16 Mai 2022
Na edição de maio de 2022 da revista do Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho, Misión CELAM, dedicada ao 15º aniversário da Conferência Geral de Aparecida (inaugurada em 13 de maio de 2007), o cardeal Baltazar Enrique Porras Cardozo, arcebispo de Mérida (Venezuela), recorda o papel de liderança desempenhado pelo então cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, e a sua convicção de que aquela experiência o preparou e lhe deu autoridade para imaginá-lo como sucessor de Bento XVI.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Aparecida foi uma das experiências eclesiais mais densas da Igreja que peregrina na América Latina. Foi a quinta conferência geral do episcopado sub-regional, depois de uma longa e ampla preparação prévia.
A primeira coisa que eu gostaria de ressaltar foi o espírito de fraternidade, serenidade e comunhão em que o evento se desenvolveu. Aparecida, lugar de peregrinação nascido e desenvolvido em torno da devoção mariana, é um oásis de paz, com sabor popular, onde tudo gira em torno do santuário.
A quantidade de pequenos hotéis familiares, onde nós, bispos assistentes, nos hospedamos, permitiu ter contato direto com as pessoas, especialmente nos fins de semana. As celebrações tiveram um efeito positivo ao conectar as reflexões com a fé do povo que sempre nos acompanhou com alegria e esperança. Nós, bispos, não estávamos isolados, mas compartilhando, quase por osmose, os anseios dos fiéis.
O clima interno, a convivência entre os bispos do continente e os provenientes de Roma e de outras instâncias eclesiais do mundo inteiro, foi de fraternidade e proximidade. A tecnologia ajudou muitíssimo, interconectando todos os grupos “ao vivo”. Saíamos de cada reunião com os rascunhos prontos, sem interferências nem censuras.
Uma das instâncias mais importantes de eventos dessa natureza é a eleição da comissão de redação do documento final. Recaiu na pessoa do cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, junto com uma equipe de apoio.
Uma das virtudes do cardeal bonaerense era e é a sua discrição, alheio a todo protagonismo, o que se converteu em confiança e serenidade para toda a assembleia. Tudo foi feito à luz do dia, sem mudanças nem acréscimos que não surgiram dos grupos. Assim, surgiu uma liderança em quem esteve à frente de tal comissão, imperceptível naquele momento, pois não foi objeto de publicidade nem de reconhecimento público, mas que forjou uma referência obrigatória, serena e confiável naquele prelado, a quem devemos a unidade e a clareza do Documento Final.
Retomar o esquema tripartite próprio da tradição latino-americana (ver, julgar e agir) facilitou o trabalho. Na continuidade com a conferências anteriores, Aparecida enriqueceu o magistério latino-americano pela assunção da nova realidade social no início do novo milênio e pelos avanços da doutrina e da pastoral da Igreja universal do fim do século XX e início do século XXI.
No “ver”, assumiu-se a leitura da realidade a partir da condição de fé dos discípulos missionários como unidade indissolúvel. Somos discípulos antes que mestres e missionários desde o início do nosso compromisso batismal.
As sugestões e indicações metodológicas da comissão permitiram um avanço fluido e claro. Tudo isso tendo como pano de fundo os graves problemas de desigualdade e pobreza presentes no nosso continente.
As diversas escolas ou tendências da teologia pastoral latino-americana se amalgamaram e se enriqueceram. Avançou-se em temas como a religiosidade ou piedade popular, elevando-a à categoria de autêntica expressão de fé; o tema da ecologia foi desenvolvido mais amplamente, pois nas conferências anteriores ele esteve presente, mas de um modo um tanto marginal.
A eclesiologia latente em sintonia com a herança pós-conciliar abriu caminho para temas como a alegria de ser discípulos missionários, que se concretizou na missão continental; o chamado geral à santidade como condição de todo o batizado; a formação integral em nível pessoal e nas diversas experiências grupais, o profundo sentido de comunhão na Igreja, sem particularismos. Tudo isso fez parte do “julgar”, para desembocar no “agir”, a vida de Jesus Cristo para os nossos povos.
A missão evangelizadora como primeira tarefa, mas a partir da promoção da dignidade humana, em que se destacam alguns traços da teologia do povo, de caráter mais urbano, devido à concentração da população em cidades e megalópoles, em que o compromisso com a família, as pessoas e a vida, sob o pano de fundo da dilacerante realidade em cada um dos nossos países, incentivou a pastoral integral da fé e o serviço como prioridade aos mais fracos e excluídos. E não podia faltar o tema da cultura própria dos nossos povos.
Todo o documento exala um espírito de diálogo e de intercâmbio. Sem condenações destoantes, convencidos de que o substrato cultural dos nossos povos tem uma riqueza que provém da primeira evangelização e que não deve ser arrancada pela crescente secularização.
Quando comparamos Aparecida com a trajetória de Bergoglio, nos encontramos com uma profunda sintonia com o seu pensamento e ação. Desde o primeiro momento posterior, ele se tornou o impulsionador do que foi assinalado no documento conclusivo. O seu sentido eclesial de comunhão o enriqueceu com a reflexão e a práxis eclesiais argentinas.
Em casa e na Companhia de Jesus, Jorge Mario encontrou a sua vocação de discípulo missionário. A dura realidade dos primeiros anos do seu sacerdócio, marcados pelas ditaduras do seu país, temperou o seu espírito. O cardeal Quarracino intuiu que podia encontrar nele um bom apoio e ajuda, escolhendo-o como auxiliar e, mais tarde, pedindo ao Papa São João Paulo II que o nomeasse coadjutor.
Como resultado dos ataques do 11 de setembro, devido à ausência do cardeal de Nova York, ele teve que assumir a secretaria do Sínodo dos Bispos. O episcopado presente descobriu nele uma figura relevante e de transcendência para a Igreja.
O pré-conclave após a morte do papa polonês revelou-o como um possível candidato a sucedê-lo na sede de Pedro. Ele voltou para a sua Buenos Aires querida. Aparecida o catapultou perante seus pares latino-americanos.
Na preparação do sucessor de Bento XVI, com as exigências de profundas reformas na Igreja, ele foi o escolhido para cumprir essa missão, que é aquela que, em comunhão com seus eleitores, ele tem levado adiante nesta década.
A Evangelii gaudium, sua exortação apostólica, retoma a Evangelii nuntiandi e Aparecida, como ele mesmo assinalou, para dá-la como fruto suculento para o bem da Igreja e do mundo.
É a sua tarefa, que todos nós, especialmente aqueles que compartilham a herança latino-americana, temos a obrigação de acompanhar e potencializar.
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Aparecida: a conferência que fabricou um papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU