11 Dezembro 2021
"A exemplo da metafísica como algo além do mundo físico, o Metaverso se propõe a ser um espaço virtual que busca aumentar a vida real. Exemplo disso, vemos no mundo dos games onde o jogador passa a interagir mais se colocando na cena do jogo. Em simples palavras, estamos falando de uma realidade aumentada", escreve Vilmar Alves Pereira, filósofo, educador Ambiental Popular, doutor em Educação (UFRGS), professor na Universidad Internacional Iberoamericana – UNINI.
Entre tantas marcas da biografia do Filósofo Martin Heidegger (1889-1976) em sua busca pelo sentido do ser, a sua cabana ficou conhecida mundialmente na Floresta Negra (Alemanha). Sua localização é uma aldeia chamada Todtnauberg, no município de Todtnau, região de Baden-Württemberg muito próximo a Friburgo onde Heidegger era professor. Ali se estampa um Heidegger com hábitos de um camponês que entre outras coisas, preparava a lenha para uma fogueira, ao redor da qual tinha contato com lenhadores da floresta negra, que além de os aquecer ele os escutava. A cabana também demarca um profundo movimento existencial de recolhimento, de introspecção e busca do sentido do ser. Não é por acaso que foi nela que produziu uma das maiores obras do pensamento do século XX Ser e tempo. Na Cabana, além de pegar água na fonte, Heidegger vive a experiência de sentir um profundo silêncio, uma vinculação ontológica com o lugar e por decorrência a sua autocompreensão singular da existência. Em recolhimento nesse lugar, com densas reflexões sobre o existir, emergem pensamentos genuínos que não apenas nos convidam a revisar toda a história da metafísica e da ontologia, desde Platão, bem como propõe novas compreensões do ser. O ser que pode ser compreendido no tempo. O ser que não está pré-definido, mas que se expressa e se revela nos acontecimentos. Por isso, no caso humano, nós nunca somos, mas estamos sendo. Trata-se de um movimento de abertura dialógica e de projeção num espaço e tempo. Desse modo, a condição existencial não pode ser pré-definida.
São densos movimentos onde o ser se expressa pela linguagem na qual desde já nos encontramos. Mais tarde isso é reconhecido por Gadamer (seu ex-aluno) quando considera que é pela linguagem que o ser se expressa no mundo. Ou seja, esse movimento reflexivo de existir no e com o mundo é eivado de sentido de onde emergem múltiplas compreensões do nosso estar sendo, hoje, agora nesse e não em outro lugar e tempo.
Tenho utilizado o referencial heideggeriano para pensar a existência no contexto da Pandemia Covid-19. Já utilizava anteriormente, no entanto de modo mais contundente fiz e estou fazendo esses movimentos nesse contexto. O ensaio, Existências Ameaçadas (2020), a obra O que será o amanhã: a Educação Ambiental a Justiça Ambiental na América Latina e Caribe (2020) e a obra Como Está sendo o agora: aprendizagens na travessia da pandemia Covid-19 (2020) ilustram exercícios e modos de estar sendo nesse tempo onde as questões sobre a vida exigem de nós densos processos de compreensão bem como de redefinição ontológica no campo Ambiental Popular.
Assim, em uma metáfora, entendo que a pandemia nos coloca o imperativo de estar na cabana. Estando na cabana reavaliamos a vida e buscamos o sentido existencial. Esse é um movimento que considero fundamental que é mais de recolhimento do que isolamento propriamente dito. O outro movimento emerge daqueles que já vinham “colonizando nosso mundo da vida” e tem como propósito alimentar as nossas necessidades e relações já consolidadas no modo de produção e consumo no sistema capitalista.
Agindo rapidamente a lógica financeira, com grande capacidade adaptativa, nos ofereceu alternativas para a saída da cabana. Inclusive sentindo nossa necessidade nas relações humanidade-mundo, despontou com um amplo conjunto de plataformas digitais, virtuais, de onde saímos de casa sem precisar sair da cabana. Para além disso viajamos, interagimos, trabalhamos, aprendemos, estudamos, consumimos, nos alimentamos com apenas alguns clicks ou aproximando o QR Code. Convém demarcar que a racionalidade que orienta a lógica financeira é aquela racionalidade Instrumental Estratégica reconhecida por Adorno e Horkheimer (da Escola de Frankfurt) como racionalidade cujo endereçamentos são sempre o aumento do lucro e do poder. Trata-se de uma racionalidade fria e calculista.
É nesse horizonte de expansão das necessidades emerge com muita força o Metaverso. Entre seus supostos propósitos, surge com a intenção de melhorar a interação humanidade-mundo. O termo meta vem do grego e se traduz por além. A exemplo da metafísica como algo além do mundo físico. O Metaverso se propõe a ser um espaço virtual que busca aumentar a vida real. Exemplo disso, vemos no mundo dos games onde o jogador passa a interagir mais se colocando na cena do jogo. Em simples palavras, estamos falando de uma realidade aumentada.
