06 Junho 2022
A guerra na Ucrânia e a onda sórdida de morte, dor, desenraizamento, orfandade e crise, desencadeada pelo avanço da Rússia, colocam mais uma vez entre as cordas o papel do homem. Nestes tempos sombrios da humanidade, é urgente resgatar as ideias profundas de Günther Anders sobre esses conflitos, seus desastres e o uso ou abuso das tecnologias.
A reportagem é de Mariela León, publicada por Cambio 16, 02-06-2022. A tradução é do Cepat.
Anders (1902-1992) é um dos maiores pensadores da modernidade tecnológica. A obra do chamado “filósofo da era atômica” adquiriu uma aura profética em seu momento. Anos depois, torna-se atual e, lamentavelmente, confirma-se em nossos dias.
A Sociedade Internacional Günther Anders destaca, em seu site, que certa vez o intelectual e ensaísta disse que, na verdade, não tinha uma biografia, mas simplesmente biografias. “Segmentos da vida que estão conectados entre si em diversos graus: Primeira Guerra Mundial, Hitler, exílio em Paris e na América, Auschwitz, Hiroshima, Guerra do Vietnã e Chernobyl” foram marcas decisivas na extraordinária vida de Anders, que abarcou o século XX.
Ele nasceu em uma família judia polonesa, seu pai era um renomado psicólogo infantil, William Stern, criador do conceito de quociente intelectual. Günther adotou o pseudônimo “Anders” quando trabalhava como redator de notas culturais no Berliner Börsen-Couroier, atendendo ao conselho do editor. Em alemão, “anders” significa justamente “diferente”, “outro”.
Aos 16 anos, Anders (ainda Stern) foi soldado na Primeira Guerra Mundial, conta Rubén H. Ríos, doutor em filosofia e escritor do portal Perfil. Estudou filosofia na Universidade de Freiburg, onde foi aluno de Husserl e Heidegger. Pertencia ao círculo de seus discípulos judeus: Arendt, Jonas, Löwith, Strauss.
Günther Anders se doutorou em 1923 sob a orientação de Husserl. Em seguida, publicou escritos filosóficos, jornalísticos e literários em Paris e Berlim. Em 1929, casou-se com Hannah Arendt, escritora e teórica política alemã, de quem se separou sete anos depois.
Durante esse período, publicou seu primeiro livro de filosofia (de natureza fenomenológica). E o romance Las catacumbas molusias, composto por narrativas sobre um país imaginário, Molusia, governado por um poder totalitário, ao qual Anders sempre iria se referir em seus ensaios posteriores. Alguns caracterizados por um magistral estilo irônico.
Inquieto diante dos novos desafios éticos implicados nos avanços técnicos desenvolvidos após a Segunda Guerra Mundial, foi pioneiro da filosofia da técnica e dos meios de comunicação. Sua preocupação com a “destruição da humanidade” o conduziu pelo caminho do pacifismo militante. Atuou como cofundador do movimento contra a bomba atômica.
Por muito tempo, o trabalho de Anders permaneceu desconhecido no mundo de língua inglesa. Talvez por causa do que Herbert Marcuse descreveu como seu “pessimismo crítico implacável”, avalia Audrey Borowski, em um ensaio sobre o filósofo polonês para AEON. Ela é pós-doutoranda no MCMP, da Universidade de Munique. Também é pesquisadora associada na Universidade de Oxford.
Contudo, comenta, Anders prenunciou temas centrais abordados posteriormente pelos filósofos Jean-Luc Nancy, Bernard Stiegler, Jean-Pierre Dupuy e Zygmunt Bauman. Recentemente, ganhou nova atualidade e relevância.
Alarmado por alguns dos efeitos sociais do novo mundo fantasmagórico que havia ganhado forma ao nosso redor, Günther Anders se dispôs a dissecá-lo e a descobrir como ele nos habituou e, inclusive, nos levou a abraçá-lo.
É bastante popular a correspondência que manteve, em 1959, com o piloto de avião encarregado de avaliar os efeitos da bomba atômica lançada sobre Hiroshima, Claude Eatherly, internado em um hospital psiquiátrico, e que foi publicada como Burning Conscience (1961), sendo traduzida para o espanhol como El piloto de Hiroshima. Más allá de los límites de la conciencia.
Anders trocou o estilo acadêmico de seus professores Husserl e Heidegger por um estilo mais acessível. Deteve-se em considerar as realidades históricas como objetos filosóficos de pleno direito. Auschwitz e Hiroshima, em especial, com sua produção de mortes em escala industrial, marcaram pontos de inflexão no pensamento de Anders. Essas catástrofes foram possíveis graças ao progresso da ciência e a tecnologia. Progresso que colocou em perigo a própria existência de nosso mundo.
O advento da era nuclear havia transformado a paz em perpétua preparação para a guerra e em uma inversão interessante da afirmação de Carl von Clausewitz de que a guerra é uma continuação da política por outros meios.
Anders lastimou a cegueira coletiva dos estrategistas e políticos, sua falta de consciência ao buscar instrumentalizar a ameaça de aniquilação para fins políticos. Uma aposta que dependia de sua própria ignorância.
Em inícios dos anos 1940, conforme a tradução de Audrey Borowski, escreveu: “Nenhum de nós tem um conhecimento condizente ao que pode ser uma guerra atômica. O que significa que, neste campo, ninguém é competente e que o apocalipse está, portanto, por essência, nas mãos dos incompetentes”.
Escreveu ainda: “O uso moderno da energia nuclear varreu a distinção entre civis e militares e tornou a possibilidade de um desastre onipresente. Cruzou-se irremediavelmente um limiar quando a humanidade, deliberadamente, colocou uma espada sobre sua cabeça e criou as condições para a sua autoaniquilação”.
Para Günther Anders, aponta Borowski, os desastres do século XX foram simplesmente o resultado lógico de um processo pernicioso que já estava em andamento há muitos anos. Isto implicava a exclusão gradual da humanidade de todos os processos de produção e, em última análise, do mundo criado por eles. Nesse sentido, a verdadeira catástrofe que Anders esperava tornar “visível pela primeira vez” estava na transformação da condição humana.
Uma transformação que havia se tornado tão naturalizada e imperceptível quanto destrutiva. A bomba atômica era, portanto, o último emblema de uma força sobrenatural e perturbadora, canalizada por objetos tecnológicos complexos. Ela demonstra que quanto mais cresce o “nosso” poder tecnológico, menores nos tornamos. Quanto mais incondicional e ilimitada for a capacidade das máquinas, mais condicionada será a nossa existência.
Como sua primeira esposa, a filósofa Hannah Arendt, Anders se dedicou a pensar sobre o retrocesso da moralidade humana e a disposição do homem em suspender sua capacidade de reflexão, para se despedir de sua sensibilidade e empatia. Nenhuma tarefa era mais urgente do que examinar esses processos “inscritos no próprio coração de nossa modernidade técnica”, o que significava que “a repetição do monstruoso não só é possível, mas provável”.
Algumas das previsões de Günther Anders são perturbadoras em sua presciência (conhecimento das coisas futuras) de como os dispositivos e as máquinas conseguem mediar nossos pensamentos, debates, ideias e até mesmo relações, enchendo nossas mentes com uma frivolidade viciante e pacificadora, comenta Borowski.
Dirigir massas à maneira de Hitler se tornou supérfluo, caso se almeje despojar o homem de sua personalidade (e até deixá-lo orgulhoso de ser um ninguém). Não é mais necessário afogá-lo dentro da massa. Nenhuma degradação do homem é mais eficaz do que aquela que parece preservar a liberdade da personalidade e os direitos do indivíduo. Cada um se submete em separado ao processo de “condicionamento”, que funciona tão bem nas gaiolas onde os indivíduos estão agora confinados, apesar de sua solidão, em milhões de unidades isoladas.
Esse tratamento é discreto, pois é apresentado como uma diversão. Esconde de sua vítima os sacrifícios exigidos e a deixa com a ilusão de uma vida privada ou ao menos de um espaço privado.
Encheremos a mente das pessoas com o que é fútil e divertido. É bom evitar que a mente pense através da música e as conversas incessantes. A sexualidade será colocada à frente dos interesses humanos, como tranquilizante social. Nada melhor do que isso.
Em geral, garantiremos acabar com a seriedade da vida, ridicularizar tudo o que é muito valorizado e defender constantemente a frivolidade, para que a euforia da publicidade se torne o padrão da felicidade humana e o modelo de liberdade.
Nossa “cegueira diante do apocalipse”, que segundo Anders caracteriza a Terceira Revolução Industrial, nos permite “fazer planos e viver como se tudo... fosse continuar como antes”.
Outro conceito fundamental em Günther Anders é o de “vergonha prometeica” (prometheischer Scham), destaca Rubén H. Ríos. Refere-se ao sentimento do homem tecnológico que descobre seu “desnível prometeico”, em relação a Prometeu, e que ao mesmo tempo confessa a vergonha diante de sua própria origem incalculável e atávica. Resultado de uma dinâmica espontânea, diferente e oposta ao processo do objeto produzido pelas tecnologias como calculável e perfectível, o corpo humano é transitório e rígido, falível e dificilmente reformável.
A vergonha prometeica favorece a reificação do ser humano, que se compara com os entes tecnológicos e busca diminuir a distância em relação a eles. Então, transforma seu corpo por meio de tecnologias de engenharia humana.
No segundo volume de sua obra magna “A obsolescência do homem”, Anders reflete sobre a entrada da humanidade em uma trans-história. Se a era atômica marca o limiar do apocalipse, o tempo de espera acabou e não há mais futuro.
Esta época do fim da história não constitui uma fase que será sucedida por outra, mas, sim, um tempo final (Endzeit). Na verdade, um tempo intermediário e indeterminado antes do evento apocalíptico.
César de Vicente Hernando, teórico da literatura e figura fundamental do teatro político na Espanha, também escreveu sobre Günther Anders.
Disse que entre os assuntos fundamentais de suas obras está a obsolescência do ser humano em um mundo regido pelas máquinas: a televisão como produção da realidade. A imagem como matriz da verdade. A vergonha diante da perfeição de dispositivos, cuja repetição os torna sempre novos. A manipulação genética como promessa de uma futura felicidade.
E a possibilidade da aniquilação total da humanidade, esboçada com o uso de bombas atômicas. O planejamento técnico do assassinato de milhares de homens e mulheres nos campos de extermínio nazistas e a ameaça atômica. Todos constituem os grandes temas de um século XX que continua em nossos dias.
Nos anos 1960 e 1970, Günther Anders, junto com Heinrich Böll, o bispo Scharf, o teólogo Gollwitzer, o filósofo Ernst Bloch e outros lideraram o grande movimento pacifista alemão contra o estacionamento de foguetes atômicos norte-americanos em território alemão. Também estiveram nas grandes ações pacíficas contra as usinas atômicas.
Em 1983, Anders recebeu o Prêmio Theodor Adorno, a mais alta premiação da filosofia alemã. Foi em Frankfurt, na Igreja de São Paulo, símbolo da Revolução de 1848. Coube ao prefeito daquela cidade, um democrata-cristão, Walter Wallmann, justamente um inimigo mortal das ideias do filósofo, entregar-lhe esse prêmio.
O político disse: “Homenageamos, aqui, o filósofo Günther Anders porque ele nos contradiz, adverte constantemente, nos abala”. Anders lhe respondeu: “Sou apenas um conservador ontológico, em princípio, que busca fazer com que o mundo seja conservado para poder mudá-lo”.
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Günther Anders e a guerra: “O apocalipse está nas mãos dos incompetentes” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU