Agora que o conflito armado poderia realmente se ampliar, estendendo-se a cenários não fronteiriços e com um perigo extremo, muitos ambientes começam a olhar com maior interesse para uma possível mediação vaticana. No entanto, a mediação do papa não precisa recolher meros interesses, mas ser compreendida e assumida intimamente.
O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 25-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu começo um pouco a partir de mim mesmo. Eu me perguntava: como é possível que aquilo que uma vez me parecia sedutor em Francisco hoje me parece desvantajoso? E ainda me pergunto: como é possível que aquilo que para muitos parecia inaceitável por parte de Bergoglio hoje lhes parece convincente?
Cito alguns fatos.
Após a horrível ação terrorista do Charlie Hebdo, a França disse estar orgulhosa de ser o país “de Voltaire e da irreverência” – como afirmou a ministra da Justiça Christiane Taubira –, um país sem fronteiras para a liberdade de expressão. “Podemos desenhar tudo, inclusive o profeta.”
Embora eu também seja de índole irreverente, fui seduzido pela posição oposta do papa. Em um discurso firme sobre a defesa da liberdade de expressão, Francisco disse: “É verdade que não se pode reagir com violência. Mas se o Dr. Gasbarri (Alberto Gasbarri é o organizador das viagens papais, nas visitas apostólicas ele sempre aparece ao lado do papa) diz um palavrão contra a minha mãe, deve esperar um soco”.
Como ninguém ousou dizer que o papa estava do lado do ISIS naquele momento, muitos tentaram adoçar a pílula. Aquela mensagem é semelhante ao que Francisco está dizendo repetidamente nestes dias de guerra: afirmar que Moscou se sentiu provocada pela expansão da Otan não significa tomar partido pelo lado de lá. O papa nunca fez isso.
Francisco, portanto, faz simples constatações que desviam a atenção do outro para mim mesmo, para nós mesmos. O que a minha consciência diz? Como agimos em consequência? Fazer essas operações mentais honestas não tem nada a ver com questionar o direito de defesa do agredido: quem ouve a própria mãe ser insultada sente a agressão; mas isso não descarta que a mãe possa ter feito algo para provocar esse insulto.
Por ocasião do discurso sobre o Charlie Hebdo, não pensei nem um pouco em uma possível proximidade do papa aos terroristas, embora tenha intuído que ele estava nos indicando o caminho para realmente derrotá-los. Isso me entusiasmou.
Sobre Kiev e sobre o que lá ocorreu, não percebi a mesma emoção, pelo menos com a mesma certeza. E tenho a sensação de que aqueles que o criticaram em relação ao Charlie Hebdo e o estão exaltando em relação a Kiev sofrem da mesma limitação que eu. O problema, portanto, é do papa, ou é um problema meu, nosso e de todos aqueles que o criticam?
Eu acredito que se trata de um problema meu, nosso e de todos. Tento dizer ainda aquilo que me diz respeito. Francisco condenou firmemente todas as formas de violência de inspiração religiosa. Da mesma forma, defendeu o direito dos povos à autodeterminação, acrescentando que entendia bem por que a Ucrânia pode e deve se defender.
A defesa da Ucrânia pelos ucranianos é a defesa do direito deles de serem eles mesmos, autônomos e soberanos, porque assim o desejam. Eles estão dizendo isso não agora, mas desde bem antes de 2014, desde quando, após a queda do Muro de Berlim, eles se expressaram, com um referendo popular, em 1991, pela independência em relação a Moscou: passaram-se mais de 30 anos, e não me parece que eles tenham mudado de ideia, muito pelo contrário!
O ponto a que a postura de Francisco pretende chegar está na finalidade das nossas ações. A partir das nossas raízes. Está no fato de que a verdadeira finalidade é a justiça e a paz para a qual todos, em palavras, concordam, mesmo aqueles que estão em guerra. Então, o que significa querer “a paz”?
Significa que, assumindo o lado de defesa da Ucrânia, devemos nos precaver em relação a sentimentos de ataque e de humilhação da Rússia, assim como, assumindo o lado dos agredidos pelo terrorismo, devemos nos precaver de querer atacar e humilhar todo o Islã. Em vez disso, podemos começar por nós mesmos, reconhecendo dentro de nós aquela fratura que nos aproxima dos métodos de Putin e do de al-Baghdadi.
Pensar nisso, dizer isso com franqueza, admiti-lo só pode induzir os muçulmanos a se afastarem – todos eles – dos tipos de al-Baghdadi, ou os russos a se afastarem de Putin em vez de Medvedev. O caminho da paz passa por uma luta interior. Sem, no entanto, deixar as vítimas abandonadas ao seu destino.
No dia do esquecido discurso sobre o horror do Charlie Hebdo, Francisco, na minha opinião, quis dizer aos verdadeiros muçulmanos: “Nós não somos melhores do que vocês, então vocês também podem reconhecer o erro daqueles que matam em nome de Deus”.
Hoje ele quer dizer o mesmo aos verdadeiros cristãos russos: “Nós não somos melhores do que vocês, então vocês também podem reconhecer o erro daqueles que invadem outro país”. O importante é não se considerar melhor. Só isso pode levar os outros – sentindo-se compreendidos por seres humanos frágeis – a reconhecerem o próprio erro, assim como quem renuncia a se achar melhor. Achamos que somos melhores quando não reconhecemos que caímos no mesmo erro que o outro.
Até os cristãos mataram em nome de Deus, até o Ocidente agrediu países soberanos. Este Ocidente, então, pode hoje defender confiavelmente a Ucrânia, não porque acha – desde sempre – que está certo, mas porque simplesmente entendeu que errou muitas vezes: por isso, pode se oferecer para encontrar uma ordem mutuamente justa.
Na minha opinião, Francisco está nos dizendo que a paz se faz com a autocrítica, de todos os lados. Só assim quem erra pode se sentir entendido, reconhecido na humanidade do seu erro que está, como sempre, na natureza agressiva do agir. O mecanismo agressivo começa em quem se considera melhor do que os outros: é um discurso que, em maior escala, leva à síndrome dos nacionalismos que veem uma missão especial na história do mundo confiada – precisamente – à nação: à própria.
Francisco está tentando comunicar de modo muito simples – para muitos, simples até demais! – uma substância, por si só, muito simples. As abordagens ideológicas apagam apenas as próprias culpas e, portanto, negam a realidade: a abordagem realista de Francisco, partindo de uma autocrítica saudável, quer tornar possível o caminho da autorreflexão também para o outro.
São as ideologias e os interesses partidários que agora ocultam isso com um véu. Tomemos os pacifistas. Eles ocultam isso com um véu porque a paz deles é muitas vezes sinônimo de uma quietude sem perturbações, enquanto Francisco induz um justo grau de inquietação nas nossas consciências.
Evidentemente, os conflitos alteram ao máximo a quietude pessoal e coletiva. Isso pode levar a uma fácil deriva: “Que vença o mais forte, e o outro se submeta!”. Ao que a voz pode responder imediatamente: “O mais forte é o amigo que estou chamando para o meu lado”. Tremendo!
O que, então, significa “guerra” para Francisco? Significa agressão, certamente não defesa. A cultura agressiva produz confrontos armados. Alguém pode dizer que está imune? Repudiar a guerra significa repudiar a agressividade, a raiva de quem reage com um soco a quem insulta até a mãe.
O nosso esforço para sair do círculo vicioso não é se fechar, afirmando que todos podem insultar quem quiserem. Comecemos a renunciar a considerar a liberdade como um direito e comecemos a entendê-la como um dever para com os outros. Francisco faz um esforço enorme nesse sentido, removendo os defeitos – que existem – também na vítima – mesmo na ucraniana – pedindo a quem a defende que a defenda para o próprio bem dela, não para o seu! Como se ele dissesse: que o teu fim não seja reafirmar a sua maior força, mas esclareça a você mesmo as incompreensões de ontem para obter o respeito aos direitos invioláveis de hoje!
A paz de Francisco não é submissão do fraco à arrogância do forte. Mas também não é a passagem para outra arrogância. Por isso, ele está pedindo para admitir claramente a tentação da vontade de poder que está por toda a parte, para induzir o outro a renunciar à sua.
A mediação de Francisco – já escrevemos isso muitas vezes – consiste na multipolaridade, não como um equilíbrio entre impérios e poderes regionais, uns contra os outros armados pela força do ódio, mas sim como uma busca tenaz e fatigante pela composição dos diversos interesses.
As suas palavras não podem ser curvadas a nenhum interesse. Os interesses mais sutis estagnam nas almas que buscam unicamente a própria quietude ou o mero retorno pessoal e coletivo.