09 Junho 2022
"Trípoli fica a exatamente 1.000 quilômetros de Roma. Kiev quase 1.800. A Itália está enviando armas para a Ucrânia. Também para a Líbia. No primeiro caso, para apoiar o exército que combate a agressão de Moscou. No segundo, para impedir que refugiados e migrantes cheguem às nossas costas", escreve Nello Scavo, repórter internacional, em artigo publicado por Avvenire, 08-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depende da geografia? Ou de algumas variáveis cromáticas? Quanto mais escura a epiderme, mais distante nos parece sua sorte, a ponto de pagar do nosso próprio bolso quem se encarrega de mantê-los fora do caminho?
Mohamed era um refugiado. Ele havia escapado de Darfur, não exatamente um lugar tranquilo. Ele sonhava com a Europa, mas também ficaria satisfeito com uma transferência para outro país africano seguro encontrado pela ONU. Em vez disso, ele ficou trancado na Líbia. Torturado e abusado, como muitos. Mohamed não aguentou mais se prestar aos jogos dos algozes do Estado pagos em euros. Ele pegou uma corda, deu a volta no pescoço. E se deixou cair. Ele tinha 19 anos.
Trípoli fica a exatamente 1.000 quilômetros de Roma. Kiev quase 1.800. A Itália está enviando armas para a Ucrânia. Também para a Líbia. No primeiro caso, para apoiar o exército que combate a agressão de Moscou. No segundo, para impedir que refugiados e migrantes cheguem às nossas costas. Mohamed era um deles. Ele vinha de uma província de Darfur, região de carnificinas para as quais foi aberto um processo em março, em plena crise ucraniana, perante o Tribunal Penal Internacional de Haia. Mohamed estava no campo de prisioneiros de Ain Zara, um dos mantidos pelas autoridades generosamente apoiadas por Roma e Bruxelas.
A justiça internacional também é bem-vinda em dias alternados. Quando Karim Khan, o novo promotor de Haia, enviou investigadores para a Ucrânia, as assessorias de imprensa de líderes políticos e chefes de governo europeus tiveram que trabalhar horas extras para enviar declarações às agências de notícias, inundar as redes sociais com comentários, dar entrevistas em favor da justa causa contra os crimes de guerra cometidos na Ucrânia.
Quando, nos mesmos dias, novamente Khan entregava seu relatório sobre a Líbia ao Conselho de Segurança da ONU, a reação foi de silêncio. Não por indiferença. Mas para deixar cair as acusações. No entanto, era apenas abril: "Os abusos contra os migrantes - dizia o relatório de Haia - podem ser qualificados como crimes de guerra e crimes contra a humanidade." Para que não houvesse dúvida sobre a interpretação correta, Khan falou em "crimes cometidos em centros de detenção". Estruturas oficiais sob controle do governo. Ain Zara está entre os principais. São detidos aos milhares, cercados pela polícia e entregues ao Departamento de luta contra a imigração. Homens, mulheres e crianças. Não faz diferença.
E não há tempo para se escandalizar diante dos abusos sofridos pelos últimos da fila. Suas guerras também nos parecem distantes. Pouco importa se as armas usadas lá também têm marcas que nos são familiares. Vamos tomar o Darfur, a região do oeste do Sudão que não conhece um único dia de paz desde 2003. Não que as coisas fossem melhores antes, mas a guerra declarada às minorias pelo regime predominantemente árabe do presidente Bashir - procurado por Haia, capturado pelo novo governo de Cartum, mas ainda não entregue ao tribunal - foi oficialmente registrada entre os conflitos esquecidos.
Mapa de Darfur. (Foto: Brasil Escola)
"Perdoe-nos, Mohamed, se traímos a fraternidade em relação a você e a todas as outras pessoas migrantes, rejeitadas na Líbia e deportadas para os campos de concentração sob nossa responsabilidade", comentou Mattia Ferrari, o padre que acabou sob a tutela das forças da ordem por causa das ameaças recebidas de círculos próximos aos traficantes e às autoridades líbias. Será que a sua morte "sacudirá nossas consciências desse sono forçado", se pergunta Padre Mattia. E já seria alguma coisa se Kiev e Trípoli, aos nossos olhos, nos parecessem à mesma distância.
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Morrer refugiado e suicida aos 19 anos. Trípoli vale como Kiev. Artigo de Nello Scavo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU