08 Março 2022
“As únicas duas ocasiões em que, até o momento, se utilizou armas nucleares foram os casos de Hiroshima e Nagasaki. Desde então, o medo de uma guerra nuclear em grande escala sempre esteve em minha vida”, escreve Jared Diamond, geógrafo, historiador e biólogo evolucionário, professor da Universidade da Califórnia, em artigo publicado por El Espectador, 05-03-2022. A tradução é do Cepat.
No dia 6 de agosto de 1945, a explosão da bomba atômica de Hiroshima matou cerca de 100.000 pessoas imediatamente e milhares a mais morreram posteriormente em consequência das lesões, queimaduras e radiação. Se ocorresse uma guerra na qual Índia e Paquistão, ou Estados Unidos e Rússia ou China, atacassem uns aos outros empregando a maior parte de seu arsenal nuclear, ela acabaria instantaneamente com a vida de centenas de milhões de pessoas. Mas as consequências a longo prazo para o mundo seriam ainda maiores.
Mesmo no caso de que as explosões ocorressem exclusivamente na Índia e Paquistão, os efeitos atmosféricos da detonação de centenas de dispositivos nucleares repercutiriam em todo o planeta porque a fumaça, a fuligem e a poeira da nuvem de cogumelo nuclear bloqueariam a maior parte da luz solar por várias semanas, o que criaria uma espécie de inverno: uma queda abrupta das temperaturas em todo o mundo, a interrupção da fotossíntese nas plantas, a destruição de grande parte da vida animal e vegetal, a ruína global das plantações e, como consequência, fome generalizada.
O pior dos cenários possível recebe o nome de “inverno nuclear”, ou seja, a morte da maioria dos seres humanos não só por inanição, mas também por frio, doenças e radiação. As únicas duas ocasiões em que, até o momento, se utilizou armas nucleares foram os casos de Hiroshima e Nagasaki. Desde então, o medo de uma guerra nuclear em grande escala sempre esteve em minha vida. Ainda que o final da Guerra Fria, a partir de 1990, inicialmente significou uma redução dos motivos para abrigar esse temor, uma série de acontecimentos posteriores fez esse risco voltar a aumentar.
Que cenários poderiam levar ao uso de armas nucleares hoje? O relato que se segue é construído a partir de informações fornecidas por William Perry, tanto nas conversas que tivemos, como em seu livro My Journey at the nuclear brink (2015). A experiência de Perry em relação às armas nucleares se fundamenta em sua tarefa, entre outros muitos trabalhos, como analista da capacidade nuclear soviética em Cuba a serviço do presidente Kennedy, durante todos e cada um dos dias que durou a crise dos mísseis cubana, em 1962; como secretário de defesa dos Estados Unidos entre 1994 e 1997; como responsável das negociações sobre armamento nuclear e de outros com a Coreia do Norte, União Soviética-Rússia, China, Índia, Paquistão, Irã e Iraque, e como condutor das negociações para o desmantelamento das antigas instalações nucleares soviéticas na Ucrânia e Cazaquistão, após a dissolução da União Soviética.
É possível identificar quatro cenários que podem culminar na detonação de bombas nucleares por algum governo (nos três primeiros cenários) ou por algum grupo terrorista não governamental (o quarto cenário). O cenário mais analisado até o momento foi o de um possível ataque surpresa de um país que tenha um arsenal nuclear a outro país que também tenha armas nucleares. O objetivo de tal ataque surpresa seria a destruição completa e instantânea do arsenal nuclear do país rival, deixando-o sem meios para contra-atacar.
Esse foi o cenário mais temido durante as décadas da Guerra Fria. Dado que tanto os Estados Unidos como a União Soviética tinham capacidade nuclear suficiente para se destruir mutuamente, o único ataque “racionalmente planejado” seria um ataque surpresa que impossibilitasse a represália do rival. Portanto, diante de tal possibilidade, os dois países reagiram desenvolvendo múltiplos sistemas para o lançamento de armas nucleares, com a finalidade de eliminar o risco de que toda a sua capacidade de represália fosse subitamente anulada.
Por exemplo, os Estados Unidos têm três sistemas: silos de mísseis subterrâneos reforçados, submarinos e uma frota de aviões bombardeiros. Portanto, mesmo se um ataque surpresa soviético destruíssem cada um de seus silos – coisa pouco provável, pois os estadunidenses tinham muitos, entre eles alguns falsos, reforçados contra um possível ataque e de pequeno tamanho, então, os mísseis soviéticos teriam que contar com uma precisão quase impossível para acabar com todos eles -, os Estados Unidos ainda poderiam responder com seus bombardeiros e submarinos para destruir a União Soviética.
Como resultado, os arsenais nucleares dos Estados Unidos e da União Soviética proporcionavam a “destruição mútua assegurada” e nunca chegou a ser efetivado um ataque surpresa. Ou seja, por mais tentador que pudesse ser o objetivo de destruir a capacidade nuclear do rival, os estrategistas estadunidenses e soviéticos eram conscientes de que o lançamento de um ataque surpresa seria um gesto irracional, pois era impossível destruir todos os sistemas de ataque do rival e impedir que o mesmo respondesse destruindo o atacante.
No entanto, tais considerações racionais oferecem pouco consolo para o nosso futuro, porque na época contemporânea conhecemos vários dirigentes irracionais: talvez Saddam Hussein, no Iraque, e Kim Jong-un, na Coreia do Norte, além de alguns dirigentes da Alemanha, Japão, Estados Unidos e Rússia. Além disso, a Índia e o Paquistão hoje possuem somente sistemas terrestres. Não têm submarinos com capacidade para transportar mísseis. Assim, um dirigente que quisesse atacar a Índia ou o Paquistão poderia chegar a considerar que um ataque surpresa é uma estratégia racional que confere a possibilidade de anular a capacidade de represália do rival.
Um segundo cenário seria aquele em que, a partir de uma sucessão crescente de erros de cálculo sobre a possível resposta do governo rival, os generais de dois países que se enfrentam pressionassem seus presidentes a agir primeiro, o que culminaria em um ataque nuclear mútuo que nenhum dos lados desejava inicialmente. O principal exemplo disso é a crise dos mísseis de Cuba de 1962, na qual a equivocada opinião que Khrushchev, o primeiro-ministro soviético, formou do presidente Kennedy, durante a reunião que tiveram em Viena, em 1961, levou o primeiro a pensar erroneamente que poderia instalar mísseis soviéticos em Cuba sem qualquer consequência.
Quando os Estados Unidos detectaram os mísseis, os generais estadunidenses instaram Kennedy a proceder com sua imediata destruição (ação que acarretava um alto risco de represália soviética) e o advertiram que, em caso contrário, ele mesmo se arriscava a ter que enfrentar um impeachment. Felizmente, Kennedy optou por responder de forma menos dramática, Khrushchev também e, assim, evitou-se um apocalipse. Mas o desastre esteve muito perto de acontecer, como descobrimos mais tarde, quando as duas partes tornaram públicos os documentos sobre suas atividades naquele momento.
Por exemplo, o primeiro dia daquela semana de crise, Kennedy anunciou publicamente que qualquer lançamento de mísseis soviéticos de Cuba obteria “uma resposta de represália total [dos Estados Unidos] contra a União Soviética”. Mas os capitães de submarinos soviéticos tinham autorização para disparar torpedos nucleares sem a necessidade de consultar os dirigentes de Moscou. Um desses capitães pensou seriamente em lançar um torpedo nuclear contra um destroier estadunidense que ameaçava seu submarino. Só a intervenção de outros oficiais conseguiu dissuadi-lo. Se o capitão soviético tivesse realizado o lançamento, como era a sua intenção, Kennedy teria enfrentado uma pressão insustentável para efetivar represálias, o que por sua vez teria submetido Khrushchev a insustentáveis pressões para efetivar represálias e assim sucessivamente.
Um erro de cálculo desse tipo pode nos levar, hoje, a uma guerra nuclear. Por exemplo, a Coreia do Norte possui mísseis de médio alcance com capacidade de chegar ao Japão e Coreia do Sul, e chegou a lançar um míssil balístico intercontinental (ICBM) de longo alcance, projetado com o objetivo de chegar aos Estados Unidos. Quando a Coreia do Norte concluir o desenvolvimento de seu ICBM, pode desejar demonstrar com um lançamento em direção aos Estados Unidos, algo que este país consideraria uma provocação inaceitável, sobretudo se, por erro, o ICBM se aproximasse dele mais do que o previsto. Nessa situação, qualquer presidente estadunidense teria que enfrentar fortes pressões para efetivar represálias, o que por sua vez significaria uma pressão esmagadora sobre os líderes da China para efetivar represálias em defesa da Coreia do Norte, seu aliado.
Outro caso plausível de represálias não intencionais derivadas de um erro de cálculo poderia ocorrer entre o Paquistão e a Índia. Os terroristas paquistaneses já lançaram um letal ataque não nuclear contra a cidade indiana de Mumbai, em 2008. No futuro próximo, poderiam iniciar outro ataque que constitua uma provocação maior (por exemplo, sobre a capital da Índia, Nova Délhi). A Índia poderia considerar que por trás do ataque está o próprio governo do Paquistão. Os dirigentes indianos poderiam se ver pressionados a ordenar a invasão de alguma região fronteiriça com o Paquistão, com o objetivo de ali anular a ameaça terrorista. Os líderes do Paquistão se veriam, por sua vez, pressionados a utilizar suas armas nucleares táticas menores “só” contra a parte invasora indiana, talvez calculando erroneamente que a Índia consideraria “admissível” esse uso limitado das armas nucleares e não o julgaria merecedor de uma resposta de represália total, embora os dirigentes indianos se veriam pressionados a responder com seu próprio arsenal nuclear.
Em minha opinião, há certa probabilidade de que tais situações, que pode levar a uma guerra nuclear a partir de erros de cálculo, se materializem na próxima década. A principal incerteza é se os dirigentes do momento recuarão um passo, como ocorreu durante a crise dos mísseis em Cuba, ou se a escalada da tensão acabará se consumando.
O terceiro cenário que pode terminar em uma guerra nuclear consiste em que se faça uma leitura errada dos sinais de alerta dos sistemas técnicos. Tanto os Estados Unidos como a Rússia têm sistemas de alerta precoce para detectar o lançamento de mísseis de ataque pelo rival. Uma vez que os mísseis são lançados, estão a caminho e são detectados, os presidentes, estadunidense ou russo, dispõem de aproximadamente dez minutos para decidir se lançam um ataque em represália antes que os projeteis já no ar destruam os mísseis terrestres de seu país.
Uma vez a caminho, o lançamento dos projéteis não pode ser abortado. Isto deixa uma margem muito pequena para avaliar se o alerta precoce é real ou se é falso em razão de um erro técnico, bem como para decidir se deve ou não ser apertado um botão que acabará com a vida de centenas de milhões de pessoas. Mas os sistemas de detecção de mísseis, como qualquer tecnologia complexa, são suscetíveis a falhas em seu funcionamento e sua interpretação admite ambiguidades.
Sabemos de ao menos três alarmes falsos que foram emitidos pelos sistemas estadunidenses de detecção. Por exemplo, em 9 de novembro de 1979, o general do Exército dos Estados Unidos que atuava como oficial de vigilância do sistema de detecção telefonou no meio da noite para o vice-secretário de Defesa, William Perry, para dizer: “Meu computador de alerta está mostrando 200 ICBMs em voo da União Soviética em direção aos Estados Unidos”. Mas o general concluiu que provavelmente era um alarme falso, Perry não acordou o presidente Carter e este não apertou o botão, nem matou desnecessariamente cem milhões de soviéticos. Por fim, concluiu-se que o alerta era, certamente, um alarme falso devido a um erro humano: um dos técnicos havia inserido erroneamente no computador do sistema de alerta uma fita de treinamento que simulava o lançamento de 200 ICBMs soviéticos.
Também conhecemos o caso de ao menos um alarme falso emitido pelo sistema de detecção russo. Em 1995, o algoritmo de rastreamento automático do radar russo identificou erroneamente um foguete não militar lançado de uma ilha da Noruega em direção ao Polo Norte como um míssil lançado por um submarino estadunidense.
Tais incidentes ilustram algo importante. Os sinais de alerta não são inequívocos. É de se esperar que aconteçam alarmes falsos, como seguem acontecendo, mas também é possível que ocorram lançamentos reais e alarmes reais. Portanto, toda vez que um desses alertas dispara, o oficial de vigilância e o presidente dos Estados Unidos (e supostamente seus homólogos russos) precisam fazer a sua interpretação no contexto das condições atuais: é possível, na situação mundial atual, que os russos (ou os estadunidenses) assumam o terrível risco de iniciar um ataque que garantiria uma represália imediata e total?
Em 9 de novembro de 1979 não havia nenhum acontecimento internacional que pudesse motivar o lançamento de um míssil, as relações entre a União Soviética e os Estados Unidos não estavam em um momento problemático e tanto o oficial responsável pelo alerta como William Perry acreditaram que podiam interpretar aquele sinal como um alarme falso. Infelizmente, não é esse contexto tranquilizador que prevalece hoje. Esperávamos (ingenuamente) que o final da Guerra Fria diminuísse ao mínimo ou anulasse qualquer risco de explosão de uma guerra nuclear entre a Rússia e os Estados Unidos, mas o resultado foi, paradoxalmente, o oposto: o risco é hoje maior do que em qualquer outro momento que tenhamos vivido desde a crise dos mísseis em Cuba.
A explicação está na deterioração das relações e da comunicação entre a Rússia e os Estados Unidos, uma deterioração devida em parte a algumas políticas recentes do presidente russo Vladimir Putin e, em parte, à imprudência das políticas estadunidenses. Em fins dos anos 1990, o governo dos Estados Unidos cometeu o erro de subestimar a Rússia pós-soviética, pois a considerava um país frágil que não era mais digno de respeito. De acordo com essa atitude, os Estados Unidos ampliaram a OTAN de forma prematura para integrar as repúblicas bálticas que tinham pertencido à União Soviética, defendeu a intervenção militar da OTAN na Sérvia contra a forte oposição russa e colocou mísseis balísticos na Europa do Leste, supostamente como defesa contra os mísseis iranianos. Os líderes russos, compreensivelmente, sentiram-se ameaçados por estas e outras ações dos Estados Unidos.
A atual política dos Estados Unidos em relação à Rússia está ignorando a lição que os dirigentes finlandeses aprenderam acerca da ameaça soviética, após 1945: que a única forma de garantir a segurança da Finlândia era manter conversas francas com a União Soviética de forma constante e convencer os soviéticos de que era possível confiar na Finlândia e que a mesma não representava nenhuma ameaça.
Hoje, os Estados Unidos e a Rússia representam uma grande ameaça um para o outro: a de uma possível má interpretação que desencadeie um ataque não planejado com antecedência, porque não mantêm uma comunicação franca e constante e não estão conseguindo se convencer mutuamente de que não representam a ameaça de um possível ataque.
O último dos supostos cenários que poderia acabar no uso de armas nucleares seria aquele em que terroristas roubassem urânio, plutônio ou inclusive uma bomba de alguma potência nuclear ou que esta os entregasse voluntariamente, algo que seria mais provável nos casos de Paquistão, Coreia do Norte ou Irã. Depois, a bomba poderia ser introduzida ilegalmente nos Estados Unidos ou em países que fossem o seu objetivo e ser detonada.
Durante a preparação para o atentado contra o World Trade Center, em 2001, a Al-Qaeda tentou adquirir armamento nuclear para utilizar contra os Estados Unidos. Talvez esses terroristas pudessem ter conseguido urânio ou uma bomba sem contar necessariamente com a ajuda do país fabricante, caso a segurança do local em que estão armazenados não fosse adequada.
Por exemplo, no momento da dissolução da União Soviética, na república soviética que se tornou o novo Cazaquistão independente, restavam 600 kg de urânio soviético com qualidade suficiente para permitir a fabricação de uma bomba. O urânio era guardado em um armazém que estava protegido por pouco mais do que uma cerca de arame e poderia facilmente ter sido roubado.
No entanto, há mais probabilidades de que os terroristas obtenham os materiais necessários para fabricar uma bomba graças a um “trabalho interno”, ou seja, com a intervenção de algum membro do staff dos locais onde as bombas são armazenadas ou dos próprios dirigentes do Paquistão, Coreia do Norte ou Irã.
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O que o mundo espera com as armas nucleares? Artigo de Jared Diamond - Instituto Humanitas Unisinos - IHU