22 Março 2022
A 328ª edição dos Cadernos IHU Ideias apresenta o artigo do Prof. Dr. Fernando Wirtz intitulado “Uma abordagem da filosofia de Miki Kiyoshi”.
Wirtz é doutor em Filosofia pela Universidade de Tübingen – Alemanha e membro do comitê diretor da Sociedade Internacional de Filosofia Intercultural.
“Neste texto, eu gostaria de apresentar algumas das ideias mais importantes do pensador japonês Miki Kiyoshi (1897-1945). Miki é um filósofo difícil de catalogar, com uma vasta produção (suas Obras Completas têm 20 volumes) e que foi pouco lida fora do Japão. Apesar disso, ele foi uma figura central durante a década de 1930 e suas ideias influenciaram muitos autores do pós-guerra. Espero que este texto sirva como uma pequena contribuição aos materiais escritos em português sobre filosofia japonesa”, comenta Wirtz.
Miki Kiyoshi nasceu em 5 de janeiro de 1897, em um ambiente rural na província de Hyōgo (atual cidade de Tatsuno). Inspirado depois de ler a obra-prima de Nishida Kitarō, A Study in Good (1911), Miki matriculou-se em filosofia na Universidade Imperial de Kyoto em 1917, graduando-se três anos depois. Como professor, trabalhou na Universidade Otani e na Universidade Ryukoku em Kyoto antes de ir estudar na Europa.
Entre 1922 e 1925 estudou em Heidelberg, Marburg e Paris. Lá conheceu personalidades como Heinrich Rickert, Karl Mannheim, Eugen Herrigel, Hermann Glockner, Hans-Georg Gadamer, Karl Löwith e também Martin Heidegger. Depois de retornar ao seu país, ele ensinou nas universidades de Hōsei, Nihon e Taishō.
Entre 1927 e 1928 fez algumas viagens à Manchúria, Coreia e outras partes da China. Em 1930 foi preso sob a suspeita de ter doado dinheiro ao Partido Comunista, em decorrência das Leis de Preservação da Paz. Muitos dos intelectuais da época com algum tipo de vínculo com o movimento comunista sofreram prisões semelhantes: Tosaka Jun, Nakai Masakazu, Saigusa Hiroto e até o jovem Maruyama Masao. Embora Miki tenha passado menos de um ano na prisão, foi difícil para ele encontrar um lugar na academia novamente. A vigilância policial durante esses anos era sistemática. Miki então teve que optar por trabalhar como editor, jornalista e organizador de mesas redondas.
A partir de 1936, Miki foi membro da Shōwa Research Association, concebida para servir como um grupo de reflexão (uma espécie de think tank) do ex-primeiro-ministro Konoe Fumimaro. Muitos dos escritos mais controversos de Miki devem ser lidos neste contexto. É aqui que Miki coloca sua caneta a serviço da liderança do Japão no território do “Grande Leste Asiático”.
O Japão, que tinha interesses coloniais na Manchúria e em outras regiões, deveria, segundo Miki, tornar-se uma espécie de líder cultural e não apenas político. Embora Miki tenha desempenhado um papel proeminente na comissão cultural do grupo Shōwa, ele permaneceu vulnerável à censura estatal após a dissolução do grupo em 1940. Em 1942, Miki foi enviado a Manila por um ano como membro da seção de propaganda militar. Dizem que ele até tentou aprender um pouco de espanhol para sua estadia, uma língua que era bastante inútil.
Após seu retorno, sua segunda esposa morreu (a primeira morrera em 1936). Em março de 1945 foi novamente preso - desta vez por ajudar o escritor comunista Takakura Teru - e detido no Centro de Detenção de Toyotama, onde morreu devido às más condições de confinamento em 26 de setembro, após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Filosoficamente, o trabalho de Miki pode ser dividido de diferentes maneiras. De um modo geral, podem ser distinguidos quatro momentos principais.
1) 1920-1925: Anos de formação e leitura. Importante influência do neokantismo.
2) 1925-1930: Textos com forte cunho materialista.
3) 1930-1936: Filosofia da história e antropologia filosófica.
4) 1936-1945: Humanismo, tecnologia e lógica da imaginação.
Como muitos autores de sua geração, Miki iniciou sua trajetória filosófica estudando o neokantismo, especialmente Heinrich Rickert. Na Alemanha, onde frequenta as aulas de Rickert, distancia-se do formalismo de Rickert e passa a adotar uma perspetiva existencialista mais próxima de Heidegger. Para Miki, não se trata mais de como a história é conhecida ou de seu valor epistemológico. Ao contrário, o problema é mais concreto: como se produz a história?
Dessa forma, a filosofia de Miki após seu retorno ao Japão está focada no problema da relação entre teoria e práxis. A filosofia não pode ser alheia ao movimento da história. Ela mesma deve ser ação. Após sua prisão em 1930, Miki abandonará a linguagem marxista, mas continuará interessado na história. Nesse período, Miki introduz com mais força dois de seus conceitos mais importantes: pathos e logos. A história é para ele a união entre a corporalidade emocional e coletiva da situação e a razão. Em outras palavras, a filosofia de Miki é baseada em uma espécie de dialética contínua entre emoção e razão. A história para ele não é mais a história revolucionária do proletariado, mas uma dialética entre pathos e logos.
Imagem: Capa dos Cadernos IHU Ideias número 328, de Fernando Wirtz.
O período final da filosofia de Miki é uma continuação dessas questões. Aqui, Miki começa a falar de "um novo tipo de ser humano" que deve ser a chave para um novo humanismo. Esse humanismo tem que ser, segundo Miki, uma superação do humanismo ocidental. Miki pensa esse "novo ser humano" como algo criativo e produtivo. A essência do ser humano não é predeterminada, mas é algo em contínua formação. Nesse sentido, imaginação e técnica são uma expressão clara dessa força poética. Criar, para Miki, não é meramente gerar um objeto externo. Ao criar, o objeto também modifica o sujeito. Nesse sentido, a criação é um movimento dialético. Os escritos de Miki sobre técnica também contêm uma forte conotação política. Técnica é ação e, no contexto da Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento da tecnologia foi um importante instrumento estratégico para lidar com as potências inimigas.
Hoje, a filosofia de Miki continua sendo um objeto estranho. Por um lado, Miki pertence à Escola de Kyoto, pois muitos de seus conceitos refletem a influência de Nishida. Por outro lado, Miki difere de Nishida, Tanabe e Nishitani por seu compromisso político com certas ideias de socialismo. Apesar de ser um crítico ferrenho do autoritarismo, Miki emprestou sua caneta ao belicoso governo japonês. É difícil avaliar se isso foi resultado de necessidade ou convicção. Afinal, a pressão policial era um fato inegável. É verdade que outros autores como Tosaka Jun permaneceram mais fiéis às suas convicções. Parece que Miki optou pela Realpolitik e pelo pragmatismo, acreditando que sua tarefa como intelectual era distorcer o sistema por dentro. No entanto, uma conclusão sobre o colaboracionismo de Miki requer uma avaliação minuciosa de seus textos mais políticos, e isso está além do escopo deste artigo. Aqui, limitar-me-ei a desenvolver alguns dos conceitos centrais de sua filosofia histórica.
O artigo completo pode ser acessado aqui.
Fernando Wirtz (Foto: Reprodução | Youtube)
Graduado em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e doutor na mesma área pela Universidade de Tübingen na Alemanha, com tese sobre Friedrich Schelling, Fernando Wirtz realizou seu pós-doutorado na Universidade de Kyoto, sobre o conceito de mito na filosofia japonesa durante a década de 1930. Além da filosofia japonesa, ele também se especializou em idealismo alemão, filosofia intercultural e filosofia do mito. É membro do comitê diretor da Sociedade Internacional de Filosofia Intercultural.
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Uma abordagem da filosofia de Miki Kiyoshi. Artigo de Fernando Wirtz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU