17 Mai 2022
"Quando a fé e o nacionalismo se entrelaçam porque os cristãos afirmam possuir uma terra-pátria, desencadeia-se uma mistura explosiva e nesse caso os cristãos não ajudam a trilhar os caminhos da paz. Não apenas o ecumenismo é impedido, mas o Evangelho é desmentido. Então fica difícil dizer que as religiões são portadoras de paz", escreve o monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 16-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
No conhecido texto anônimo do século II d.C. que leva o título de A Diogneto, procura-se traçar o que pode ser a vida dos cristãos no mundo mediterrâneo e sua identidade em relação aos judeus e pagãos. Não se destacam diferenças profundas, aliás, afirma-se que os cristãos “não se distinguem dos outros nem pela língua nem pelo modo de vestir, não habitam cidades próprias, não usam línguas particulares”. Mas ao mesmo tempo com parrésìa atesta-se que “vivem numa terra, mas como estrangeiros domiciliados. Toda terra estrangeira é sua pátria e toda pátria é para eles uma terra estrangeira”.
Se para o povo de Israel a terra era uma promessa feita por Deus no próprio ato da criação do povo, para os cristãos essa promessa não está em vigor, de forma que eles não podem reivindicar ter uma pátria, nem a pretender, nem abrigar sentimentos que circunscrevam seu empenho a uma determinada terra. Mas sabemos que, com o advento de Constantino, foi inaugurado o Império Romano cristão: os cristãos que faziam objeção de consciência e não participavam de guerras até conhecer o martírio, se tornaram soldados de um império cristão, participaram de guerras a serviço daquele poder que os cristãos anteriores chamavam pelo nome de Babilônia.
Desde então, a Igreja não tem tido "postura de presença" em terras governadas pela autoridade política, mas muitas vezes se colocou ao lado do Estado em uma suposta sinfonia, ou em um regime de concordata que de fato submetia a Igreja ao poder político, como aconteceu sobretudo no Oriente até a formação das Igrejas nacionais. Na realidade, essas Igrejas nunca conseguiram viver a autonomia em relação ao Estado: ou foram perseguidas, como na Rússia soviética, ou se encontram em uma situação de sujeição como a Igreja russa atualmente. No Ocidente, sabemos bem que esse perigo não apareceu porque, pelo poder temporal dos papas, a Igreja Romana teve a pretensão de dar a Deus o que pertencia a César. Inclusive em tempos recentes, mostrou a vontade de intervir na vida dos Estados, configurando-se como religião civil, para obter privilégios.
No conflito Ucrânia-Rússia, as posturas cesaropapistas das Igrejas são mais efetivas do que nunca: na Ucrânia, a Igreja Ortodoxa que se desligou de Moscou obteve o apoio do governo. Também nestes dias o mesmo processo está ocorrendo para a Igreja Ortodoxa da Macedônia do Norte, a "Igreja de Ocrida", que se separou do Patriarcado sérvio para se juntar à comunhão com Constantinopla seguindo em tudo o resultado político dessa pequena república.
Quando a fé e o nacionalismo se entrelaçam porque os cristãos afirmam possuir uma terra-pátria, desencadeia-se uma mistura explosiva e nesse caso os cristãos não ajudam a trilhar os caminhos da paz.
Não apenas o ecumenismo é impedido, mas o Evangelho é desmentido. Então fica difícil dizer que as religiões são portadoras de paz.
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As Igrejas e os caminhos da paz. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU