A Medida Provisória editada pelo presidente Jair Bolsonaro no início deste ano, que transferiu o processo demarcatório das terras indígenas para o Ministério da Agricultura, retoma uma prática antiga do Estado brasileiro e demonstra “um processo de resistência à concessão dos direitos territoriais dos povos indígenas”, diz o procurador Marco Antônio Delfino de Almeida à IHU On-Line. Segundo ele, “durante aproximadamente 50 anos os povos indígenas permaneceram dentro do Ministério da Agricultura com uma clara perspectiva utilitarista. No decreto nº 1.736/1939, que coloca o SPI sob a tutela do Ministério da Agricultura, há a exposição de que os indígenas deveriam colaborar com as populações civilizadas”. Esse processo de “colaboração”, explica, “significava atuar como mão de obra não remunerada, mão de obra escravizada no processo de expansão agrícola do território brasileiro”. Um exemplo disso, lembra, “foi o caso de Mato Grosso do Sul, onde até a década de 1940 os indígenas foram mão de obra escravizada na extração de erva-mate. Posteriormente, de 1940 até 1970, eles foram mão de obra escravizada nas chamadas ‘aberturas de fazendas’, eufemismo para a derrubada intensiva de matas. Depois, na década de 1980, quando se iniciou a implantação do Programa Pró-Álcool em Mato Grosso do Sul, os indígenas foram mão de obra escrava nas usinas de álcool”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Almeida também comenta a possível proposta do novo governo de legalizar a exploração comercial em terras indígenas a partir de uma “parceria” entre as comunidades e produtores rurais. “Eu vejo que por trás deste suposto estímulo à exploração de terras indígenas, há o franqueamento de uma quantidade imensa de terras públicas para a produção por valores irrisórios pelo agronegócio”, diz. Na avaliação do procurador, que acompanha os conflitos entre indígenas e ruralistas em Mato Grosso do Sul, “não dá para dizer” que a proposta é uma “parceria”. Ao contrário, “é uma exploração travestida de outro nome”, assegura. “É o melhor dos mundos para o agronegócio, porque o arrendamento de terras particulares tem um custo alto, normalmente associado ao valor da soja. Se por acaso essa produção quebra, a pessoa acaba sendo duplamente afetada: ela arrenda determinada área pelo valor da soja, ocorre uma seca, o preço da soja sobe, ela não produz e tem que pagar um valor muito alto por conta daquele arrendamento. Isso não acontece, por exemplo, se arrendarem uma terra pública — terra indígena é terra pública — por um valor irrisório, muitas vezes em troca de uma cesta básica ou mil reais. Obviamente que num cenário de restrição econômica, de restrição de políticas públicas — é nesse cenário que os povos indígenas estão inseridos — isso acontece”, adverte.
Crítico do modo como o processo de demarcação de terras indígenas foi conduzido nos governos petistas, Marco Antônio Delfino de Almeida vislumbra um agravamento na interferência política no novo governo. “Antes o processo para a demarcação era político. Isso significa que o processo era paralisado ou liberado quando convinha, mas não se tinha uma interferência, pelo menos não explicitada, no próprio processo de demarcação. (...) Agora, o preocupante é discutir um laudo técnico; isso é complicado. Trata-se de uma politização no processo demarcatório, que é algo extremamente nocivo. Até porque, com qual critério alguém vai chegar e dizer que determinada área está ‘muito grande’ ou está ‘muito pequena’ e decidir?”, frisa.
Marco de Almeida (Foto: MPF)
Marco Antônio Delfino de Almeida é procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul. É graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Campo Grande – Unaes e mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD.
IHU On-Line — Como o senhor avalia a Medida Provisória editada pelo novo governo, que passa o processo de identificação, delimitação, demarcação e registro das terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa? Segundo o governo, esses processos serão submetidos a um conselho interministerial. O que essa mudança sinaliza na sua avaliação?