Chama-nos atenção a força e rapidez que esse universo vem se expandindo. Rapidamente ouvimos falar em compra de terrenos no espaço virtual, investimentos no espaço virtual, propagandas que apontam para as possibilidades de ganhar dinheiro nos diferentes espaços. Ao comprar espaço sugere-se que você possa ter a sua loja ou empresa virtual com produtos virtuais. A pessoa pode sair para a rua virtual, por exemplo com um par de tênis novo nessa realidade aumentada. E ainda mais, você não precisa abrir conta no exterior, mas interage diretamente com diferentes lugares do mundo nessa realidade com moedas próprias. As notícias dão conta de que grandes marcas como por exemplo, Nike, Adidas, Disney, Tesla, Industria dos 5G entre outras já compraram espaço para vender produtos virtuais. A grande referência dessa perspectiva está na Empresa Facebook que apresenta esse horizonte e muda inclusive se nome para Meta.
Sobre as potencialidades e questionamentos dessa nova experiência eu convido a leitura da Edição da Revista IHU número 550 cujo título é Metaverso: a experiência humana sobre outros horizontes com pontos de vista de diferentes especialistas. Ali se fala desde potencialidades do Metaverso em experiências religiosas, ampliação de cidadania, os desafios para o futuro até o questionamento sobre a possibilidade de uma existência estendida e a escravidão algorítmica numa excelente entrevista com Rafael Zanatta.
Nessa minha condição de estar sendo, recordo do alerta de Zygmunt Bauman em sua obra Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. É uma compreensão genuína onde Bauman faz uma hermenêutica vida e descreve que no sistema capitalista ocorre uma alteração na relação produtor produto e consumo que é muito clara e com papeis muito claros na modernidade. Conforme ele na sociedade de consumo, o produtor também pode ser consumido. Isso promove uma grande alteração na escala axiológica. Nesse sentido nos alerta que no mundo das tecnologias digitais nós podemos ser produtor e também sermos produtos, por isso nossa vida é uma janela aberta a disposição dos espectadores.
Quero voltar ao título desse artigo onde menciono as condições ontológicas invertidas. Sobre bases muito diferentes, acredito que o movimento existencial da cabana promove uma expansão para dentro de nós, nos permitindo busca o sentido daquilo que está nos atravessando, daquilo que estamos vivenciando. É um movimento muito potente e pode contribuir para densos processos de redefinição ontológica, de escolhas outras que emergem desse alargamento compreensivo sobre a vida que vivemos e a vida que almejamos viver nas múltiplas relações humanidade-mundo. Ainda é cedo para avaliarmos, no entanto, a partir do que tenho lido convido a reflexão sobre o quanto essa realidade virtual aumentada expande e nos coloca numa realidade paralela para fora de nós mesmos. Realidade esse que já estava posta nos filmes, nos games, mas que se intensificou frente as necessidades que emergiram no contexto pandêmico. Entre tantas interrogações que esse universo proporciona, como direitos digitais, os especialistas também alertam sobre um certo encobrimento de cenários de desigualdade social e de exclusão digital.
É fundamental que levantemos a questão sobre em que essa realidade aumentada pode contribuir para mitigar, por exemplo, a fome, num país que tem 20 milhões de pessoas passando fome? Enquanto alguns já se adiantaram em ampliar suas fortunas a exclusão e fome gracejam, as injustiças socioambientais aumentaram no contexto pandêmico. Portanto nesse meu movimento de estar sendo, nesse momento eu fico com cabana acreditando em densos exercícios reflexivos que possam contribuir em perspectivas, projetos coletivos desde suas bases ambientais e populares emancipadoras para todas, todos e todes, que não aumentam a nossa dependência.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. tradução Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2000.
PEREIRA, Vilmar Alves. O que será o amanhã? Educação ambiental na América Latina e Caribe, justiça Ambiental e COVID-19. Juiz de Fora, MG: Garcia, 2020a.PEREIRA, Vilmar Alves. Existências ameaçadas: a Educação Ambiental em tempos de COVID-19. The Brazilian Journal of Development, v.6, n.4, p.21254-21271, abr. 2020.
Pereira, Vilmar Alves. Como está sendo o agora: aprendizagens na travessia da pandemia da COVID-19 [livro eletrônico] / Vilmar Alves Pereira. Campina Grande: Editora Amplla, 2020 (b).
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Da cabana de Heidegger ao Metaverso: condições existenciais ontológicas invertidas. Artigo de Vilmar Alves Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU