20 Abril 2022
"Vimos nos últimos dias, mesmo nos grandes jornais, que muitos outros gostariam que fosse assim, e não apenas para se livrar de Francisco, tão teimoso com o Evangelho que não se deixa alistar no partido do descarte, mas do próprio papado, que se coloca no caminho para incomodar as guerras e os poderosos, enquanto "aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas" (Marcos 10, 42): seja Bento XV com os "massacres inúteis", o Papa João com Cuba, Paulo VI com a "guerra nunca mais" da ONU, e até mesmo João Paulo II, tão lamentado por Biden a Varsóvia, que se opôs ferozmente à primeira Guerra do Golfo feita por seu antecessor em 1991; hoje só por querer colocar uma mulher ucraniana e uma russa debaixo da cruz, arrisca-se, mas de forma invertida, a Inquisição", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 19-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao contrário do que escreveu Marx corrigindo Hegel em "18 Brumário", não é verdade que os grandes fatos da história se apresentam na primeira vez como uma tragédia, na segunda vez como uma farsa: na segunda vez eles podem se apresentar como uma tragédia ainda pior. É o que, após a Guerra do Golfo de 1991, acontece hoje com a Ucrânia.
O afundamento do “Moskva”, o principal navio da frota russa do Mar Negro, revelou a verdade desta guerra, que é a de uma guerra entre a Rússia e a OTAN (ou seja, os EUA e o Ocidente). De fato, todos os armamentos, estratégias e a gestão são da OTAN. O trágico, mas não tragicômico, Zelensky coloca apenas a bucha de canhão, os escombros de suas cidades destruídas, as pessoas em fuga. É uma guerra de longa duração, como prevê Biden; uma guerra que a Rússia não pode vencer e a OTAN não pode perder simplesmente porque os Estados Unidos destinam 663 bilhões de dólares anualmente para os gastos militares e a Rússia gasta sessenta e um.
Essa verdade da guerra na Ucrânia é difícil de dizer, como aquela denunciada em 1991 pelo "Comitê da verdade sobre a Guerra do Golfo", fundado pelo padre Balducci, Walter Peruzzi, Dacia Maraini, Franco Fortini e outros intelectuais da época. Contra a versão universalmente vigente de que era uma guerra pela soberania do Kuwait, aquele Comitê explicou que se tratava de uma guerra pela restauração da guerra, que há muitas décadas havia sido impedida pelo terror da recíproca destruição garantida pelas armas nucleares; assim que aquele terror terminou, devido ao desaparecimento, com o fim da União Soviética, de um dos dois contendentes, o Ocidente se reapropriou da guerra, a revendeu à opinião pública e a tornou a mãe de todas as guerras subsequentes, a gansa dos ovos de ouro dos fabricantes de armas.
A verdade desta guerra é que a perversa culpa de Putin desencadeou a armadilha da doutrina de segurança nacional estadunidense, que os Estados Unidos adotaram depois do 11 de setembro, aliás exatamente em seu primeiro aniversário, em setembro de 2002. Pensava-se que aquela doutrina tivesse sido abandonada por seu próprio extremismo, inspirado pela direita estadunidense, mas não foi assim.
Defendia como definitivo, no plano mundial, um liberalismo armado, afirmando que a segurança nacional dos Estados Unidos consistia na dominação sobre o mundo, que nenhum potência deveria não apenas superar, mas nem mesmo igualar o poderio militar dos EUA (nem mesmo Europa), que o modelo de sociedade para todas as nações deveria ser aquele expresso pelo trinômio "liberdade, democracia e livre iniciativa"; e se os países que não se conformavam a isso podiam ser aceitos provisoriamente até sua conversão, o mesmo não se aplicava aos "estados vilões", os "rougue States", que significa “Estados ameaça”; assim era o Iraque, que não por coincidência Madame Thatcher quis que fosse levado de volta à idade da pedra; era necessário criar um mundo sem eles, e precisamente esta, como para um novo messianismo, era a vocação dos Estados Unidos. Inclusive por meio de guerras preventivas, porque diante de um inimigo menos que humano, em quem não se pode confiar de nenhuma forma, “a melhor defesa é o ataque”.
Mas se um mundo perfeito podia ser pensado sem esses estados, ninguém pensava em um mundo sem a Rússia. Putin, assumindo a cultura de seu Inimigo e lançando sua "operação militar especial", não por acaso, mas inutilmente negada como guerra, reativou inesperadamente essa opção, semelhante à propiciada pelo frasco de armas letais em 2003 ostentada por Colin Powell na ONU. O problema sério para nós é que um mundo sem a Rússia, com todas essas armas nucleares em circulação, é muito mais perigoso do que um mundo sem o Iraque; mas se há uma lição que o fascismo realmente deixou, é que se deve viver perigosamente, e seus herdeiros não a recusaram.
Tal é, portanto, a verdade desta guerra, como esclareceu Biden desde o primeiro dia, dizendo que era preciso reduzir a Rússia à condição de “pária”, o que para quem conhece a Índia significa “intocável” e como “inexistente”; e foi uma falha de comunicação porque acabou dando razão às razões da guerra de Putin. Mas era necessário fazê-lo sem enviar os fuzileiros navais, porque em todas as outras ocasiões eles se revelaram contraproducentes, mas travando a guerra por outros meios, como um golpe de estado no Kremlin, a exclusão dos russos de todos os teatros da vida internacional comum e a carestia provocada ao povo pelo genocídio econômico.
Pensar em um “mundo sem” também é perigoso porque pode legitimar a ideia de uma libertação de outros distúrbios, como de fato já aconteceu em muitos outros setores. Isso nos lembrou um episódio da vida italiana nos tempos passados da República. Por ocasião de uma importante eleição administrativa em Roma, a Esquerda Independente promoveu um livro no qual vários intelectuais e políticos da época eram convidados a dizer qual era a "Roma que eu gostaria". E um deles, inspirado por um secularismo já obsoleto, escreveu simplesmente: “Eu gostaria de uma Roma sem papa”.
Vimos nos últimos dias, mesmo nos grandes jornais, que muitos outros gostariam que fosse assim, e não apenas para se livrar de Francisco, tão teimoso com o Evangelho que não se deixa alistar no partido do descarte, mas do próprio papado, que se coloca no caminho para incomodar as guerras e os poderosos, enquanto "aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas" (Marcos 10, 42): seja Bento XV com os "massacres inúteis", o Papa João com Cuba, Paulo VI com a "guerra nunca mais" da ONU, e até mesmo João Paulo II, tão lamentado por Biden a Varsóvia, que se opôs ferozmente à primeira Guerra do Golfo feita por seu antecessor em 1991; hoje só por querer colocar uma mulher ucraniana e uma russa debaixo da cruz, arrisca-se, mas de forma invertida, a Inquisição.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A verdade sobre a guerra. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU