05 Julho 2021
"Evidentemente a transição de época vivida agora pelo catolicismo é magmática porque o próprio mundo, no fracasso da embriaguez neoliberal e no desmantelamento da ilusão de que a globalização levaria todos ao paraíso, parece que se está vivendo uma fase líquida sem perspectivas, passando por uma remodelação confusa em que o grito dos populistas promete salvação, mas na realidade (como dizia o jesuíta iluminado Bartolomeu Sorge) no interesse concreto de uma casta restrita", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 03-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“La Chiesa brucia. Crisi e futuro del cristianesimo”
[A Igreja queima. Crise e futuro do cristianismo,
em tradução livre] (Ed. Laterza), escrito por Andrea Riccardi
É o livro que todo bispo deveria manter em sua mesinha de cabeceira, todo católico ter em mente, todo leitor de qualquer tendência - interessado no destino da Igreja como instituição - deveria consultar para se informar sobre o vento da história. Porque enquanto os noticiários se fixam em momentos isolados do pontificado bergogliano, a Igreja Católica está há 70 anos imersa em um processo de transformação que tem características de uma transição de época, só que ninguém imagina aonde vai chegar.
Em seu livro La Chiesa brucia? Crisi e futuro del cristianesimo (A Igreja queima? Crise e futuro do cristiasnismo, em tradução livre, ed. Laterza), o historiador Andrea Riccardi resume a longa onda das últimas décadas, analisando o curso de uma crise - inclusive nas respostas dadas pela instituição - que está em pleno andamento. Grandes pontífices como Paulo VI e João Paulo II, João XXIII e Francisco mostraram que são capazes de se colocar no cenário mundial, colocando-se como interlocutores da sociedade moderna mas, entretanto, a crise estrutural da Igreja como instituição e a comunidade de povo, aparato e associação religiosa tradicional foi em frente.
Já no final da década de 1940, o cardeal Suhard de Paris lançava o alarme sobre um possível "declínio" da Igreja e de fato - apesar do Concílio Vaticano II - o declínio começou seu curso. Na França, a frequência à missa dominical é de 3-4%, os padres caíram de 49.100 (1965) para 11.350 em 2017. Na Espanha, apenas 10% dos fiéis vão à missa aos domingos, os padres caíram de 25.972 (1965) para 16.334 em 2017, mas dez por cento vêm de outros países.
Na Alemanha, de 2000 a 2019, os padres caíram de 17.129 para 12.893. Apesar da força de organização eclesiástica e do empenho do laicado alemão, a participação no serviço dominical também aqui está em forte queda; em 1950, mais da metade dos católicos ia à missa, em 2019, 9 por cento. Na Itália. que se vangloria de ser um país ainda fortemente católico, a prática dominical se mantém em 19 por cento, mas muitos sociólogos argumentam que na verdade o número é menor. O certo é que, de acordo com uma pesquisa da Ipsos, o número de pessoas que se declaram não aderentes a nenhum culto subiu para 30%. O mundo da juventude está na linha da frente da não crença, oscilando nas várias faixas etárias entre 43 e 48 por cento.
A situação na Europa está difícil, ressalta Riccardi, que como líder da Comunidade de Santo Egídio tem uma visão internacional. E certamente não melhorarão o destino do cristianismo os experimentos nacional-clericais em curso na Hungria e na Polônia ou o pacto visceral feito nos Estados Unidos entre o populismo trumpiano e o fundamentalismo evangélico e católico.
O número de padres está caindo, como vimos, as ordens religiosas masculinas estão dramaticamente se empobrecendo, as ordens religiosas femininas também estão diminuindo rapidamente. Mas não se trata apenas de números. A crise atinge a célula vital, que ao longo dos milênios tem sido a paróquia. Investe a relação outrora profunda entre o imaginário religioso e o papel do homem, investe a função outrora reguladora da Igreja na esfera sexual e familiar. Revela-se na revolta da mulher contra o clericalismo masculino. A crise atinge os próprios conceitos de obrigação, mandamentos, sacrifício, penitência. Há uma perda da memória (que afeta dramaticamente toda a esfera social), uma ruptura na transmissão de valores ou pelo menos de confronto sobre valores entre pais e filhos, houve uma incapacidade - nota Riccardi também com certo grau de surpresa - de pais crentes em transmitir às novas gerações o legado vivificante do Concílio Vaticano II.
Acima de tudo, domina o que o economista Stefano Zamagni, presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, define como a "segunda secularização". Onde a primeira secularização é aquela que abala o papel da religião, enquanto a segunda abala a relação entre o indivíduo e a sociedade. O resultado em ambos os casos é um desencanto generalizado.
A Igreja queima? Sim. Riccardi enfaticamente destaca que - quaisquer que sejam os caráteres e o húmus cultural dos vários papas de Paulo VI até hoje, aliás, começando mesmo com Pio XII - a intuição de que a Igreja deveria se tornar missionária novamente, evangelizar ou lançar uma "nova evangelização" como o Papa Wojtyla exortava ou ir para as periferias, como pede o Papa Bergoglio, não levou a uma reversão da situação. Apesar do dinamismo de muitas instituições, associações e iniciativas católicas, não se verificou uma nova expansão da massa de praticantes nas últimas décadas. O dado efetivo é esse. As igrejas, que estão se esvaziando, dão testemunho disso.
Evidentemente a transição de época vivida agora pelo catolicismo é magmática porque o próprio mundo, no fracasso da embriaguez neoliberal e no desmantelamento da ilusão de que a globalização levaria todos ao paraíso, parece que se está vivendo uma fase líquida sem perspectivas, passando por uma remodelação confusa em que o grito dos populistas promete salvação, mas na realidade (como dizia o jesuíta iluminado Bartolomeu Sorge) no interesse concreto de uma casta restrita.
E, no entanto, além dos fracassos, quedas, abusos clericais e delírios de onipotência dos neo-tridentinos, o catolicismo mantém sua vitalidade prodigiosa. Do Papa Francisco às freiras perdidas nas favelas do Terceiro Mundo. Riccardi afirma: “A Igreja, com as suas limitações, continua a ser um grande recurso no deserto da solidão de tantas periferias... Paradoxalmente, são quase só os ambientes da Igreja que no território continuam a realizar reuniões e não aceitar a mera dimensão virtual". Em suma, a relacionar-se com os homens e as mulheres como eles são. Em carne e osso.
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A Igreja queima? Sem dúvida. Mas não subestime a sua vitalidade. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU