24 Mai 2021
"Finalmente, a OMS mostrou toda a sua marginalidade. O mantra do fortalecimento da agência teve como contraponto surreal o anúncio de novas sedes institucionais na qual se fixaria a gestão da pandemia e as políticas de saúde: o Global Health Council, o Global Policy Forum europeu. Stephen King escreve que não há déspota mais cruel que a confusão", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Il Manifesto, 23-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Discordo daqueles que afirmam que a cúpula global da saúde realizada em Roma em 21 de maio tenha sido uma oportunidade perdida. A cúpula, conduzida com sabedoria por Ursula von der Leyen e Mario Draghi, atingiu perfeitamente a meta que tinha se proposto: testar o pulso do status quo da saúde e certificar-se de que nenhuma terapia improvisada poderia colocar em discussão o estado incerto de saúde. O encontro internacional, com a participação dos big boss da liderança mundial, foi um sucesso incontestável.
A ordem das coisas, embora embelezada pelo desdém retórico das disparidades inaceitáveis na distribuição mundial de vacinas - 85% das doses usadas nos países ricos e 0,3% destinadas aos países de renda média e baixa - está salva! Além disso, sua patogênese não ataca indiscriminadamente: há uma gramática sofisticada a ser decodificada na construção geopolítica da primeira cúpula do G20 sobre a saúde, em torno da qual se instalou uma vigília de expectativas surpreendente. Na abertura do encontro, a presidente da Comissão Europeia declarou que a cúpula inaugurava “um novo capítulo na história da saúde pública”.
Se há um ano, poucos meses após a eclosão da pandemia, a agenda de gestão da Covid-19 estava pelo menos formalmente nas mãos da OMS, terreno de embate entre Donald Trump e a China, hoje a cúpula de Roma normaliza o situação na esteira do multi-stakeholdismo - todos no G20 participam da discussão, não apenas os governos - e confirma a relação de troca entre indústria e governos, e entre países ricos e pobres. A sintaxe da cúpula não deixa dúvidas. O G20 concedeu uma incômoda titularidade de palavra ao setor privado, na cadeia de poder que liga Bill Gates ao poder de fogo dos CEOs da Gavi e Cepi, à intervenção do CEO da Global Citizen (pseudo organização sem fins lucrativos financiada pela indústria, promotora da VaxLive) e as promessas dos CEOs da Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson.
Em uma sequência triunfal, eles anunciaram os planos globais de produção e vendas para suas respectivas vacinas - 1,3 bilhão de doses até 2021 e o mesmo número em 2022 - com um esquema clássico de preços diferenciados. Obviamente, ninguém sabe de que preços estamos falando. Ou seja, se as empresas aludem ao "preço de emergência" – de qualquer forma mais alto nos contratos bilaterais com os países do sul global - ou ao "preço de mercado" vigente assim que as vacinas tiverem a autorização definitiva das agências sanitárias, aos primeiros sinais de resolução da pandemia.
Ninguém ousou perguntar, mas vale a pena dar uma ideia. Uma dose da Pfizer custa no máximo US $ 18 em regime de emergência; a mesma dose custará entre US $ 150 e US $ 175 na fase comercial que poderia começar já em 2021 (cotações da Pfizer). O elefante na sala, todos sabiam, era a questão dos monopólios das patentes em tempos de pandemia, e a presidente da Comissão Europeia pegou-o pela tromba para neutralizá-lo. A propriedade intelectual foi evocada, juntamente com a necessidade de favorecer a aceleração do desenvolvimento e produção dos remédios contra a Covid-19.
Espanha, França e Itália ousaram proferir a palavra waiver referindo-se ao debate global para interromper temporariamente as regras do comércio, tão inadequadas a uma emergência sanitária. Mas foram aberturas muito cautelosas, falas teatrais em um roteiro dirigido por Angela Merkel e Ursula von der Leyen, que sentenciou que "as licenças voluntárias são o melhor caminho". O subtexto era tão peremptório que Kamala Harris nem se aventurou a citar a suspensão da patente do presidente Biden. Certamente, não pode ser desconsiderar o neoatlantismo vacinal abençoado pela aliança multimilionária Pfizer-BionTech. Não dá para quebrar os ovos da cesta da OMC, enquanto a diretora-geral prepara a receita para levar à 12ª reunião interministerial em novembro, feita de incentivos para que as farmacêuticas façam acordos bilaterais com empresas do sul do mundo, preservando seus monopólios, em troca de facilidades alfandegárias e talvez - quem sabe - até fiscais. Com efeito, são recorrentes os anúncios de alianças Europa-África para a produção de vacinas. A proposta da Índia e da África do Sul sai objetivamente enfraquecida da Cúpula do G20. O discurso do presidente sul-africano Ramaphosa - palavras fortes e convincentes - vem após o anúncio da Pfizer de que na África do Sul sua vacina está sendo adaptada para a variante local. O novo produto aguarda validação da agência sanitária em setembro. A ordem de palavra é um exercício de estilo.
Finalmente, a OMS mostrou toda a sua marginalidade. O mantra do fortalecimento da agência teve como contraponto surreal o anúncio de novas sedes institucionais na qual se fixaria a gestão da pandemia e as políticas de saúde: o Global Health Council, o Global Policy Forum europeu. Stephen King escreve que não há déspota mais cruel que a confusão.
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Vacina para todos. A palavra ao setor privado. A ordem das coisas está salva. Artigo de Nicoletta Dentico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU