28 Setembro 2021
“Ao sacralizar o padre, a Igreja o converteu em um ser aparte, desprovido de direitos e dessexualizado”. Esta é uma das conclusões as quais chegou o sociólogo Josselin Tricou em sua análise da “masculinidade atípica” daqueles que a Igreja Católica situa acima de sua hierarquia. Professor de sociologia das religiões na Universidade de Lausanne (Suíça) e doutor em ciência política e estudos de gênero, Tricou acaba de publicar “Des soutanes et des hommes. Enquête sur la masculinité des prêtres catholiques” (Ed. PUF, “Das Batinas e dos homens. Pesquisa sobre a masculinidade dos padres católicos”, em tradução livre), ensaio que aborda a construção da masculinidade do clero por parte da Igreja e suas consequências desde um ponto de vista histórico, sociológico e político.
A reportagem é de Jordi Pacheco, publicada por Religión Digital, 28-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Como ator comprometido, vi o aumento das tensões em torno das questões de gênero dentro do catolicismo, em particular entre os sacerdotes católicos, já antes de 2012 e as principais mobilizações contra o ‘casamento para todos’”, conta Tricou em uma entrevista concedida a Luc Chatell, do Le Monde. “Como sociólogo – aponta – intriga-me um enigma: o fato de que a Igreja Católica tenha estabelecido um sistema de gênero que não se corresponde com o das sociedades que a englobam. Este sistema não tem dois, mas três gêneros: o leigo, a leiga e o clérigo. Isso é o que chamei no livro de ‘movimento católico do gênero’, como chamamos um desfoque deliberado na fotografia”.
“Porém, este sistema é paradoxal. Por um lado, a Igreja Católica desenvolve um discurso segundo o qual existe uma natureza masculina e outra feminina, com uma diferença irrecuperável entre ambas, baseada na necessária complementariedade dos sexos e a heterossexualidade obrigatória. Por outro lado, estabelece uma organização interna completamente diferente. De fato, a masculinidade que a Igreja situa por cima da sua hierarquia de gênero, a dos padres e religiosos, é uma construção atípica”, adverte o sociólogo.
Tricou afirma que em nossas sociedades ocidentais, a masculinidade foi impensada durante muito tempo “porque era a norma”. Como tal, defende, era onipresente, evidente. “Isso é o que demonstraram muito bem as pesquisadoras feministas dos anos 1970 e 1980, especialmente Nicole-Claude Mathieu (1937-2014). Ademais, enquanto a população levava a sério os padres – sobretudo porque estavam relacionados com os notáveis –, não se suspeitava de sua masculinidade atípica, degenerada e dessexualizada e, portanto, não se questionava”.
“Esta construção centenária é tão poderosa que muitos pesquisadores interessados no catolicismo – do qual frequentemente procedem – a haviam interiorizados eles próprios. Porém, creio que também há uma explicação ligada à estruturação do campo acadêmico: os recentes estudos de gênero e sexualidade se desenvolveram à distância da pesquisa sobre as religiões, que é mais antiga e legítima, ainda que em declínio”, defende o pesquisador.
O sociólogo destaca o fato de que a Igreja Católica, apesar de manter um discurso de condenação, há muito é uma espécie de refúgio para os homossexuais. Uma tese que está em sintonia com a de Frédéric Martel, autor de “Sodoma, poder e escândalo no Vaticano”. “Ao estabelecer esse ‘movimento de gênero’ e a ideia de que os fiéis são destinados ao casamento heterossexual ou à vida consagrada no celibato, a Igreja Católica restringiu o horizonte de possibilidades para homens e mulheres que não se sentem atraídos pelo casamento heterossexual: o sacerdócio ou a vida religiosa”, explica. “Dito isso, o clero tem sido um espaço protetor em alguns lugares e às vezes em um mundo marcado pela homofobia generalizada”.
“Uma das maneiras pelas quais isso funciona é por meio da direção da consciência. O diretor da consciência é aquele que o ouve e orienta, e é obrigado a guardar o segredo. Para um certo número de seminaristas e jovens religiosos, o intercâmbio com o diretor da consciência foi um espaço onde puderam expressar seus desejos e até suas práticas, sem risco de represálias”, detalha Tricou. “Deve-se notar também que para muitos padres e religiosos, o fato de serem homossexuais, se conseguem verbalizá-lo, não parece tão grave em si, pois é a abstinência – a ausência da sexualidade – que a Igreja católica os obriga, seja qual for a sua orientação sexual”.
Para Tricou, uma das condições que permitiu a manutenção desse sistema é a obrigação desses padres e religiosos de manter em segredo sua homossexualidade. “A Igreja foi moldada ao longo dos séculos tanto por uma forte presença de padres homossexuais quanto por um discurso muito heteronormativo. Os padres homossexuais organizaram suas vidas neste espaço de relativa proteção e realização, e às vezes até de promoção social, aquela sociedade que eu não gostaria os ofereceram”, conclui.
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“Durante muito tempo a Igreja foi um refúgio para os homossexuais”, afirma o sociólogo Josselin Tricou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU