12 Agosto 2021
"Agora é a hora dos fatos. Deixando de lado a questão ambiental, que merece uma análise à parte, são três os campos nos quais Draghi é chamado a se confrontar", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 11-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe um padrão com o qual a ação do governo Mario Draghi terá que se medir, em minha opinião. O padrão não fica longe do Palazzo Chigi, sede do governo italiano, basta atravessar o Tibre. Está localizado no Vaticano e consiste na mensagem pós-pandêmica de Francisco. As relações Estado-Igreja nada têm a ver com isso, a sobreposição de uma fé sobre a política nada tem a ver com isso. Trata-se de outra coisa.
Na explosão da crise causada pelo Covid, o Papa Bergoglio foi o único líder internacional a levantar a questão do modelo de desenvolvimento sobre o qual orientar a reconstrução após a catástrofe. Francisco se move pelo impulso evangélico, mas o tema é explicitado por ele em termos totalmente seculares: a recuperação, a recovery, terá que proceder de acordo com os critérios selvagemente neoliberais de "antes" ou é preciso trabalhar para um modelo socioeconômico que supere as "iniquidades” (como ele as chama), que seja inclusivo, sustentável e não trate camadas inteiras sociais como descarte?
O exemplo mais apropriado é o que aconteceu na Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Naquela ocasião, não se reconstruiu a realidade socioeconômica anterior, mas optou-se por um modelo inovador, envolvendo as classes populares e que lhes garantisse possibilidades de ascensão: a economia social de mercado, o Welfare State, o Estado de bem-estar social.
Para Francisco, um salto de tal tipo é necessário também hoje e, como profeta desarmado, lançou seu desafio desde a primeira e impressionante aparição no ano passado na Praça São Pedro deserta. Alguns políticos pareceram retomar suas reflexões. Mario Draghi, em seu discurso no Encontro Rimini 2020, falou de um “crescimento que respeite o meio ambiente e não humilhe a pessoa”. E em seu discurso de posse no Senado, citou especificamente Francisco, evocando uma "nova abordagem" na economia para conciliar proteção do ambiente, progresso e bem-estar social.
Agora é a hora dos fatos. Deixando de lado a questão ambiental, que merece uma análise à parte, são três os campos nos quais Draghi é chamado a se confrontar.
Pensar que o “crescimento” possa resolver tudo é um equívoco e muitas vezes mera propaganda. Nas últimas décadas, as desigualdades cresceram e, depois da pandemia, aumentaram. Proteger a dignidade do trabalho significa enfrentar a adoção de um salário mínimo. Existe na Alemanha e nos Estados Unidos, não há razão para que ainda não tenha sido introduzido entre nós.
A proteção do trabalho exige também a superação dos contratos temporários em sua imensa dimensão de massa. Existe uma mentira subjacente que cerca o tema. Chama-se "flexibilidade". Seria a exigência de recorrer a mão-de-obra temporária para situações contingentes. Mas quando uma grande porcentagem da força de trabalho é mantida permanente e sistemicamente sob a chantagem de contratos temporários, a flexibilidade não tem nada a ver com isso. É apenas a vontade de manter uma parte dos empregados como massa de manobra indefesa. Também se aplica às falsas “parte IVA” (CNPJ para trabalhadores autônomos, NT), uma mentira institucionalizada.
É também urgente garantir a responsabilidade das empresas contratantes no que diz respeito aos direitos contratuais, previdenciários e de proteção de quem trabalha na subcontratação. Duas mortes por acidentes de trabalho por dia é uma média assustadora. Em suma, não basta falar de coesão social em uma entrevista coletiva, se depois uma visão diferente daquela neoliberal não se manifesta em mudanças concretas de regras e direitos.
Aí chegou o verão. Alguém viu o governo empenhado em contrariar a contratação ilegal exploratória (“caporalato”), que viceja à luz do sol em campos já identificados, pertencentes a proprietários conhecidos? Draghi foi à prisão de Capua Vetere para condenar a violência nas prisões. Seria um grande sinal se ele fosse (ao sul) para um dos campos onde trabalham os novos escravos ou (ao norte) em uma das empresas onde é igualmente empregada a contratação ilegal. Derrubar a prática da condescendência institucional às violações cotidianas dos direitos de quem trabalha daria um impulso extraordinário às gerações jovens e menos jovens, estimulando perspectivas de vida novamente ascendentes. Porque a economia é como as Olimpíadas, quem é maltratado e desnutrido não leva medalhas para casa.
O segundo termo de comparação com o qual o governo Draghi será medido é o dos impostos. O "bem comum" é a tecla sobre a qual os pontífices da época contemporânea, especialmente Wojtyla e Bergoglio, batem e rebatem. O Covid deixou isso bem claro.
Quem paga as vacinas, quem mantém a rede de medicina local, quem financia hospitais, terapias intensivas, pesquisa científica, vacinas? O Papa Bergoglio exaltou o sistema de saúde universal e gratuito como um elemento da civilização. Mas se não houver solidariedade fiscal progressiva, o estado não conseguirá mantê-lo.
É significativo que a questão seja hoje nos EUA objeto de empenho do governo Biden (que pretende tributar mais as grandes riquezas), enquanto na Itália é ignorada. A resposta dada por Draghi à tímida proposta Letta sobre uma pequena taxa patrimonial, teve um desagradável sabor populista. Francamente, pouco condizente com o estilo pelo qual o premier é conhecido.
A questão crucial sobre a qual a modernização ou não da Itália será avaliada e sua possibilidade de atender às crescentes exigências de um Estado de bem-estar é: como pretende agir o governo Draghi face a uma evasão fiscal de 110 bilhões de euros? O que está pronto para mudar concretamente no que diz respeito à imperante e escandalosa imunidade daqueles que sonegam, o que fará para alcançar uma rigorosa justiça fiscal com penalidades sérias, como nos EUA?
O alerta de Francisco de que "ninguém se salva sozinho" é totalmente realista. Não podemos pensar em proteger o Ocidente se bilhões de homens e mulheres em outros continentes forem abandonados à fúria do vírus, devido aos meios limitados de seus sistemas de saúde. O mundo é intercomunicante. Joe Biden havia acolhido o apelo lançado pelo Papa Bergoglio, por mais de cem nações sob a liderança da Índia e da África do Sul, do secretário-geral da Organização Mundial da Saúde para uma suspensão das patentes das vacinas anti-Covid. Na reunião do G20 em maio passado, a maioria dos participantes colocou-se de lado. França e Alemanha estão remando contra. Enquanto isso, a Pfizer aumentou os preços em 25% e a Moderna em 10%. É ilusório pensar que a questão esteja encerrada. O governo Draghi de que lado está?
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A mensagem pós-pandêmica do Papa Francisco convoca o governo a se confrontar com três pontos. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU