05 Mai 2022
Enquanto Francisco se diz disposto a ir até Moscou em missão de paz, uma carta de “muitas vertentes culturais e religiosas” também lhe sugere outros caminhos, porque, em um momento tão difícil, deve-se pensar e tentar o impensável.
Conforme relatado pelos jornais Avvenire e Il Fatto Quotidiano, e pelos sites FQ Extra e Il Manifesto, foi enviada ao papa a carta abaixo, assinada por mais de 300 pessoas e ainda aberta a outros signatários.
A carta foi publicada em Chiesa di tutti, Chiesa dei Poveri, 04-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Santidade, Papa e Pastor, Pai e Irmão nosso Francisco, ou como cada um de nós prefira chamá-lo a partir de diferentes vertentes culturais e religiosas.
Conhecendo os seus árduos esforços pela paz e unidos à ânsia de milhões de pessoas que anseiam construir um mundo de justiça, concórdia e direito, desejamos lhe expressar a nossa angústia pela má e letal forma de convivência que está se estabelecendo em nível global, não apenas pela guerra em curso, contra as esperanças de um mundo mais próspero e seguro que haviam nascido no fim do século passado.
Nós vivemos metade daquele século com o terror da bomba atômica e das suas degenerações posteriores, mas, se o terror era um péssimo sentimento, seu efeito positivo foi prevenir e impedir uma guerra nuclear, tendo-se tornado cultura comum a novidade enunciada pelo seu antecessor João XXIII de que a própria guerra, por essa razão, havia se tornado totalmente irracional.
No entanto, a razão não é a única força motriz do agir humano, e às vezes ela falha ou pode ser traída, de modo que hoje aquele impedimento à guerra, e ainda mais à guerra total, não parece mais convincente e confiável. Uma guerra a mais, além das muitas já sofridas, se desencadeou hoje com efeitos imprevistos e gravíssimos, e, se provoca um susto inédito, suscita também o pranto ao ver cada pessoa, ou casa, ou obra individual abalada pela devastação e pela morte.
A sensação imperiosa é que o mundo deve ser salvo, mas, apesar das boas vontades que também estão presentes, hoje não parecem existir as premissas para isso. Pelo contrário, o perigo para a condição humana vai crescendo dia após dia.
Nós sentimos que, para sair disso, seria preciso uma grande conversão de culturas e de políticas que envolvesse grandes multidões, mas também estamos convencidos de que, graças à infinita dignidade e à potencialidade de cada ser humano individual, até mesmo uma única pessoa, em dadas circunstâncias, pode ser o instrumento para que o mundo seja salvo.
Pedimos que seja o senhor a tomar a iniciativa de tal tentativa. Admiramos a sua disponibilidade de ir até Moscou para parar a guerra. Mas, antes mesmo que isso possa se realizar, achamos que é possível estabelecer, até mesmo fora dos circuitos institucionais, uma relação entre pessoas que, pela sua responsabilidade em vista da situação atual, poderiam parar imediatamente a guerra e inverter, também em prol do futuro, o curso hoje nefasto e fatal das coisas.
Todos conhecemos as causas e as responsabilidades próximas e distantes da guerra, todos sabemos que erramos de muitos modos. Mas hoje não é o momento de julgar, o problema hoje não é ter ou não ter razão em absolver ou em condenar. Há um tempo para julgar e há um tempo para entender, há um tempo para intimidar e um tempo para interrogar e se interrogar, há um tempo para a certeza e há um tempo para a dúvida, há um tempo para a severidade e há um tempo para a misericórdia.
Pedimos-lhe que queira humildemente ativar esse processo, dando um mandato para exercê-lo a uma pessoa de sua confiança. Tratar-se-ia de enviar ao presidente Biden e ao presidente Putin – que certamente têm em mãos, pela força e pelas ideias que põem em campo, o futuro do mundo – uma embaixada informal com a qual se peça a eles que, deixando de lado todas as razões até de ressentimento legítimo, firmem um pacto de convivência inegociável e irrevogável no planeta que é comum a todos; um pacto que garanta a vida a ser vivida juntos e o desenvolvimento dos seus povos e, com eles, de todos os povos, interrompendo instantaneamente, a começar por um cessar-fogo, a atual concatenação de ofensas e ameaças para toda ação e destino futuro, possível e diferente.
Em um mundo poliédrico e complexo como o atual, nem todas as relações devem ser iguais. Elas podem ser marcadas por uma maior ou menor amizade ou correspondência de interesses, mas, em todo o caso, devem ser compatíveis e vitais.
Temos a certeza de que o senhor decidirá pelo melhor em relação a esta proposta e à pessoa que poderia ser investida nela. De nossa parte, permitimo-nos sugerir que a pessoa mais adequada para realizar essa missão nas duas capitais é a ex-chanceler alemã Angela Merkel, uma mulher que compartilha os pensamentos e os sentimentos de muitos, que tem uma grande experiência e conhecimento de pessoas, de eventos e de políticas, um grande prestígio internacional pelo longo serviço prestado nas responsabilidades de poder no seu país e na Europa e, acima de tudo, é sua irmã de fé.
Ela, certamente não só por isso, mas também pelo fato de ser mulher, é particularmente indicada para essa tarefa. Também pela circunstância recordada pelo senhor, Francisco, de que foi uma mulher, segundo os Evangelhos, que se fez portadora daquele grande anúncio de um novo início e de uma nova paz que deveria mudar a história do mundo.
Talvez, em alguns lugares onde hoje é maior o barulho das armas e de guerras aparentemente inevitáveis, de uma mulher poderia vir o vislumbre de uma notícia de paz e de reconciliação. Ao mesmo tempo, o povo da paz, que está espalhado por todo o mundo, poderia se reunir em todos os lugares, de múltiplas formas e manifestações, na expectativa da boa notícia e na vontade de promover uma realidade melhor e outro mundo possível.
Desculpe-nos ter lhe exposto esta ideia singular, mas nos parece que, em um momento tão difícil como este, é preciso pensar e tentar o impensável.
Com gratidão pelo que o senhor está fazendo e fez para trazer ao mundo a paz, pela sua obra e com verdadeira amizade.
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Entre as centenas de signatários e signatárias, encontram-se nomes como Raniero La Valle, Luigi Ferrajoli, Gustavo Zagrebelsky, Dom Domenico Mogavero, Giovanni Traettino, Pe. Alex Zanotelli, Marco Revelli, Daniele Menozzi, Enrico Peyretti, Marco Politi, Pe. Severino Dianich, Roberto Mancini, Fulvio De Giorgi, dentre outros.
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“Por favor, envie uma embaixada de paz a Biden e a Putin”: carta aberta ao Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU