Um grande trecho de floresta tropical foi desmatado e incendiado próximo à divisa da Terra Indígena Wawi, vizinha ao Parque Indígena do Xingu.
A queimada foi uma de muitas realizadas para limpar terras para o cultivo de soja, a maioria delas legalizada, à medida que a demanda pela soja faz com que os produtores se embrenhem cada vez mais na floresta e até mesmo em reservas indígenas e áreas protegidas.
A fiscalização contra a destruição florestal tem sido fragilizada no nível federal, devido a cortes orçamentários e afrouxamento das restrições por parte do governo do presidente Jair Bolsonaro.
As queimadas ameaçam agravar problemas de saúde em comunidades indígenas causados pela pandemia da covid-19, enquanto o uso de agrotóxicos nas plantações de soja trazem danos à saúde em longo prazo.
A reportagem é de Ana Ionova, publicada por Mongabay, 10-08-2021. A tradução é de Eloise de Vylder.
As colunas de fumaça espessa se estenderam por quilômetros no estado do Mato Grosso, cobrindo a densa floresta ao redor. Logo cruzaram o rio e entraram na Terra Indígena Wawi, cobrindo com uma nuvem negra os telhados de palha da aldeia Khikatxi.
Apenas alguns meses antes, os povos indígenas da área reportaram ter ouvido o zumbido de motosserras enquanto o dossel que cobria cerca de 365 hectares era devastado, provavelmente para dar lugar a mais uma plantação de soja, dizem fontes locais. No fim de junho, a fumaça densa invadiu a aldeia de Kamikia Kĩsêdjê.
“Toda a área estava em chamas, bem na fronteira do nosso território”, diz Kamikia, cineasta e fotógrafo que vive em Khikatxi, aldeia que abriga cerca de 600 indígenas. “E [o fogo] estava tão perto da margem do rio que ficamos muito preocupados. Aqui, usamos a floresta e o rio para nossa sobrevivência.”
Fumaça da área desmatada e queimada se espalha sobre a Terra Indígena Wawi. (Foto: nome do fotógrafo)
A área incendiada, dentro do município de Querência, fica a cerca de 8 quilômetros da aldeia e a apenas um quilômetro da divisa da TI Wawi, uma área de 150 mil hectares reservada para uso exclusivo dos povos Kĩsêdjê e Tapayúna, vizinha ao Parque Indígena do Xingu. Eles retornaram para seu território ancestral há mais de duas décadas, depois de uma longa luta para ter os direitos a sua terra reconhecidos.
Contudo, apesar da proximidade com o território, o desmatamento da floresta foi legal, autorizado pela Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema). Proprietários de terra na Amazônia têm permissão legal para desmatar parte de sua propriedade desde que mantenham 80% de floresta intacta. A região que foi destruída também fica numa área disputada que as comunidades indígenas querem que seja reconhecida como parte de seu território, embora o pedido de expansão esteja paralisado.
“É um crime do Estado – permitir que esta área imensa seja desmatada tão perto da terra indígena”, diz Ricardo Abad, analista do Instituto Socioambiental (ISA), ONG que defende a diversidade ambiental e os direitos dos povos indígenas e tradicionais. “Mas não há nenhuma lei que previna isso diretamente.”
A destruição em Querência faz eco à devastação mais ampla que acontece em toda a Amazônia brasileira, onde o desmatamento atingiu a maior taxa em 14 anos em maio. Especialistas também estão preocupados com a possibilidade de uma temporada especialmente ruim de queimadas devido à pior seca no país em mais de 90 anos, quando espera-se que os incêndios florestais ultrapassem as taxas dos últimos dois anos, que já estavam acima da média.
Em Querência, onde as florestas estão cada vez mais dando lugar à soja, mais de 36 mil alertas de desmatamento foram registrados até agora neste ano pela Global Land Analysis e o laboratório Discovery da Universidade de Maryland. A maior parte da perda florestal ficou concentrada ao longo dos limites da reserva Wawi.
“Esta área deveria ser considerada como terra indígena”, diz Kamikia. “Mas está se transformando em cinzas. Tudo foi desmatado para plantar soja.”
Dados de satélite da Universidade de Maryland visualizados pela Global Forest Watch mostram que a maior parte do desmatamento da área aconteceu em maio de 2021. (Foto: Global Forest Watch | Mongabay)
A destruição da floresta não é novidade em Querência, que tem um longo histórico de extração de madeira, pecuária e agricultura. Sob pressão, os povos Kĩsêdjê e Tapayúna foram expulsos de suas terras para o vizinho Parque Indígena do Xingu nos anos 1960. Eles só retornaram a seu território ancestral nos anos 1990, depois que a Funai reconheceu Wawi como reserva protegida.
Ainda assim, os ataques aos direitos indígenas à terra não pararam – e a ameaça da agricultura se intensificou.
