30 Setembro 2021
Para o sociólogo Josselin Tricou, especialista em questões de gênero na igreja, os problemas de crimes de pedofilia na igreja estão ligados à recusa em enfrentar as relações de poder e à ausência da noção de consenso na visão da sexualidade.
A entrevista é de Camille Bauer, publicada por l'Humanité, 21-02-2019. A tradução da versão italiana, é de Luisa Rabolini.
Josselin Tricou é professor de sociologia das religiões na Universidade de Lausanne (Suíça) e doutor em ciência política e estudos de gênero, e acaba de publicar o livro “Des soutanes et des hommes. Enquête sur la masculinité des prêtres catholiques” (Ed. PUF, “Das Batinas e dos homens. Pesquisa sobre a masculinidade dos padres católicos”, em tradução livre), abordando a construção da masculinidade do clero por parte da Igreja e suas consequências desde um ponto de vista histórico, sociológico e político.
Na sua opinião, qual é o significado da cúpula sobre a pedofilia que se abre hoje no Vaticano?
Para a igreja, que tem que enfrentar um novo caso de abuso sexual quase todas as semanas, é uma espécie de chamada para a última chance. Esta cúpula indica a vontade de ir além das situações locais para uniformizar a tomada de consciência e os procedimentos. O fato de, até agora, os discursos proferidos sobre o assunto terem sido pouco seguidos por efeitos, aumentou o descrédito da instituição. Hoje, a própria credibilidade da igreja está em jogo. A dificuldade deriva do fato de que os bispos são independentes em suas dioceses. Eles não são obrigados a implementar o que o papa decreta. Além disso, aqueles que estão no cargo já estão atuando há muito tempo. E por anos, a igreja aplicou a mesma rotina organizacional.
Diante de um padre desviante, independentemente de seu desvio, a instituição se limitava a transferi-lo. Muitos dos bispos que se reúnem hoje aplicaram esse método, não por cinismo, mas porque era assim que se fazia. Ao reuni-los fisicamente e garantir que ouçam a mesma coisa, o papa, que tem muitas pessoas contra ele na administração central, pode esperar limitar essas disfunções locais e esses hábitos.
Por que a igreja demorou tanto para perceber a magnitude do problema?
Um dos freios essenciais para a tomada de consciência da gravidade dos fatos é a visão da sexualidade e do poder que reina na instituição. No lado de dentro, o poder é sempre concebido como um serviço. Os padres são definidos como "ministros", que em latim significa servos. Esse léxico, como o da família - falamos de "pai", "irmão", "irmã" - torna as relações de poder menos evidentes.
Tanto mais que as pessoas que o possuem são percebidas como sagradas e sacrificadas - pelo celibato e pela pobreza. Isso nos impede de ver que os padres são pessoas de poder e que, portanto, podem cometer abusos de poder. Soma-se a isso o olhar da igreja sobre as questões sexuais, cada vez mais distante do resto da sociedade. Na visão da igreja, o consenso nunca foi considerado um problema. A restrição é central, uma vez que a única prática sexual legítima é aquela realizada por um casal casado estável, com vistas à procriação. A noção de estupro, por exemplo, só foi incluída no catecismo muito recentemente. E para o clero, a cultura sexual consiste na proibição total, sem nenhuma atenção à gradualidade. Isso significa que a masturbação e o estupro de crianças são colocados no mesmo plano, sem grande distinção entre os dois comportamentos.
Alguns acreditam que o celibato dos padres explica esses abusos ...
É uma via de explicação errada. Existem pessoas celibatárias fora da igreja sem que isso acarrete nenhum problema. O problema da igreja, de fato, é colocar em relação o poder com questões da sexualidade. A obtenção desse poder e o seu exercício legítimo não se faz em função de competências profissionais, mas sim da capacidade de ser abstinentes ou, em todo o caso, de dar a impressão de ser abstinentes. Quando o poder está ligado à sexualidade, é muito provável que ocorram abusos de poder nesse setor ... Por isso, e pode ser visto pelos depoimentos de freiras que começam a se manifestar, não são só as crianças que são envolvidas.
Excluídas do poder, as mulheres na igreja também são potencialmente vítimas daqueles abusos. O que está em jogo é justamente uma questão de dominação. Na percepção da criança, a igreja não está mais atrasada do resto da sociedade. A “santuarização” (sanctuarisation) dos mais jovens, assim como a judicialização dos crimes de pedofilia, datam apenas da década de 1980. A igreja não é a única instituição em que, até recentemente, o fato de uma criança ser molestada não era considerado um grande problema.
Qual o papel que desempenha a cultura do segredo?
A cultura do segredo é muito importante na igreja. Há um fechamento muito forte do clero em si mesmo e a divisão entre os leigos e o clero é muito forte. Além disso, não existe nenhum contrapoder. Diante dessa situação, hoje existem duas tendências. Por um lado, vemos a criação, sob pressão externa, de uma espécie de sociedade civil. Os leigos se atrevem a tomar a palavra e perguntar aos responsáveis eclesiais sobre a gestão do problema. Por outro lado, perante a dessacralização dos grandes poderes institucionais, de que sofre particularmente a Igreja, surge a tentação de fortalecer a cultura do segredo.
Em questões de sexualidade, a igreja trava lutas no exterior, com o objetivo também de silenciar as pessoas no interior. A homossexualidade é um bom exemplo. A luta do Vaticano contra a teoria do gênero e suas resultantes políticas locais, como a Manif para todos, permitem tanto politizar os leigos, como mobilizar os fiéis e silenciar os padres, em particular os padres homossexuais, que, no entanto, são sobrerrepresentados no clero.
A igreja pode se reformar nessas questões?
Todos os estudos sérios sobre os casos de pedofilia nos Estados Unidos, na Austrália ou na Alemanha foram feitos fora da instituição. A igreja está tão atolada em escândalos que não pode fazer isso sozinha. Precisa daquele olhar crítico externo. Mas tem dificuldade para aceitá-lo porque desenvolveu a mentalidade de fortaleza sitiada e uma tendência a ver qualquer crítica como uma agressão.
O desafio da grande assembleia de hoje é também o de aceitar atuar contrapoderes que sejam completamente independentes da hierarquia. Uma verdadeira revolução para uma instituição na qual o papa e cada bispo, em seu próprio nível, detêm os poderes executivo, legislativo e judiciário. Para lutar contra os abusos, a igreja precisaria adotar uma dissociação dos poderes e entrar em uma espécie de cultura democrática. É muito complicado para ela.
A proposta de uma comissão parlamentar de inquérito foi rejeitada na França. Como você explica isso?
A solução do conflito entre a Igreja e o Estado na França após o choque da Revolução é uma espécie de estranhamento mútuo. A laicidade, quando foi inscrita na lei de 1905, é uma lei conciliatória. Sem dúvida, o medo de reabrir a guerra das duas Franças teve influência sobre alguns senadores, fossem eles católicos ou "ateus-devotos", como são chamados, ou seja, pessoas não crentes, mas impregnadas de cultura católica.
Instaurar uma comissão que tivesse apenas a igreja como objetivo equivalia a reabrir a caixa de Pandora. Vemos que em relação ao Islã, uma religião minoritária, o Estado se permite intervir nas questões dentro da religião. Certamente era mais difícil para o catolicismo, religião majoritária e fortemente presente na cultura. Havia o medo de parecer anticlerical e de reabrir todo o imaginário ligado a esse pensamento. O risco era também o de mobilizar contra o governo toda aquela franja da população que participou da Manif para todos, ou seja, pessoas para quem qualquer projeto legislativo ou político, longe de sua convicção de que França e cultura católica sejam consubstanciais, é percebido como um ataque. Com o risco de que voltassem a protestar nas ruas. No final, foi instituída uma simples comissão de informação cobrindo todos os lugares de instrução e educação.
O fato de que também a homossexualidade estivesse encoberta na igreja desempenhou um papel em silenciar as questões de pedofilia?
Nos textos normativos do Vaticano sobre os padres, existe um texto famoso chamado "Crimen sollicitationis", que trata extensivamente dos abusos sexuais dos padres em sua qualidade de padres. Nesse texto, escrito em 1922, publicado em 1962, é definido o crime de aliciamento, que consiste em desviar o sacramento da confissão para obter favores sexuais do penitente. Mas aquele texto especifica que são similares a esse crime outras formas de crimes sexuais denominados "crimen pessimum", que estão listados ao final: homossexualidade, pedofilia e zoofilia. Acima de tudo, todos os três são colocados no mesmo nível.
Não se trata de dizer, como fazem as pessoas da direita, que é a sobrerrepresentação dos homossexuais no clero que explica os abusos de pedofilia. Mas tudo isso faz parte de uma cultura da confusão e do medo e reforça as práticas do segredo em torno das questões da sexualidade, que hoje recai negativamente na igreja, em uma sociedade onde o critério da boa sexualidade é o consenso entre os indivíduos. Portanto, não é necessário ver uma relação direta, mas entender que tudo contribui para isso e que todos estão ligados ao segredo. Uns temem que outros revelem algo sobre eles, e isso reciprocamente, mesmo quando algumas coisas não são da mesma ordem aos olhos da lei e da forma secular de pensar: como uma relação consensual entre adultos do mesmo sexo e os crimes de pedofilia. É sobretudo por isso que se tem a impressão, principalmente de fora, de uma multiplicação das declarações sem que nada aconteça. Era preciso esperar que a igreja percebesse tudo isso.
Na ausência de reformas, a igreja corre o risco de se reduzir a uma base cada vez mais sectária?
Na França, e mais em geral no Ocidente, corre-se o risco de passar para um modelo sectário no sentido sociológico, isto é, para um agrupamento de fiéis convictos, mas de forma contracultural, até radical. Esse risco é percebido pela instituição e existe uma tensão dentro da Igreja na França entre esta lógica de afinidade e aquela da manutenção do projeto de civilidade paroquial aberta a todos, com uma vasta presença territorial. Esse risco parece bastante presente nos discursos do Papa Francisco. Mas a sectarização radical do catolicismo não é uma fatalidade.
Depende muito do contexto nacional. Se considerarmos a reação ao projeto de lei “casamento para todos”, por exemplo, o contexto pode ter efeitos muito fortes. Em Portugal, por exemplo, um país mais católico do que a França, as leis sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo foram aprovadas com muito mais facilidade. Quando Portugal saiu da ditadura, a Igreja Católica formou alianças com o Partido Socialista.
Tem, portanto, uma tradição de aceitação do consenso democrático, o que não a impede de ser uma força social. Na França, ao contrário, desde os anos 2000 o catolicismo tem firmado alianças muito fortes com a direita, uma direita que tenta redefinir seu software ideológico, e estamos assistindo a uma espécie de instrumentalização mútua, no sentido de que o católico identitário impõe posições políticas conservadoras à direita e a direita instrumentaliza o catolicismo como um valor político, como traço identitário da nação.
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“O problema da igreja é ligar o poder a questões da sexualidade”. Entrevista com Josselin Tricou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU