Os escombros do ecumenismo. Artigo de Alberto Melloni

Papa Francisco e Patriarca Kirill. (Foto: reprodução | Catholicus)

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28 Abril 2022

 

"Quem sai em ruínas (da atual guerra na Ucrânia) é o ecumenismo: ou seja, aquele desejo de unidade visível que o cristianismo percorreu desde o final do século XIX. Contra a teologia liberal que reduzia a fé a um acúmulo de valores morais, a obediência ao Evangelho ensinava as Igrejas a ler na história o juízo de Deus sobre sua presunção de possuí-lo, sobre sua desobediência descarada ao mandamento da unidade, sobre sua indocilidade de ser uma semente de reconciliação; e, portanto, a buscar a graça na história.

A opinião é de Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado em La Repubblica, 27-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Segundo ele, " o ponto hoje não são as palavras. São os sinais da fé que implora misericórdia, que pede paz: mesmo com a voz de um, como demonstrou a oração do Papa solus durante o Covid. Nesta pandemia de guerra, ir em peregrinação ao Santo Sepulcro diria pelo menos que alguém na voz de quem chora reconheceu a voz do crucificado ressuscitado: que o Papa faça isso com Kirill, que o faça sozinho, que os outros o façam - não importa. Deus lê os corações, não as redes sociais".

 

Eis o artigo. 

 

As Igrejas celebraram nas duas Páscoas, católica e ortodoxa, a sua divisão: um prefácio e parte de uma guerra que, junto com vidas e cidades, reduziu o ecumenismo a escombros. Em vez de se tornarem semente de reconciliação, as Igrejas deixam-se cortejar por aqueles que querem alistá-las sob a sua própria bandeira e prometer a vitória. O ex-arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, pediu a expulsão de Moscou do Conselho Ecumênico de Igrejas, como se ser ortodoxos fosse uma culpa. Os uniatas greco-católicos criticam o Papa por não dizer que "Putin é o diabo". A conferência episcopal alemã justifica o rearmamento da Alemanha revogando o tratado de paz e a questão da culpa. O Patriarca Kirill justificou a guerra durante muitos domingos. O Papa, pressionado pelo Ocidente ao som de citações de wojtylianas, resistiu convencido de que só um demente poderia confundir sua voz com a propaganda russa. Mas no final se dobrou à sua diplomacia e cancelou o encontro com Kirill em Jerusalém que, aliás, deveria ser antecipado.

 

Assim, diante de uma guerra da qual foram as incubadoras espirituais, as Igrejas renunciam ao seu diálogo de comunhão: mesmo que fosse inútil, ainda seria "delas". E se entregam à ideia de que se pode viver o tempo de guerra assistindo na TV ao jogo clássico entre pacifismo de talk show e intervencionismo de talk show.

 

Quem sai disso em ruínas é o ecumenismo: ou seja, aquele desejo de unidade visível que o cristianismo percorreu desde o final do século XIX. Contra a teologia liberal que reduzia a fé a um acúmulo de valores morais, a obediência ao Evangelho ensinava as Igrejas a ler na história o juízo de Deus sobre sua presunção de possuí-lo, sobre sua desobediência descarada ao mandamento da unidade, sobre sua indocilidade de ser uma semente de reconciliação; e, portanto, a buscar a graça na história.

 

Foi assim desde o início daquele desejo de unidade: quando o colonialismo pretendia que a missão traçasse suas fronteiras com a divisão confessional, o ecumenismo identificava a divisão como um escândalo. Foi assim na Grande Guerra: quando o misticismo bélico tomou conta de todos, as Igrejas tentavam reabsorver a violência que alimentou os totalitarismos. Foi assim depois da Guerra nazifascista, o Holocausto e Hiroshima: quando a responsabilização de culpas permitiu o nascimento do Concílio Ecumênico de Igrejas em 1948 e a conversão ecumênica do catolicismo reunido em Concílio 1962.

 

Depois veio o tempo do sucesso ecumênico: um barulhento desfile de encontros, diálogos, acordos, burocracias que alimentaram a ilusão triunfalista de que a paz mundial poderia coexistir com a divisão das Igrejas, alinhada com uma etiqueta de comportamento mútua.

 

Assim, ninguém - nem Roma, nem Genebra, nem Canterbury - captou os estalos de aviso: a funesta deserção russa no concílio de Creta de 2016, o filetismo rastejante de Poroshenko que proclamava "uma língua, um exército, uma Igreja", o nefasto cisma que separou Moscou e Constantinopla após a proclamação da autocefalia ucraniana em 2018.

 

Uma tragédia totalmente cristã que precisava apenas de tempo, preguiça e vaidade para se tornar guerra; e os teve. E para se tornar catástrofe precisa das mesmas coisas (será que as terá?). Houve palavras corajosas: o papa Francisco condenou na encíclica Fratelli tutti a posse de armas atômicas. No início do ano, o Patriarcado de Moscou proibiu estender a tradicional bênção das armas aos mísseis atômicos, libertando-se de uma teologia eslava que considera a própria destruição prova de um destino eterno. O Patriarca Ecumênico Bartholomeos, exposto mais do que outros pelo papel mediador da Turquia no lugar de Israel, usou palavras fortes. Mas o ponto hoje não são as palavras. São os sinais da fé que implora misericórdia, que pede paz: mesmo com a voz de um, como demonstrou a oração do Papa solus durante o Covid.

 

Nesta pandemia de guerra, ir em peregrinação ao Santo Sepulcro diria pelo menos que alguém na voz de quem chora reconheceu a voz do crucifixo ressuscitado: que o Papa faça isso com Kirill, que o faça sozinho, que os outros o façam - não importa. Deus lê os corações, não as redes sociais.

 

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