A maior parte da destruição florestal dos últimos anos foi motivada pela expansão acelerada, e com frequência legalizada, da soja no Mato Grosso. O impulso à produção de soja foi especialmente visível em Querência, que abriga pelo menos 320 mil hectares de plantações do grão, de acordo com estimativas oficiais.
Cada vez mais, a soja tem tomado o lugar da floresta, dizem fontes locais. Tradicionalmente, as florestas costumam ser desmatadas para dar lugar a pastagens, que eventualmente são transformadas em plantações de soja quando o solo se degrada. Mas nos anos recentes os padrões de desmatamento estão mudando, diz Abad.
“A soja está se tornando mais atraente do que a pecuária”, diz ele. "Então, cada vez mais, temos visto esta transformação da floresta diretamente em plantações de soja”.
Um trecho extenso de floresta próximo à TI Wawi foi desmatado em maio e queimado em junho para se transformar numa imensa plantação. (Foto: Kamikia Kĩsêdjê)
À medida que o desmatamento se aproximou dos limites da reserva Wawi, os povos indígenas se sentiram cada vez mais pressionados. Em 2018, a comunidade mudou sua aldeia mais para dentro do território, e mais florestas foram desmatadas nas proximidades para dar lugar a plantações de soja, diz Kamikia.
“Tivemos que deixar nossa aldeia, próxima aos limites do território, porque estávamos preocupados com toxinas dos agrotóxicos usados nas plantações de soja”, ele conta. “Ouvíamos os aviões todos os dias lançando agrotóxicos lá de cima.”
No ano passado, estradas clandestinas foram abertas ilegalmente perto da reserva Wawi, numa movimentação que, segundo ativistas, tinha como objetivo abrir acesso a áreas remotas para o maquinário pesado capaz de desmatar grandes trechos de floresta.
Numa operação liderada pelo estado no ano passado, agentes embargaram 700 hectares de terra, confiscaram tratores e autuaram num total de R$ 4,2 milhões os responsáveis por desmatar tão perto da terra indígena. Contudo, fontes locais dizem que, na época, os invasores voltaram logo depois, continuando de onde tinham parado.
Uma estrada ilegal foi aberta no meio da floresta bem próxima à Terra Indígena Wawi em 2020. (Foto: Kamikia Kĩsêdjê)
Agentes estatais multaram os responsáveis pela construção da estrada, mas fontes dizem que foi retomada pouco tempo depois. (Foto: Kamikia Kĩsêdjê)
“Eles [os povos indígenas] já têm muita, muita terra. O suficiente”, alegou Roberto Zampieri, proprietário local que foi multado durante a operação, a repórteres no começo de 2021. Zampieri, que também é advogado e trabalha para o agronegócio local, teve sua fazenda embargada por não respeitar as regras que proíbem a destruição florestal e o uso de agrotóxicos dentro das “zonas tampão” em volta dos territórios indígenas.
Ainda assim, a destruição às portas da TI Wawi continuou em 2021. Fontes locais dizem que a última ofensiva na área foi permitida pelas autoridades porque ficava a pouco mais de 1 km dos limites da reserva, o que é considerado uma distância segura o bastante. Mas ativistas discordam, insistindo que a distância não é suficiente para manter os indígenas protegidos dos impactos da agricultura industrial.
Uma preocupação importante é o impacto da agricultura industrial sobre o Rio das Pacas, uma fonte crucial de água para a comunidade indígena. Os fazendeiros costumam usar pesticidas e herbicidas para plantar e colher a soja, produtos químicos que estão ligados a danos ambientais e até mesmo doenças graves. Com a remoção da floresta e do solo superficial, os agrotóxicos podem escoar para os rios e viajar para áreas protegidas.
“Quando chove, a água leva o veneno para o rio e o rio passa pelas nossas aldeias”, diz Kamikia. “É a água que usamos para tomar banho, para preparar nossa comida. Temos medo de que ela possa envenenar os peixes e danificar o sistema do rio.”
Ativistas dizem que aqueles que desejam desmatar foram de certa forma encorajados por um governo que assegurou estar do seu lado. O presidente Jair Bolsonaro se manifestou diversas vezes contra as proteções ambientais, chamando-as de uma barreira ao desenvolvimento e prometendo desmantelá-las.
O Legislativo agora está avaliando uma série de projetos de lei que ameaçam enfraquecer os direitos indígenas à terra e abrir reservas protegidas à mineração e aos fazendeiros. Em junho, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi demitido em meio a uma investigação sobre seu envolvimento num esquema de exportação de madeira extraída ilegalmente.
“O sinal que o governo dá é de que não há problema em roubar madeira dos territórios indígenas, plantar soja, garimpar, grilar”, diz Abad. “Isso porque você pode receber o título da terra depois. E o resultado é este – um aumento no desmatamento e nas agressões contra os povos indígenas.”
Sob o governo Bolsonaro, agências federais como o Ibama e o ICMBio, encarregadas de fiscalizar a aplicação da lei ambiental, também tiveram cortes orçamentários significativos. O governo federal empregou os militares em várias operações de vulto, mas ambientalistas dizem que a falta de uma fiscalização consistente facilitou o desmatamento de trechos da Amazônia.
Estrada separa área de floresta desmatada e queimada de outra que foi poupada – até agora. (Foto: Kamikia Kĩsêdjê)
No Mato Grosso, o governo estadual tomou a frente para preencher o vácuo deixado pelas agências federais, ajudando a conter parte da destruição da floresta, dizem ambientalistas. Agências ambientais estaduais realizaram operações para coibir o desmatamento ilegal, impondo cerca de R$ 620 milhões em multas entre janeiro e maio. Agentes embargaram 110 mil hectares, confiscaram 116 tratores e prenderam 18 pessoas suspeitas de envolvimento em crimes ambientais.
“Eles tomaram a iniciativa para suprir a falta de ação das agências federais – e isso foi muito importante”, afirma Vinicius Silgueiro, coordenador de inteligência territorial no Instituto Centro de Vida (ICV), uma organização sem fins lucrativos sediada na capital Cuiabá. “Se eles não tivessem feito isso, o desmatamento certamente teria sido ainda pior.”
Mas críticos dizem que o Estado também afrouxou o licenciamento e facilitou o desmatamento dentro dos limites da lei, apontando para casos como o de Querência. Fontes locais dizem que a Sema autorizou o desmatamento apesar da proximidade com a reserva Wawi, embora não esteja claro se ele também permitiu a queimada da área. A secretaria não respondeu aos pedidos de comentário da reportagem.
“É difícil acabar com o desmatamento ilegal legalizando o mesmo”, constata Abad. “É surreal, mas é a estratégia que estamos vendo.”
A aproximação da agricultura, e da destruição florestal associada a ela, das áreas protegidas enfatizou a necessidade de melhor planejamento e regulações de zoneamento mais fortes em toda a Amazônia, dizem ambientalistas.
Embora existam normas que exijam a preservação de zonas tampão em torno de terras indígenas e unidades de conservação, essas áreas protegidas costumam oferecer apenas uma camada muito fina de proteção. Em muitos casos, as regras não são respeitadas, e os produtores rurais combateram as tentativas de expandir essas zonas tampão. Isso é especialmente preocupante na estação das queimadas no país, segundo ambientalistas, já que os incêndios que normalmente começam em propriedades rurais se espalham facilmente e engolfam trechos de áreas protegidas adjacentes.
“Estão autorizando o desmatamento – e consequentemente, as queimadas – nos limites dos territórios indígenas e áreas protegidas”, afirma Paulo Moutinho, cientista do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “Isso significa que não há uma zona de transição ou de contenção de incêndios que possa protegê-las da área que será desmatada.”
Fumaça ascende de uma área que antes era de floresta e agora provavelmente será destinada à produção de soja. (Foto: Kamikia Kĩsêdjê)
Produtores agrícolas com frequência ateiam fogo a terras desmatadas para limpá-las e prepará-las para o plantio. Esse processo de corte e queima tecnicamente só é permitido durante a estação chuvosa, com autorização da Secretaria Estadual do Meio Ambiente.
De julho a setembro, quando há mais risco de que os incêndios saiam do controle, as queimadas agrícolas são proibidas. Mas, na realidade, a interdição nem sempre é respeitada e a fiscalização é aleatória. E no Mato Grosso, a proibição teve uma consequência inesperada este ano: os incêndios aumentaram em maio e junho à medida que os fazendeiros se esforçaram para evitar o período em que são proibidas as queimadas.
“Houve um número recorde de focos de incêndio principalmente devido a isso”, diz Silgueiro. “Quem queria queimar terra legalmente – como esta propriedade em Querência – fez queimadas antes do período de proibição.”
Para os povos indígenas, as imensas queimadas que costumam acontecer em torno de seus territórios também representam um risco à saúde na forma de doenças respiratórias trazidas pela fumaça e pelas cinzas. Com a covid-19 ainda abatendo o Brasil, a ameaça é ainda mais crítica este ano, afirma Moutinho.
“Há um risco maior de que, para aqueles infectados com a Covid, os sintomas piorem com tanta poluição advinda da fumaça das queimadas”, conclui. “É uma grande ameaça para os povos indígenas – e para todos na região.”
Esta reportagem foi promovida pela Places to Watch, uma iniciativa da Global Forest Watch (GFW) voltada a identificar rapidamente perdas florestais no mundo e promover uma investigação mais aprofundada dessas áreas. A Places to Watch baseia-se numa combinação de dados de satélite quase em tempo real, algoritmos automatizados e inteligência de campo para identificar novas áreas mensalmente. Em parceria com a Mongabay, a GFW apoia o jornalismo baseado em dados, fornecendo dados e mapas gerados pela Places to Watch. A Mongabay conserva completa independência editorial sobre as reportagens feitas utilizando esses dados.