12 Agosto 2022
Os avanços que a France Insubmissa obteve em seu país foram tecidos de acordo com o modelo progressista do outro lado do Oceano. "A América Latina foi a primeira a quebrar a corrente do neoliberalismo", diz seu principal líder. Nem socialistas nem ambientalistas seguem esse caminho.
O artigo é de Eduardo Febro, jornalista, publicado por Página/12, 11-08-2022.
Durante várias décadas, a esquerda francesa viveu uma espécie de idílio e fascínio permanente pela esquerda latino-americana, seja ela de tradição revolucionária ou mais social-democrata. O idílio terminou na década de 1990 com as mutações da própria esquerda francesa, ou seja, quando o gauche deixou de ser verdadeiramente esquerdista e o Partido Socialista francês se converteu ao chamado social liberal. Os ideais foram diluídos nos índices da bolsa e a indiferença mútua atrapalhou a lua de mel de antes com tanta força que nenhum deles parecia se importar com o outro. A esquerda francesa deixou de dar sinais de convicção, mantendo aquele perfil paternalista ao mesmo tempo irritante e injustificado.
Em 2013, o então ministro das Relações Exteriores da França, o socialista Laurent Fabius, viajou para a Colômbia. Em Bogotá, conheceu o então prefeito de Bogotá, o atual presidente Gustavo Petro. O jornal da manhã Libération relata que durante essa reunião Petro disse a Fabius: “Durante muito tempo, na França, eles não entendem o que está acontecendo na América Latina. Também não é tão grave porque a esquerda francesa também não nos interessa."
Apesar disso, sempre persistiu na França um núcleo de esquerda que acompanhou de perto as profundas mudanças que ocorriam na América Latina e que preservou seus laços afetivos e ideológicos com uma América Latina que foi e continua sendo fonte de inspiração para o Esquerda francesa: as esquerdas latino-americanas vencem em contextos muito mais difíceis que a francesa, as esquerdas francesas perdem desastrosamente ou cometem suicídio político com suas mudanças de orientação (Partido Socialista) e suas disputas destrutivas.
Nesse contexto, é legítimo reconhecer que se há alguém que se manteve fiel e muito inspirado pela esquerda latino-americana, é o líder da França Insubmissa Jean-Luc Mélenchon: Argentina, Equador e México foram para Mélenchon as sementes da suas sucessivas propostas eleitorais. Mélenchon considera que a América Latina foi "a primeira a quebrar a corrente do neoliberalismo". Longe do romantismo guevarista, a esquerda latino-americana sempre mostrou aos franceses um caminho possível, e não o contrário.
Em 2012, em entrevista concedida ao Página/12 em Paris, Mélenchon disse: “Na verdade, peguei meus modelos da América Latina, me inspirei no que aconteceu lá. Por exemplo, a Frente de Esquerda é uma fórmula política que liga partidos muito diferentes. Agora temos até ambientalistas da franja mais radical. Na mesma Frente temos partidários do não-crescimento, partidários do crescimento e comunistas. Todos vieram para descobrir qual era o seu cruzamento comum. Neste caso, o modelo que posso evocar é a Frente Ampla do Uruguai. (…) A revolução cidadã é um projeto unificador porque inclui a ideia de poder cidadão. Essa palavra permitiu convergir tradições revolucionárias muito diferentes. Bem, eu tirei essa ideia do Equador. Tomei o caminho do confronto com o sistema midiático de Néstor e Cristina Kirchner. Aqui, na França, atribuíram esse estilo ao meu mau humor, às minhas dificuldades, mas na realidade não é assim: eles me manipulam e eu os manipulo. Agora eu os tenho em puro pão seco, assim como o ex-presidente Néstor Kirchner e a presidente Cristina Kirchner fizeram. Em suma, sou muito inspirado pela tradição revolucionária da América Latina. Nosso slogan é: ‘que se vayan todos!’ Peguei esse slogan da crise argentina de 2001”.
A relação ou os imaginários que alimentaram a esquerda francesa podem ser divididos em várias épocas: uma que vai da Revolução Cubana ao golpe no Chile. Por um lado, nesse período, parte da esquerda francesa rompeu com o castrismo devido ao apoio de Cuba à invasão da Tchecoslováquia pelas tropas da União Soviética (1968) e, posteriormente, devido ao julgamento do poeta Heberto Padilla (1971); por outro, nesse período ocorre a retomada do fascínio cujo ponto incandescente foi a eleição de Salvador Allende no Chile. Foi uma verdadeira revelação para a esquerda francesa, em particular para os socialistas, porque provou que a vitória era possível.
A historiadora Judith Bonnin lembra que "a eleição de Salvador Allende demonstrou que uma esquerda unida poderia vencer uma eleição no contexto da Guerra Fria". A outra fase durou durante os anos da ditadura, há uma terceira que se ativa com o fim das ditaduras e uma quarta cheia de entusiasmo que abrange as primeiras eleições democráticas após os golpes.
A quinta começa com os anos pós-liberais, ou seja, com as vitórias de Néstor e Christina Kirchner na Argentina, de Chávez na Venezuela, de Lula no Brasil, de Rafael Correa no Equador, de Evo Morales na Bolívia, de Tabaré Vázquez no Uruguai. Dom Fernando Lugo no Paraguai e o candidato da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (ex-guerrilheiro) em El Salvador como presidente do país.
A última etapa foi agora reconfigurada com a vitória do peronismo na Argentina, a muito provável vitória de Lula no Brasil, a eleição de Andrés Manuel López Obrador no México, de Gabriel Boric no Chile e, sobretudo, a de Gustavo Petro na Colômbia. Estes três últimos foram obtidos em terrenos muito duros, trágicos e imóveis, dominados por direitas criminosas, através de pactos entre movimentos mais jovens, ambientalistas e onde a presença de mulheres é abundante.
O passo decisivo na percepção da esquerda latino-americana foi dado, mais uma vez, por Mélenchon quando, diferentemente de outros líderes da esquerda francesa, deixou de ver a América Latina como um "lugar ideal" e uma metáfora, um laboratório, para, sim, copie seus exemplos de sucesso. Em 2007, Mélenchon rompeu com o Partido Socialista, dentro do qual liderou uma corrente rebelde. Ele o fez por meio de um livro (En quête de gauche) no qual, justamente, já colocava a América Latina como "o posto avançado da esquerda no mundo". A América Latina tem sido um "reidratador" das ideias do gauche francês e, também, um regulador de suas relações internas de poder.
Nos anos 1980, sempre que o falecido presidente socialista François Mitterrand (1981-1995) tinha um problema sério com sua esquerda, ele o corrigia com uma viagem ou um gesto voltado para a América Latina. Algumas vezes foram gestos puramente oportunistas, outras, por outro lado, decisões que mudaram a história, como quando, junto com o México, Mitterrand pediu na ONU que a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional fosse tratada como um interlocutor político pleno e não como um mero grupo guerrilheiro porque constitui "uma força política representativa" (agosto de 1981). Embora possa não parecer muito, naqueles anos sangrentos das guerras na América Central e do nascente reaganismo nos Estados Unidos, o gesto franco-mexicano desempenhou um papel importante no que viria a acontecer mais tarde (acordos de paz).
Hoje, apesar da espetacular progressão do progressismo na América Latina, o consumo de imaginários é paradoxal: a esquerda latino-americana se emancipou da perspectiva europeia e seguiu seu próprio caminho, enquanto a esquerda francesa, com exceção de Jean-Luc Mélenchon, só olham para o umbigo e as falhas. Os partidários da esquerda francesa se comovem com a evolução de suas irmãs latino-americanas, os líderes não se importam. Os ambientalistas nem se detêm em observar (Chile, Colômbia) o como e o porquê de duas vitórias que nem eles sonham na França. Os socialistas já traíram até suas memórias e, apesar disso, no que diz respeito ao Chile, comemoraram a existência de uma "esquerda renovada". Durante a última campanha eleitoral, a candidata à presidência do PS e atual prefeita de Paris, Anne Hidalgo, disse que "quando você é de esquerda, uma parte do nosso coração está na América Latina".
Muito pouco para tantas paixões passadas. E, no entanto, para onde quer que se olhe, não há, hoje, outro exemplo semelhante ao da esquerda latino-americana. Os europeus não estão interessados em olhar muito de perto. É muito provável que nesses sucessos eles vejam as águas escuras de seus próprios fracassos e traições permanentes. Jean-Claude Dupont, militante da França Rebelde nos bairros difíceis do norte de Paris, admite que, “fora de Mélenchon, socialistas e ambientalistas me decepcionaram. A liderança socialista dá vontade de chorar. Ele está longe de nós e de seus militantes. Não há caminho de volta possível, quando você está à esquerda sempre tem um Che Guevara gravado no coração”.
Como em quase todos os outros meios de comunicação da Europa, as vitórias da esquerda latino-americana deram origem a editoriais moralistas, cheios de conselhos paternalistas, advertências e atormentados por horizontes obscuros. A direita, por sua vez, perdeu seu referente: não pode mais dizer que a esquerda latino-americana é chavista. E os socialistas não podem mais apresentar esse argumento para reduzir a influência de sua ala esquerda.
Só Jean-Luc Mélenchon manteve viva a chama de uma relação e de uma articulação entre as duas esquerdas. Os sucessos que a Francia Insubmissa obteve na França foram tecidos segundo o modelo latino-americano. Da Argentina ao México, as esquerdas da América Latina têm muito mais a dizer e mostrar aos da França do que você a eles. A relação se inverteu e nessa mudança os ecologistas e os social-democratas permaneceram em silêncio.
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Como Jean-Luc Mélenchon, inspirado pelo progressismo latino-americano, alcançou seus sucessos na França - Instituto Humanitas Unisinos - IHU