Marco Antônio Delfino de Almeida — Um dos pontos que ficam muito claros na edição desta MP é que se trata de um retrocesso que está claramente ligado não aos governos militares em si, mas a governos não democráticos. O ponto específico sobre a revisão do processo demarcatório por grupo interministerial, trazida pela MP 870, já consta no decreto 94.945, publicado em 1987, quando o ex-senador Romero Jucá era o presidente da Funai. O artigo terceiro desse decreto estabelecia:
“O Grupo de Trabalho Interministerial a que se refere o caput deste artigo será composto de:
- dois representantes do Ministério do Interior, um dos quais será designado pelo ministro como coordenador do grupo;
- um representante de cada entidade ou órgãos seguintes:
- Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário;
- Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional;
- Fundação Nacional do Índio;
- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária; e
- Órgão Fundiário Estadual”.
Posteriormente esse decreto foi revogado, mas ele mostra que, naquela época, já havia um processo de resistência à concessão dos direitos territoriais dos povos indígenas. Foi justamente nesse momento de transição, ou seja, pré-constitucional, que ocorreu uma intensificação do processo de reivindicação de territórios pelos povos indígenas. Na década de 1980, esse movimento visibilizado na década de 70 estava muito intenso e havia, por parte do próprio governo federal, um movimento de controle do processo de demarcação de terras indígenas. Isto é, as terras indígenas não poderiam, em hipótese alguma, ser terras que afetassem os interesses econômicos.
O antropólogo australiano Patrick Wolfe apresenta de forma muito clara critérios diferenciados de caracterização, de raça e etnia, em face da motivação econômica. Ele aponta que em relação aos negros, o critério sempre foi o de considerar que se a pessoa tivesse uma gota de sangue negro, seria considerada negra (one-drop rule) e, obviamente, caracterizaria aquela pessoa como uma escravizada: o descendente de uma pessoa escravizada era sempre uma igual escravizada. Em relação aos índios, o critério sempre foi o oposto. É muito interessante essa caracterização nos EUA e Canadá, porque ela é explícita: o denominado mestiço (half-breed). A miscigenação comprometeria a sua indianidade e, consequentemente, permitiria o acesso dos interesses econômicos ao território.
Todas as vezes que se estabelece um critério de igualdade — obviamente que todos os indígenas têm os mesmos direitos — surge a questão: se somos iguais, por que eles têm direitos diferenciados? A grande publicização desse inato critério de igualdade já é um indício da possibilidade de retirar direitos. Foi mais ou menos isso que ocorreu no final das décadas de 1970 e início dos 1980. Nesse período, a cúpula de poder da Funai, da qual participavam generais de alta patente — coincidentemente o mesmo processo que temos hoje —, debateu em várias ocasiões o grau de mudanças culturais que poderiam ser consideradas aceitáveis para reconhecer determinados indivíduos ou grupos como indígenas. Em 1978, por exemplo, o ministro do Interior, Rangel Reis, anunciava a intenção de enviar ao Congresso Nacional um anteprojeto de lei prevendo a emancipação de vários grupos indígenas, considerados por ele como aculturados. No dia 27 de dezembro de 1976, Reis havia declarado: “Vamos procurar cumprir as metas fixadas pelo presidente Geisel, para que, através de um trabalho concentrado entre vários ministérios, daqui a 10 anos possamos reduzir para 20 mil os 220 mil índios existentes no Brasil e, daqui a 30 anos, todos eles estarem devidamente integrados na sociedade nacional”. Esse desejo de integração, essa perspectiva de atribuição de características produtivas, ainda que sejam expostas sob o suposto viés da igualdade, claramente visam ao avanço sobre os direitos territoriais. A partir do momento em que os indígenas estiverem “aculturados” e não forem mais “considerados” índios, obviamente não terão mais os direitos plenos aos territórios que atualmente ocupam.
Nesse mesmo sentido, na época, paralelamente a esse processo que mencionei, houve a atribuição do chamado critério de indianidade, que é justamente a ideia que temos por trás desse processo que está ocorrendo hoje. Em 1981, foi instituída uma comissão pelo coronel Ivan Zanoni para criar, no prazo de 10 dias, ‘critérios de indianidade’ para classificar quem é ou não é índio. Os critérios foram criados e a recomendação era que os critérios e indicadores não precisavam ser justificados, mas simplesmente listados. Obviamente houve toda uma reação da comunidade antropológica à época e esses critérios acabaram não sendo utilizados. Nada mais exemplificativo das palavras de Patrick Wolfe. No caso das populações indígenas, a intenção era atribuir características supostamente igualitárias para que se integrassem à comunidade nacional. Essa sempre foi a tônica das constituições brasileiras até 1988 — essa perspectiva integracionista —, para que, uma vez integrados, não se tenha qualquer obrigação estatal de reconhecimento de território.
Efetivamente, por todos esses elementos que comentei, mais a localização topológica dos direitos territoriais na estrutura do Mapa, parece haver uma volta ao século XIX. No final do século XIX (1876), o general Couto de Magalhães publicou o livro O Selvagem, no qual prega o emprego de um milhão de braços selvagens na produção econômica. Essa perspectiva colocada em O Selvagem vai, de alguma forma, orientar o general [Cândido] Rondon no processo de criação da suposta “proteção dos povos indígenas” e na consequente criação do Serviço de Proteção aos Índios - SPI, subordinado ao então Ministério da Agricultura.
E assim permaneceu praticamente durante toda a República. Só no começo dos governos militares, em 1967, que a questão acabou migrando para o Ministério do Interior, mas com uma perspectiva geopolítica de controle de território. Mas, efetivamente, durante aproximadamente 50 anos (durante uma parte da década de 30, houve a subordinação ao Ministério da Guerra) os povos indígenas permaneceram dentro do Ministério da Agricultura com uma clara perspectiva utilitarista. No decreto nº 1.736/1939, que coloca o SPI sob a tutela do Ministério da Agricultura, há a exposição de que os indígenas deveriam colaborar com as populações civilizadas, que o problema da proteção aos índios se acha intimamente ligado à questão de colonização, pois se trata, no ponto de vista material, de orientar e interessar os indígenas no cultivo do solo, para que se tornem úteis ao país e possam colaborar com as populações civilizadas que se dedicam às atividades agrícolas. Obviamente “colaborar” significava atuar como mão de obra não remunerada, mão de obra escravizada no processo de expansão agrícola do território brasileiro. Esse foi o caso de Mato Grosso do Sul, onde até a década de 1940 os indígenas foram mão de obra escravizada na extração de erva-mate. Posteriormente, de 1940 até 1970, eles foram mão de obra escravizada nas chamadas “aberturas de fazendas”, eufemismo para a derrubada intensiva de matas. Depois, na década de 1980, quando se iniciou a implantação do Programa Pró-Álcool em Mato Grosso do Sul, os indígenas foram mão de obra escrava nas usinas de álcool.
Protesto dos indígenas (Foto: Correio da Manhã)
A perspectiva de entender a diversidade apenas como um instrumento econômico é algo extremamente perverso. Isso me recorda uma frase de um presidente argentino sobre os Mapuches na Argentina. Ao final da guerra no século XIX, início do século XX, os Mapuches escravizados foram utilizados intensamente nos engenhos de cana-de-açúcar argentinos: “‘El indígena es un elemento inapreciable para ciertas industrias, porque está aclimatado y supone la mano de obra barata, en condiciones de difícil competencia’. Mensaje del presidente de la nación, Roque Sáenz Peña, D.S.C.S., 7 de junio de 1912”. Este presidente dizia que não existe nenhum trabalhador que vai dar tanto lucro quanto o trabalhador indígena. Por quê? Porque os engenhos tinham força de trabalho supostamente superior à do trabalhador convencional, e não tinham qualquer tipo de gasto, porque o trabalho indígena era um trabalho de escravizados.
Essa perspectiva de olhar para a diversidade sob uma concepção econômica é extremamente perversa, mas entendíamos que já estava absolutamente erradicada. Infelizmente, com a MP do governo, vemos um retrocesso de mais de 100 anos. Voltamos a 20 de junho de 1910, data da criação do SPI. Neste ponto caberia citar a declaração da Unesco sobre diversidade cultural, especialmente o ponto em que apresenta a diversidade como fator de desenvolvimento: “A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória”.
Numa perspectiva um pouco mais abrangente, sem querer teorizar muito, isso está dentro de um pano de fundo de um retrocesso que é global. Especialmente em relação aos povos indígenas, a discriminação não tem regime. Vimos recentemente as declarações racistas em relação à Yalitza Aparicio, atriz mexicana do filme Roma, que foi amplamente criticada no México. Apesar de parte da sociedade mexicana ter considerado como uma conquista a indicação dela ao prêmio de melhor atriz, houve declarações extremamente racistas. Isso mostra que todas as sociedades têm uma dificuldade de lidar com a diversidade. No mesmo sentido, na Venezuela, recentemente, vimos os ataques às comunidades do Povo Indígena Pemón (houve inclusive a concessão de uma medida cautelar pela CIDH [Comissão Interamericana de Direitos Humanos] a lideranças deste povo).
IHU On-Line — Outra medida que está sendo cogitada pelo novo governo é criar uma regulamentação, via decreto, para liberar a exploração comercial de terras indígenas para o agronegócio, propondo uma espécie de “parceria” entre indígenas e produtores. Na prática esse tipo de relação já acontece em 22 terras indígenas, segundo a Funai, mas a atividade é ilegal. O argumento do governo com essa medida é que poderá levar o desenvolvimento às comunidades indígenas, retirando-as da pobreza, sem afetar sua cultura. Como avalia essa proposta e esse discurso?
Marco Antônio Delfino de Almeida — Um aspecto que é muito claro e já foi exposto por vários colegas é que esse processo, necessariamente, tem que passar por um procedimento de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas, conforme determina a Convenção 169 da OIT. Ou seja, eles têm direito à participação no processo. A Convenção 169 tem, segundo o próprio Supremo Tribunal Federal - STF, status supralegal, isto é, não é mera recomendação para ser observada quando há interesse do Estado; é uma legislação que, segundo expressiva corrente doutrinária, estaria acima até da Constituição. Ela estabelece claramente que essa consulta aos povos indígenas deve ser feita de forma prévia, livre e informada; essa participação no processo de decisão está explícita no artigo 6º.
Igualmente está no artigo 7º que os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento. Isso é o que me parece que até agora não ocorreu: as vozes que discutem esse processo são sempre vozes não indígenas. Quem tem que dizer o que é bom ou não para a população indígena são os próprios indígenas.
Vou fazer uma comparação para vermos a absurdez desse processo: ninguém em sã consciência discutiria modelos de produção em assentamentos rurais sem a participação dos assentados; ninguém senta em uma sala e diz que naquele assentamento o melhor modelo produtivo é tal e depois diz para os assentados que eles vão produzir tal coisa. Ninguém faz isso porque entendemos que esse processo produtivo tem que contar com a oitiva daquela comunidade que vai produzir, ou seja, chamam-se os assentados, conversa-se com eles e se define, de forma conjunta, como esse processo de produção ocorrerá. Agora, por que nós não fazemos isso com os povos indígenas? Porque temos, de forma quase que inata, uma visão discriminatória: nós entendemos de antemão, de forma preconcebida, que os indígenas não teriam capacidade de compreensão. Assim, já que eles não têm essa capacidade, nós decidimos por eles. Parece, de forma muito clara, que essa discussão está absolutamente equivocada.
Além disso, índio é outro conceito eurocêntrico. Um ativista americano, John Trudell, costumava dizer que índio é uma palavra que nunca foi falada nas Américas antes de 1500: - “‘Quem são vocês?’ E nós respondemos: ‘Nós somos o Povo, nós os seres humanos’, e eles retrucaram: ‘Oh, índios’, porque não reconheceram o que representa ser um ser humano”. Portanto, cada povo tem um nome, uma especificidade e uma cultura e cada povo tem que ser respeitado em sua singularidade. Por isso, não tem como ter uma decisão que seja homogênea para todos os povos indígenas. Assim, cada povo indígena, dentro do seu modelo de protocolo diferenciado de consulta, terá que decidir, segundo os termos da legislação, o que ele entende como processo de desenvolvimento e o que ele pode fazer para que, efetivamente, consiga seu bem viver. Mas não necessariamente o bem viver dele será o mesmo do nosso modelo; pode ser outro modelo. Agora, minimamente o que temos que fazer é esse processo de escuta, de oitiva, de entender que os povos indígenas estão no mesmo plano, que nós não decidimos por eles.
IHU On-Line — O senhor tem informações de como a exploração comercial ilegal em terras indígenas tem ocorrido? Esse processo, embora ilegal, tem sido acordado com os indígenas?
Marco Antônio Delfino de Almeida — Posso falar dos casos de Mato Grosso do Sul. Quando chegamos no MS, havia uma exploração ilegal das terras indígenas. É muito simples estabelecer as famosas verdades de que o índio não produz. Por exemplo, os indígenas do MS que trabalham na agricultura familiar produzem sem acesso a crédito. Agora, qual produtor agrícola no Brasil produz sem acesso a crédito? É fácil dizer que o índio não produz, mas vamos fazer o seguinte: igualar as condições, e a partir de amanhã tanto os produtores não indígenas como os indígenas não têm acesso a crédito e aí veremos quem produz e quem não produz.
Para se ter uma ideia, durante um período, a Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - DAP contou com uma versão indígena, que era muito mais difícil de ser obtida. Sem ela o acesso a crédito era inviabilizado. Até hoje a dificuldade persiste, especialmente pela administração pública, que não consegue contemplar as especificidades dos povos indígenas em seus arranjos burocráticos. Seguidamente temos que intervir, apontando o quadro de discriminação étnica. Há claramente uma assimetria neste processo. A assimetria reflete na maior exposição dos povos indígenas ao aliciamento econômico, no empoderamento dos não indígenas e numa capacidade de imposição de vantagem, que é o caso que havia no MS e em algumas regiões do Sul. Onde há poderio econômico no entorno há também o processo de arrendamento, através do qual os indígenas ganham uma porção desproporcional do ganho da produção, mediante liberação do acesso à terra.
Não dá para dizer que é uma “parceria”; é uma exploração travestida de outro nome. Por trás disso está a liberação da produção do agronegócio em terras públicas a custo irrisório. É o melhor dos mundos para o agronegócio, porque o arrendamento de terras particulares tem um custo alto, normalmente associado ao valor da soja. Se por acaso essa produção quebra, a pessoa acaba sendo duplamente afetada: ela arrenda determinada área pelo valor da soja, ocorre uma seca, o preço da soja sobe, ela não produz e tem que pagar um valor muito alto por conta daquele arrendamento. Isso não acontece, por exemplo, se arrendarem uma terra pública — terra indígena é terra pública — por um valor irrisório, muitas vezes em troca de uma cesta básica ou mil reais. Obviamente que num cenário de restrição econômica, de restrição de políticas públicas — é nesse cenário que os povos indígenas estão inseridos — isso acontece. Ainda que eu não me filie totalmente aos estudos do Banco Mundial, há um dado a ser considerado nas pesquisas dele: entre as populações que têm acesso a recursos econômicos, os povos indígenas estão na faixa absolutamente inferior da pirâmide econômica. Isso acontece por erros em políticas públicas, por erros nas políticas de acesso a crédito, entre outras.
Não é possível dizer que, hoje, em outras áreas indígenas o arrendamento não existe; ele continua a existir. O interessante é que os próprios órgãos de segurança entendem que o papel do Ministério Público é se afastar desta investigação, e acabam resistindo a investigar esse tipo de delito por conta de uma visão preconceituosa e utilitarista das terras indígenas: “Se o indígena não ‘produz’ (pelos motivos já abordados), não podemos ‘penalizar’ o produtor”. Essa é uma visão rasa do processo, porque essas terras, antes de serem terras indígenas, são terras públicas. Não posso permitir que uma terra pública seja utilizada por um valor absolutamente irrisório. Eu vejo que por trás deste suposto estímulo à exploração de terras indígenas, há o franqueamento de uma quantidade imensa de terras públicas para a produção por valores irrisórios pelo agronegócio. Esta discussão não é desimportante, estamos falando de cerca de 13,0 (treze por cento) do território nacional.
IHU On-Line — Se houvesse uma consulta aos indígenas, esse tipo de “parceria” entre indígenas e produtores para explorar as terras indígenas poderia ser algo benéfico para as comunidades ou não? Na sua avaliação a saída mais adequada para resolver a situação de pobreza em que vivem muitas comunidades indígenas seria criar uma política específica para eles, como essa de acesso a crédito?
Marco Antônio Delfino de Almeida — Essa resposta ninguém pode dar; é uma resposta absolutamente individual que cada comunidade terá que dar se forem consultadas. Elas têm que decidir quais são as prioridades em termos de desenvolvimento. Temos que colocar os povos indígenas na mesa, como protagonistas desse processo. Enquanto eles não tiverem protagonismo, essa discussão não tem como avançar. E essa negociação tem que ser particular com cada povo indígena, porque não dá para eleger uma comunidade indígena e levá-la de exemplo para o Congresso, mostrando como exemplo do caso x, sem considerar que no caso a, b ou c essa solução não se aplica. Não é possível ter uma solução homogênea, porque os povos indígenas não são homogêneos. Não dá para dizer que os Guarani, os Kaingang ou os Yanomami são iguais; cada um tem a sua particularidade.
Geralmente quando se coloca esse tipo de proposta, se usa como exemplo a situação dos indígenas dos EUA. O livro "All the Real Indians Died Off": And 20 Other Myths About Native Americans, de Roxanne Dunbar-Ortiz, enfrenta estes mitos em relação aos povos indígenas, como o mito de que os cassinos indígenas fizeram todos ricos ou, de forma oposta, o mito de que todos dependem da assistência estatal. Se observarmos os indígenas que exploram os cassinos nos EUA, eles têm uma renda superior à média nacional, mas estão longe de ser o indígena médio americano. Esse é um bom exemplo para mostrar a complexidade desse processo. Nos EUA, ao lado das reservas com cassinos temos reservas como Pine Ridge e Rosebud, que vivem situações semelhantes às dos Guarani no Brasil, com índices elevadíssimos de suicídio e alcoolismo.
Veja a seguir as empresas que têm pretensões Minerárias em terras indígenas e quais são as principais substâncias requeridas:
IHU On-Line — Depois de dois meses de governo já é possível avaliar qual é o entendimento dos militares que compõem o governo acerca dos povos indígenas? Na sua avaliação, eles têm um posicionamento parecido com o dos militares que o senhor mencionou anteriormente?
Marco Antônio Delfino de Almeida — A relação dos militares com os povos indígenas vem da batalha de Guararapes, com a expulsão dos holandeses. Historicamente, tanto os holandeses quanto os portugueses tentaram fazer alianças com os povos indígenas. Trazer mil soldados em caravelas à época demandava uma logística imensa e o naufrágio era uma regra. Toda a empreitada que envolvia o deslocamento de uma grande massa de soldados era uma empreitada extremamente incerta. Então, tanto os holandeses quanto os portugueses vislumbraram, nos indígenas, aliados potenciais. Inclusive, existem quadros em vários quartéis retratando essa batalha de Guararapes como o início da formação do povo brasileiro, mas isso não é algo tão simplório assim. Houve na ocasião uma aliança com os povos indígenas e, de alguma forma, os militares viram os povos indígenas como aliados, tanto que obviamente se temos fronteiras hoje, devemos isso aos Povos Indígenas.
Os militares sempre tiveram essa visão de que, para a garantia de um território como o nosso, era fundamental que os povos indígenas fossem aliados. Essa era a ideia de Couto de Magalhães seguida pelo general Rondon. General este, coincidentemente, um dos principais responsáveis pelo estabelecimento das fronteiras, justamente por causa da aliança com os indígenas. Só que diferentemente dos povos indígenas norte-americanos, os militares brasileiros talvez não tenham retribuído aos indígenas da mesma forma que os norte-americanos.
Por conta da participação dos povos indígenas norte-americanos na Primeira Guerra Mundial, houve uma movimentação americana para que fosse concedida cidadania plena aos indígenas norte-americanos (Indian Citizenship act de 1924). Esse foi o primeiro movimento. Na Segunda Guerra Mundial, os povos indígenas norte-americanos tiveram importante papel no esforço de guerra e, por conta disso, logo depois da Segunda Guerra, foi estabelecida uma comissão de reparação de violações em relação aos povos indígenas: a denominada Indian Claims Commision, com reparações da ordem de um bilhão de dólares (valores de 1978). Ainda que a motivação tenha sido sempre econômica, ela foi uma reparação, algo que até hoje o Brasil não fez.
Então, se os militares têm essa visão de gratidão aos indígenas por conta da proteção das fronteiras, eles deveriam avançar na mesma direção: seria possível copiar esse modelo e promover também uma reparação aos povos indígenas, uma reparação que passe necessariamente pelo reconhecimento e proteção do território indígena. Mas me parece que a visão dos militares é a de continuar a ideia integracionista e utilitarista do povo indígena: inicialmente como mão de obra e protetor do território e agora como contribuidor para o desenvolvimento nacional mediante a participação no processo de produção intensiva em terras indígenas.
IHU On-Line — Já está claro como o processo de demarcação das terras será conduzido na pasta da Agricultura? Hoje o processo de demarcação e homologação depende de uma série de etapas, como estudo de identificação das terras, processo de contestação, reconhecimento das terras e estipulação de seus limites pelo Ministério da Justiça. Como esse processo será feito a partir de agora?
Marco Antônio Delfino de Almeida — A Constituição estabelece no artigo 231 o direito dos povos à terra e estabelece igualmente que a União demarcará as terras. A partir do momento em que se tem uma legislação que na prática inviabiliza um dispositivo constitucional, se está atuando de forma inconstitucional. Ou seja, um dispositivo constitucional tem que ser plenamente implementado por conta da força normativa da Constituição. As normas regulamentares dos dispositivos constitucionais existem para que haja a plena efetividade das normas constitucionais. Então, toda e qualquer normatização que caminhe na direção de restrição de um exercício da plena efetividade de uma norma constitucional é plenamente inconstitucional.
Na época da CPI da Funai/Incra foi colocada a questão de que havia falta de critérios técnicos para a identificação de terras indígenas. É a mesma questão no Mapa: criticam que as terras indígenas estejam submetidas a um critério político de esquerda, mas permitem que estejam submetidas a um critério político de direita. A partir do momento em que um antropólogo, que é um cientista social, dá um parecer sobre o processo demarcatório, mas essa decisão depende de um não técnico, essa decisão é política. A solução para a suposta politização do processo demarcatório é a politização do processo demarcatório.
A partir do momento em que esse processo de demarcação é politizado e ele deixa de ser técnico, com clara violação à Constituição, é possível empreender supostas revisões do processo de demarcação, que não serão técnicas, mas políticas. Claro que elas serão devidamente questionadas pelo poder Judiciário porque, evidentemente, não podemos entender políticas constitucionais como uma mera recomendação que observamos quando nos convém.
(Fonte: ISA)
IHU On-Line — Na última entrevista que nos concedeu, o senhor disse que nos governos petistas o processo de demarcação virou um processo político e não técnico. Quais as perspectivas em relação à continuidade desse processo, considerando as primeiras declarações e medidas do novo governo?
Marco Antônio Delfino de Almeida — Antes o processo para a demarcação era político. Isso significa que o processo era paralisado ou liberado quando convinha, mas não se tinha uma interferência, pelo menos não explicitada, no próprio processo de demarcação. O que havia era uma interferência acerca de qual processo de demarcação iria andar em que momento. Esse critério político, infelizmente, era o que regia o processo demarcatório, mas não tínhamos uma politização no próprio processo de demarcação. Antes havia uma interferência sobre se um laudo poderia ou não ser publicado, mas não se tinham evidências de que havia uma interferência na elaboração do laudo. Mas, em tese, essa evidência de paralisação já era suficiente para mostrar que havia interferência e, por conta disso, promovemos ações de improbidade contra o ministro da Justiça e contra presidentes da Funai, por interferências no processo demarcatório.
Agora, o preocupante é discutir um laudo técnico; isso é complicado. Trata-se de uma politização no processo demarcatório, que é algo extremamente nocivo. Até porque, com qual critério alguém vai chegar e dizer que determinada área está “muito grande” ou está “muito pequena” e decidir?
IHU On-Line — Entre as promessas de campanha do presidente, ele cogitava rever a demarcação de territórios indígenas, como a de Raposa Serra do Sol. Como o senhor vê essa possibilidade? A revisão é constitucional?
Marco Antônio Delfino de Almeida — Entendo que nesse caso específico não há possibilidade de alteração da decisão do Supremo Tribunal Federal, tanto do ponto de vista regimental, ou seja, recursal, pois os recursos cabíveis já se esgotaram, quanto do ponto de vista de vedação ao retrocesso: não poderia em hipótese alguma ter um processo de revisão de uma terra indígena, pois seria um retrocesso na concessão de um direito territorial. Não vejo como, do ponto de vista jurídico-constitucional, que essa revisão possa ser realizada; não há nenhum caminho dentro da atual estrutura normativa, que supostamente será respeitada, para que esse tipo de revisão venha a ocorrer.