dimensões [4] como lugares concretos nos quais explicitar as linhas de ação pastoral, precedidas por uma retomada de alguns conceitos básicos, uma prática a que o documento já nos habituou. Sentido da ação evangelizadora, suas finalidades, modalidades de anúncio e catequese, encontro pessoal com Jesus Cristo como "critério fundamental para discernir e planejar toda atividade evangelizadora" (n. 244).

Primeiro anúncio, iniciação cristã, formação na fé; abrir o coração à sua dimensão espiritual originária... Muitos temas que indicam uma transbordante sensibilidade prática do povo de Deus e o pedido de discussão sobre como e o que fazer, desde as práticas litúrgicas e sacramentais até questões espinhosas sobre migrantes, refugiados, etc., e fechando sobre a questão ecológica que exige a promoção e formação de uma nova consciência e sua integração no ensinamento e na prática pastoral.

Cristãos capazes de ouvir o grito da terra e o grito dos pobres e de cuidar do homem, do cosmos e, claro, também de Deus, porque Ele também deve se sentir bem conosco.

O documento se encerra com a Mensagem aos povos da América Latina e Caribe e a Oração de consagração à Nossa Senhora de Guadalupe.

Um diálogo entre Igrejas continentais

Um diálogo entre Igrejas continentais sobre os caminhos sinodais percorridos é útil e estimulante. Os esforços que acompanharam – e ainda acompanham – a fase de escuta de nós, italianos e europeus, são também aqueles do povo latino-americano. O documento em questão não os esconde.

Para nós, porém, o esforço inicial foi um esforço suplementar, quando a palavra sinodalidade era derramada sobre pilhas de palavras já sem oxigênio e em estado de confusão. Pairava um grande ceticismo devido a práxis consolidadas que, ao longo do tempo, produziram muitas palavras e poucos efeitos.

Aqui entre nós, poucos acreditavam nisso no começo, e mesmo esses poucos declaravam um pouco de confusão. Talvez os mais críticos não tenham mudado de opinião: a estrutura vertical da Igreja, onde nada pode ser pensado sem uma bênção do alto, torna tal processo sinodal insensato porque nada de fundamental pode realmente mudar. A Amazônia é citada como prova.

Olhando para o exterior, no entanto, é positivo. Tem-se a impressão de estar em um mundo mais treinado que o nosso, de caminhar juntos; onde ainda se pode jogar, mesmo que se tenha pouco a oferecer. Aqui temos que aprender.

A título de exemplo, pode ser útil um olhar para os grupos sinodais das nossas comunidades cristãs, quando declaram com honestidade a difícil compreensão de algumas expressões, como "Igreja missionária", "Igreja em saída". A objeção é: em saída, mas para ir aonde? E de novo: não é isso que já fazemos? O que mais é preciso?

O que é preciso?! Dá vontade de dizer que todos nós precisamos partir daí, justamente daí, do lugar impensado de um novo esforço, nós que estamos acostumados a ter a última palavra e sempre saber o que fazer. Para nós, Igreja da Europa, é o lugar da bênção, do esforço entendido como bênção. Precisamos perceber que temos pouco a oferecer, mas esse pouco tem um valor imenso.

Não precisa ir até o outro para receber úteis feedbacks: isso pressupõe dissimuladamente que, os primeiros a falar, somos sempre nós. É preciso escutar muito mais e falar muito menos. Assim, talvez, o feedback, em vez de pedi-lo, seremos nós a oferece-lo, gratuitamente e quase sem perceber.

Notas

[1] CELAM. Rumo a uma Igreja sinodal em saída para as periferias: reflexões e propostas pastorais da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe. Bogotá, 2022, p. 144. A primeira Assembleia Eclesial foi realizada na Cidade do México em 2021, na última semana de novembro.

[2] Ibidem, p. 9.

[3] Ibid., p. 8.

[4] Estes são os nomes das seis dimensões indicadas: kerygmática e missionária; profética e formativa; espiritual, litúrgica e sacramental; sinodal e participativa; sociotransformadora; ecológica.

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