04 Abril 2022
O padre Kirill Hovorun, que foi um colaborador próximo do Patriarca Kirill, repassa nesta entrevista as escolhas fatais que levaram a Igreja russa a um alinhamento no campo político, que dividiu a sua unidade interna.
A reportagem é de M. Dell’Asta, publicada em La Nuova Europa, 28-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O posicionamento claro do Metropolita Onofre, de Kiev, no mesmo dia da invasão, foi a primeira entre os ortodoxos. Isso o surpreendeu ou você esperava?
Digamos que foi uma surpresa previsível. De fato, o Metropolita Onofre ainda em fevereiro de 2014, quando a Rússia ocupou a Crimeia e deu início a guerra no Donbass, havia feito uma declaração pública na qual exortava Putin a parar. Como primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana, a sua declaração foi muito importante, um passo muito forte. Mas depois, durante todo o período posterior de guerra de baixa intensidade, o metropolita se calou; não apenas se calou, mas também fez gestos demonstrativos como se quisesse afirmar o seu distanciamento do que estava acontecendo na Ucrânia.
Ficou famoso o seu gesto público na Rada [o parlamento ucraniano] diante de diplomatas, jornalistas, políticos e o público: diante do convite para se levantarem para observar um minuto de silêncio em homenagem aos falecidos, os três bispos da Igreja Ucraniana do Patriarcado de Moscou – Onofre, Antonij e Iona – foram os únicos que ficaram sentados. Esse gesto demonstrava que Onofre não aceitava, se recusou a reconhecer o que estava acontecendo no país. Portanto, no pano de fundo do seu longo silêncio e de gestos semelhantes, a sua declaração do dia 24 de fevereiro de 2022 foi bastante surpreendente.
No entanto, também era previsível, porque continuar calado não era mais possível, teria sido um suicídio para a Igreja ucraniana. Ele se sentiu forçado a dizer alguma coisa. Eu diria que o seu apelo foi digno e eficaz, mas não é suficiente para fazer com que a voz da Igreja Ortodoxa se conecte de modo estável à campanha contra a guerra e a agressão. Naturalmente, outros bispos o seguiram. Uma autêntica surpresa foi a adesão do bispo de Odessa, Agafangel, que fez uma declaração muito semelhante, mas que sempre foi pró-Rússia ou, melhor, o chefe da facção pró-Rússia na Igreja ucraniana. No entanto, ele condenou a agressão, o que não é pouca coisa.
Houve algumas iniciativas locais nas dioceses. Alguns bispos pediram a Onofre que reconsiderasse o status canônico da Igreja Ortodoxa Ucraniana. Mas Onofre não respondeu. Por enquanto, de sua parte, resta apenas a declaração do dia 24 de fevereiro.
Agora, há um certo número de bispos que deixaram de comemorar o Patriarca Kirill na liturgia. O Metropolita Onofre deu o seu consentimento passivo a essa escolha, embora pessoalmente continue celebrando o patriarca. Por isso, enquanto o Metropolita Onofre mantiver a comunhão com Kirill, mesmo aqueles que deixaram de celebrá-lo continuam estando em comunhão com o patriarca por meio dele. Deixar de celebrar o patriarca é mais um gesto simbólico do que qualquer outra coisa e não tem nenhum impacto eclesial real.
Mais ou menos quantas dioceses, bispos e sacerdotes se distanciaram do Patriarca Kirill até agora?
Oficialmente, cerca de 15 dioceses de 53 declararam que não celebram mais o patriarca. Mas não é possível saber os dados reais: quantos outros bispos e párocos fazem isso oficiosamente? Provavelmente, é a mesma proporção que existe na Igreja russa tomada como um todo entre aqueles que protestam e a maioria que se cala. Por exemplo, o apelo dos sacerdotes do Patriarcado de Moscou foi assinado por cerca de 300 padres, mas, na Igreja russa, os sacerdotes são cerca de 40.000, é fácil fazer a proporção.
Parece-me que, no apelo de Onofre, há uma expressão muito importante, dirigida a todos os ortodoxos ucranianos sem distinção de pertencimento: “Peço para deixarmos de lado os conflitos e os mal-entendidos, e para nos unirmos no amor a Deus e à nossa pátria”. Houve uma resposta da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia?
Em si, o apelo era dirigido a toda a sociedade. Por outro lado, a Igreja autocéfala ignorou o apelo até agora, talvez porque Onofre não tenha sido suficientemente explícito. A Igreja ucraniana autocéfala hoje tem problemas internos ligados ao fato de estar isolada há muito tempo. É muito difícil sair do seu isolamento mental e intelectual, e do sentimento de autodefesa. São complexos que cresceram ao longo de décadas e que hoje são difíceis de serem superados.
Certamente, por parte de Onofre, a ideia de deixar o passado para trás e de olhar para a frente é boa, é diferente da posição que ele sempre tivera. Antes, para ele, a Igreja autocéfala simplesmente não existia. Agora, porém, ele começou a reconhecer a Igreja autocéfala como uma possível parceira.
Eu tenho essa esperança, estou otimista. No entanto, mesmo por parte da Igreja autocéfala, houve algumas declarações, mas nenhum passo; ambas as Igrejas fizeram boas declarações, mas nenhum passo. Mas agora não é mais o tempo dos discursos; agora as pessoas sofrem e morrem, e as palavras não são suficientes, são necessários os fatos. Fatos que ainda não são vistos.
Poucos ou muitos, para os sacerdotes que deixaram de celebrar o patriarca, que caminho se apresenta no futuro?
Existem diversos caminhos possíveis, e cada um escolhe pessoalmente o seu. Um primeiro caminho é deixar tudo como está. É o que gostariam alguns metropolitas, como Antonij (Pakanič) de Boryspol’, diretor da administração eclesiástica, ou Pavel Lebed’, prior da Lavra das Grutas de Kiev. Parece-me que a esperança desses metropolitas de permanecerem firmes ao passado é ilusória, que não leva em conta a realidade; a Igreja Ortodoxa Ucraniana, chefiada por Moscou, não poderá mais existir no status quo que havia discutido após dezembro de 2018, quando nasceu a Igreja autocéfala. As suas estruturas já estão desmoronando.
Acho que um certo número de metropolitas ainda esperam que Putin, no fim, vença e ocupe a Ucrânia: são colaboracionistas, às vezes até ativos: não são muitos, mas são figuras influentes, que veem o próprio futuro apenas em uma Ucrânia putiniana. Eles provavelmente entendem que, se Putin for derrotado, eles não terão futuro na Ucrânia independente.
Essa é uma pequena minoria. Depois, há uma grande parte que pensa que não pode mais permanecer em unidade com a Igreja Ortodoxa russa, especialmente depois que o Patriarca Kirill fez aquelas declarações tão deploráveis e, do ponto de vista ucraniano, verdadeiramente criminosas. Portanto, procura outros caminhos, por exemplo, gostaria que o Metropolita Onofre pedisse a Kirill a autocefalia para a Igreja ucraniana. Muitos entendem que o patriarca nunca a dará, e então se gostaria que Onofre a proclamasse unilateralmente. Mas seria como repetir o gesto feito em 1992 pelo Metropolita Filaret, de Kiev, então acusado de cisma. Acho que essa estrada é um beco sem saída.
O caminho mais respeitoso das tradições e dos cânones ortodoxos seria entrar em comunhão com a Igreja ucraniana autocéfala. O Patriarca Ecumênico Bartolomeu também disse isso, sugerindo-a como a solução mais lógica, mas há um problema: a maioria dos que não querem permanecer na Igreja de Moscou também não aceitam ficar na Igreja autocéfala. Por motivos diversos, em alguns casos devido à propaganda dos últimos anos sobre o fato de que seria uma Igreja cismática, desprovida da graça, não canônica; é a mesma propaganda que convida ao cisma contra o Patriarcado Ecumênico e as Igrejas que o apoiaram. Hoje tocamos com a mão como essa propaganda funcionou bem, as pessoas têm medo de se ligar à Igreja autocéfala.
E depois há um problema também por parte da própria Igreja autocéfala, que fez belas declarações, mas não deu nenhum passo concreto: os fiéis veem esses sinais, ouvem dizer: “As nossas portas estão abertas”, mas têm medo de se verem depois considerados como ortodoxos de segunda categoria. É um paradoxo, mas esse caminho, que seria o mais correto, é, na verdade, o menos viável.
Por fim, há outro caminho, por assim dizer intermediário ou provisório, o que eu aconselharia, isto é, adotar a decisão do Sínodo da Igreja de Constantinopla de outubro de 2018, que restaurou o status da metropolia de Kiev anterior a 1686, ou seja, antes que fosse transferida para a jurisdição de Moscou, que de fato a englobou. O Sínodo de Constantinopla anulou esse ato de transferência, reconstituindo a metropolia de Kiev ao seu status original, de acordo com a extensão territorial da época, que incluía a atual Bielorrússia e até os países bálticos (o que, aliás, explica por que existem ortodoxos na Lituânia, um país católico).
Essa decisão do Sínodo abre caminho sobretudo ao clero do Patriarcado de Moscou na Ucrânia, mas também na Bielorrússia, que desta forma passariam a fazer parte do Patriarcado Ecumênico sem a necessidade de pedirem autorizações prévias. No entanto, essa seria apenas uma passagem intermediária. O ponto final deveria ser um novo Concílio.
Você acredita que, por trás das declarações de Kirill que causaram tanto escândalo, há simplesmente um compromisso pessoal, uma chantagem que ele está sofrendo, ou é a sua firme convicção, até mesmo uma eclesiologia?
Se é fruto de uma eclesiologia, de uma visão em que ele acredita sinceramente, então é muito diferente daquilo que eu conheci quando trabalhava com ele. À época, discutimos muitas vezes sobre a Ucrânia, sobre o futuro da Igreja ucraniana, estou falando de 10-13 anos atrás, logo depois da sua eleição como patriarca. Pelo que me lembro, as suas ideias da época eram radicalmente diferentes. Ocorreu uma enorme mudança nele se ele realmente acredita naquilo que está dizendo hoje.
A minha impressão da sua homilia é que se trata sobretudo de uma afirmação política, não eclesial nem pastoral. Uma afirmação política que não se dirige urbi et orbi, mas a uma pessoa específica, o presidente da Federação Russa.
Na situação atual, Putin entende que toda a sua comitiva está sob forte pressão, tentando fugir da catástrofe que se aproxima. Por isso, ele está tentando identificar quem o trairá. A elite ao seu redor reage de maneiras diferentes: alguns fogem, nem mais, nem menos; outros, por outro lado, declaram fidelidade a ele até o fim. A declaração do patriarca parece significar para Putin: “Você pode contar comigo, não vou traí-lo. Seu fim será o meu, estou pronto”.
Eu não sei por que ele fez essa escolha, mas é a escolha dele.
Várias pessoas defendem que esta guerra insensata requer uma nova teologia, que não nasça de especulações abstratas, mas da experiência da ferida comum e do arrependimento comum. Uma teologia não mais “clerical”, mas universal, que olhe para as dimensões da tragédia que alguns membros do “povo teóforo” desencadearam. E que, portanto, rejeite o filetismo...
É exatamente isso que eu estou repetindo: é necessária uma nova teologia política ortodoxa, que reflita a realidade da guerra e do pós-guerra, e que pressupõe certos passos. Para que isso ocorra, precisamos olhar para a experiência de outras Igrejas, em particular a católica. É claro que, no período entre as duas guerras, a Igreja Católica apoiou as novas ideologias. Houve personalidades célebres como Carl Schmitt, um católico que foi ideólogo do nazismo; ou teólogos que, em reação ao comunismo, abraçaram a ideologia nazista. Mas acho que a Igreja Católica superou bem essa tentação graças ao Vaticano II, que criou uma nova teologia política.
Um processo semelhante ocorreu na teologia protestante. Como sabemos, a Igreja protestante, nos anos 1930, sofreu ainda mais a tentação da ideologia nazista, mas, depois da guerra, houve uma revisão radical, que foi chamada de “teologia pós-Auschwitz”. Eu acho que nós, ortodoxos, chegamos ao ponto em que temos uma necessidade absoluta de uma “teologia pós-Auschwitz” nossa, de uma teologia política no espírito do Vaticano II.
Precisamos rever radicalmente os impulsos, os princípios que nos trouxeram à atual catástrofe, porque a fórmula da guerra de hoje na Ucrânia é muito simples: armas mais ideias. Putin colocou as armas nessa fórmula; a Igreja colocou as ideias. De fato, as ideias que movem esta guerra não vêm do Kremlin, mas foram originalmente formuladas pela Igreja. Não são ideias muito diferentes das presentes em outras Igrejas, é o próprio etnofiletismo na sua forma mais radical.
Eu definiria aquilo que move a Rússia hoje como um “nacionalismo de civilização”, pelo qual a unicidade excepcional é atribuída não tanto à nação, mas a uma civilização, é uma forma de messianismo. E se isso se une à força das armas, temos a guerra. Razão pela qual, agora, devemos vencer a guerra e, portanto, destruir as armas, mas também rever completamente as ideias.
Essa teologia política incide também na eclesiologia?
Na Ortodoxia, a teologia política também é eclesiologia. Atualmente, eu estou trabalhando em um programa teológico que pressupõe a união entre teologia, eclesiologia e teologia prática. A tarefa agora é a “deputinização” da teologia russa, para libertá-la daqueles elementos que a levaram a essas consequências assustadoras.
Mas não é só a teologia russa que sofre de “putinismo”; isso pode ser observado também em outras Igrejas, por exemplo, a teologia romena anterior à guerra era fascista, teologia que ainda não foi rejeitada pela Igreja Ortodoxa romena, e de fato hoje observamos em seu interior certas correntes que reavaliam teólogos propriamente fascistas.
Nesse sentido, estou muito impressionado com a obra do Pe. Luigi Sturzo, que desconstruiu a teologia fascista. Ele escreveu sobre o “clerofascismo”, e acho que nós, hoje, estamos lidando exatamente com o mesmo fenômeno, só que dentro da Igreja russa. Precisamos nos libertar do fascismo.
Etnofiletismo e Russkij mir (mundo russo) têm uma raiz comum, então?
Eu vi nascer a ideologia do Russkij mir, eu a vi crescer no seio da Igreja. Dez anos atrás, eu protestei, embora não de forma pública. Escrevi cartas ao patriarca, tentei convencê-lo de que era uma ideologia equivocada, mas, quando vi que era inútil, renunciei. O motivo principal pelo qual saí da estrutura do Patriarcado de Moscou foi precisamente a ideia do Russkij mir. Já naquela época eu via como ela era perigosa.
A sua gênese foi a seguinte: inicialmente, nos anos 1990, a ideologia do Russkij mir havia sido elaborada por alguns cientistas políticos liberais russos, intelectuais ligados à chamada Escola Metodológica da Universidade Estatal de Moscou. Inicialmente, era uma ideia secular e tinha um significado totalmente diferente. Dizia-se que, após o colapso da URSS, a Rússia era fraca, porque russos mais inteligentes iam embora para o exterior. Portanto, todo o potencial intelectual da Rússia que estava concentrado na periferia, nos países da Europa ocidental, tinha que ser redirecionado da periferia para o centro, para edificar a nova Rússia em sentido democrático.
Esse era o conteúdo original do Russkij mir. Depois, no início dos anos 2000, essa ideia foi capturada pela Igreja, que a transformou radicalmente. O ator principal dessa transformação foi o patriarca Kirill, à época ainda metropolita.
E que utilidade Kirill via na ideia do Russkij mir?
Inicialmente, para ele, era uma ideia missionária, através da qual ele achava que poderia atrair as massas pós-soviéticas para a Igreja. Mas, já naquela época, entrevi ali o germe do nacionalismo. Kirill, como pessoa, começou a mudar quando o seu fervor missionário se transformou em nacionalismo. Isso começou a ser visto já dois ou três anos após a eleição como patriarca.
Assim, a ideia original do Russkij mir foi invertida: a Rússia é o centro, é uma força, as suas ideias são tão importantes que é preciso difundi-las na periferia, a fim de fazer com que ela entre na órbita de Moscou. É uma ideia imperial: difundir a influência política da Rússia por meio das ideias. Criar uma nova realidade política mediante o chamado soft power.
E, como a Igreja de Moscou é transnacional, estendendo-se à Bielorrússia, à Ucrânia e aos espaços ex-soviéticos, ela se propôs como um canal para a difusão dessa ideia: por meio da Igreja, seria possível inserir esses territórios, perdidos com o fim da Guerra Fria, na órbita de Moscou.
Essa é a ideia do Russkij mir na sua nova versão eclesiástica. E a Igreja conseguiu convencer o Kremlin de que essa ideologia podia servir de base para a sua política. No primeiro período, durante os seus dois primeiros mandatos, Putin não tinha uma ideologia própria, não era um visionário, pelo contrário, tinha um horizonte bastante restrito, estava interessado em ficar rico e vender bem gás e petróleo. Aos seus olhos, a Rússia nada mais era do que um grande distribuidor de gás. Foi a Igreja que ofereceu a Putin uma visão nova, uma nova língua para o projeto imperial.
Por isso, mesmo que pareça um julgamento muito forte, eu acho que, sem a Igreja, o projeto imperial de Putin não teria sido possível. A Igreja lhe forneceu uma concepção, ofereceu-lhe a linguagem, inspirou-lhe essa megalomania.
Na sua opinião, os bispos e os simples sacerdotes russos se submetem passivamente a essa ideia ou a compartilham?
A partir daquilo que eu posso julgar pelas reações, pelo que é publicado, eu diria que essa ideia é muito popular dentro da Igreja russa. Se vemos que 300 sacerdotes afirmaram publicamente que são contrários, não esqueçamos que milhares de sacerdotes a compartilham, e também os bispos. Eles não têm pudor de afirmar isso publicamente. Aos seus olhos, a ideia do Russkij mir representa a civilização do bem, enquanto todo o resto representa a civilização do mal. Existe o mundo ocidental malvado que quer destruir a Santa Rus’.
É interessante notar que a ideologia do Russkij mir não atribui o secularismo apenas ao mundo ocidental malvado, mas o atribui especificamente também à Igreja Católica, que está do lado do mal e combate o bem ao lado do qual a Rússia está. E, por isso, na retórica de muitos sacerdotes e bispos, pensa-se que, se a Rússia hoje não vencer os nazistas ucranianos, a Ucrânia se tornará católica e secularizada. É pura teoria da conspiração, puro complô: a culpa é do Ocidente globalizado, do qual a Igreja Católica faz parte, que quer destruir a civilização russa.
Em suma, você está dizendo que a Igreja teve um papel crucial em tudo isso?
Sim, teve um papel decisivo. Chego a supor que, sem a Igreja, sem a ideologia do Russkij mir – que a Igreja criou transformando a ideia original – esta guerra talvez não teria ocorrido...
Terrível... Isso explica o documento dos teólogos ortodoxos sobre o Russkij mir. Já houve um posicionamento tão claro sobre o etnofiletismo desde o distante 1872, quando a Igreja búlgara foi acusada dessa heresia?
Estou muito feliz que esse documento tenha surgido, refletem-se nele as reflexões que eu também amadureci em todos esses anos. Esse documento, essencialmente, representa de forma concisa, mas pontual, o manifesto da nova teologia que estamos esperando, análoga à “teologia pós-Auschwitz”. Poderíamos chamá-la de “teologia pós-Russky mir”, ou “depois da guerra ucraniana”.
É um documento importante, que traça os princípios a que a teologia política ortodoxa terá que se ater nas próximas décadas, no espírito do Vaticano II. Eu acho que ainda temos muito a aprender com o Concílio, com a sua esplêndida teologia renovada.
O etnofiletismo pode ser considerado uma doença comum à Ortodoxia?
Sim, é uma doença generalizada, um problema comum. Por exemplo, está presente na teologia grega, que tem em seu interior essa corrente, segundo a qual a civilização grega é única e tem direitos particulares no mundo contemporâneo. Diversos teólogos ortodoxos gregos contemporâneos pensam assim, criticando o Ocidente e a Igreja Ocidental.
Paralelamente, há outros teólogos gregos, que defendem que a civilização grega certamente fez uma grande contribuição ao mundo, mas isso não lhe confere nenhum direito especial, não a torna melhor nem como Igreja nem como povo. Essa corrente pode ser definida como inclusiva, quando o teólogo não considera o seu próprio povo como absolutamente especial. Essa linha da teologia política grega é contra o exclusivismo de uma civilização...
Para realmente acolher o convite contido no documento dos teólogos, o que será preciso, um concílio?
Sim, um concílio. Enquanto isso, no ponto em que estamos, é preciso começar a debater e a condenar as novas variantes do Russkij mir e discutir a desputinização da Igreja.
Mas, apesar de tudo, você tem esperança?
A esperança sempre permanece. Como cristãos, devemos sempre esperar...
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“A guerra na Ucrânia não teria ocorrido sem a Igreja russa.” Entrevista com Kirill Hovorun - Instituto Humanitas Unisinos - IHU