04 Mai 2021
"É como se toda a sociedade civil tivesse decidido, espontaneamente, sem coordenação prévia, sem necessidade de qualquer publicidade, pactuar e se mobilizar para evitar o naufrágio da convivência civil e proteger um dos mais sagrados e invioláveis núcleos de sua unidade: justamente o culto aos mortos. Esta é a tese central do autor. Certamente uma tese razoável, sensata e corroborada por numerosas provas empíricas, digamos por provas convincentes", escreve o sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bérgamo, em artigo publicado em Domani, 03-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A morte foi a protagonista absoluta das crônicas deste annus horribilis. Agora talvez tenha chegado o momento, esperando que a fúria do vírus esteja se atenuando, de começar a nos distanciar daquele caudal de dor para refletir, analisar, compreender. O livro de Asher Colombo La solitudine di chi resta: la morte ai tempi del contagio (A solidão de quem fica: a morte em tempos de contágio, em tradução livre) recém-publicado pela editora il Mulino, nos ajuda, e muito, a esboçar uma hipótese socioantropológica geral sobre o que aconteceu. A impossibilidade de dizer adeus aos que morreram "normalmente", com os gestos e ritos que a tradição nos transmite, representou uma verdadeira ameaça à integração social. A morte foi a protagonista absoluta das crônicas deste annus horribilis, chamou para si todos os holofotes de nossas vidas, mostrou-se com toda a sua potência, empurrando-nos para trás no tempo, para aquelas épocas históricas em que semeava flagelos sem que os seres humanos pudessem fazer nada além de orar e esperar que isso aplacasse a sua violência.
La solitudine di chi resta: la morte ai tempi
del contagio, por Asher Colombo
Durante meses, fomos inundados por um fluxo avassalador de números de mortos, sobre quantos anos eles tinham, onde viviam, com que rapidez passaram de uma vida normal ao fim. Também ouvimos as vozes de seus entes queridos, as memórias dilacerantes de seus últimos momentos; às vezes, ouvimos o tormento de lutos raivosos e enfurecidos. Agora talvez tenha chegado a hora, esperando de que a fúria do vírus esteja se atenuando, de começar a nos distanciar daquele caudal de dor para refletir, analisar, compreender. Compreender em primeiro lugar o que aquelas mortes tão rápidas, em massa e imprevisíveis significaram para aqueles que ficaram, mas acima de tudo o que significaram, para tantos de nós, ter sido mantidos distantes da cena final, não ter podido nos aproximar ao leito onde nosso familiar, nosso amigo estava morrendo, não ter podido se despedir, não ter podido celebrar seu funeral, não ter podido receber os abraços e a consolações de amigos e parentes. Certamente será necessária uma avaliação psicológica, assim como será imprescindível, sempre em nível psicológico, potencializar intervenções terapêuticas de apoio à elaboração de lutos tão difíceis. Enquanto isso, o livro de Asher Colombo recém publicado pela Il Mulino A solidão de quem fica ajuda-nos, e muito, a esboçar uma hipótese socioantropológica geral sobre o que aconteceu. Em primeiro lugar afirmo que se trata de um livro sério, embora muito fácil em sua leitura, cheio de dados interessantes, resultado de uma pesquisa escrupulosa e aprofundada a partir de uma multiplicidade de fontes: a demografia, ou seja, a evolução do número das mortes, a grande quantidade de obituários (aqueles publicados durante a primeira fase da pandemia no Eco di Bergamo e no Corriere della Sera), alguns levantamentos por amostragem e um consistente número de entrevistas realizadas em um hospital no norte da Itália (que permaneceu anônimo) entre os mais atingidos pela primeira onda de pandemia.
Por trás da grande massa de dados emerge nitidamente uma chave de leitura que o autor reitera em vários pontos do livro. A chave é esta: a impossibilidade de se despedir das pessoas que morreram "normalmente", com os gestos e ritos que a tradição nos transmite, representou uma enorme ferida, uma dilaceração intolerável do tecido que mantem unidas as nossas sociedades e que não só liga aqueles ficam com os que já não estão mais aqui, representando assim o coração da nossa identidade histórica e da memória coletiva, mas também os vivos entre si, privados nessa conjuntura da possibilidade de reforçar laços e vínculos sociais com o prantear dos mortos.
Em suma, a pandemia teria representado, desse ponto de vista, uma verdadeira ameaça à integração social, à estabilidade política de nossas comunidades, baseada, entre outras coisas, no culto aos mortos. A magnitude da ameaça explicaria, segundo Colombo, a extensão da revolta, a amplitude das tentativas, às vezes legais e às vezes não, feitas pelos enlutados para salvar de alguma forma os velhos e consolidados ritos de despedida. Assim como explica também a cumplicidade de muitos que vieram em seu socorro nesta empreitada, que poderíamos chamar de "resistência": enfermeiros que tiraram uma foto ou enviaram um vídeo a familiares com a última imagem de seu ente querido no hospital ou fugiram das regras e permitiram aos mesmos lançar diretamente um rápido olhar para o corpo envolto em um saco; médicos que por um instante abriram as portas da ala do hospital onde uma senhora estava morrendo de Covid para deixar entrar o marido (que depois acabou também ficando doente); dos empresários das funerárias que desviaram o percurso do morto até o cemitério para passar por um momento sob as janelas de sua casa. É como se toda a sociedade civil tivesse decidido, espontaneamente, sem coordenação prévia, sem necessidade de qualquer publicidade, pactuar e se mobilizar para evitar o naufrágio da convivência civil e proteger um dos mais sagrados e invioláveis núcleos de sua unidade: justamente o culto aos mortos. Esta é a tese central do autor. Certamente uma tese razoável, sensata e corroborada por numerosas provas empíricas, digamos por provas convincentes.
Por mera discussão, vou tentar montar outra hipótese e tentar imaginar que o "sequestro da morte" ocorrido durante a pandemia de muitas maneiras apoia, exasperando-a e radicalizando-a, a tendência que já há algum tempo atua em nossa sociedade de negar a morte, tornando-a invisível e distante, removendo-a de nossas vistas. Os sintomas dessa tendência são bem conhecidos e numerosos. Cito um particularmente significativo também mencionado no livro: a delegação total às empresas funerárias do corpo dos mortos, que as famílias, ao contrário do que acontecia até algumas décadas atrás, não querem mais ver e tocar até que seja esteja, arrumado e vestido, dentro do caixão. Poderíamos acrescentar muitos outros: a privação das crianças de ver os mortos, a dificuldade e o constrangimento em apresentar as condolências. E assim por diante.
A morte por Covid, aquela no hospital e segregada, resolveu muitos desses embaraços, reforçando a negação da morte, fortalecendo-a ainda mais. Mas aqui está a novidade, remover a morte não significa remover os mortos, esquecê-los, esquecer que eles existiram. Pelo contrário, hoje os mortos podem sobreviver de formas inéditas e muito mais resistentes, muito mais duradouras. A identidade deles pode sobreviver eternamente nas redes sociais, por exemplo naquelas páginas do Facebook dedicadas ao falecido que recebem desde o dia de sua morte mensagens, fotos, apelos, orações, memórias. Aquilo de que nos queremos livrar o mais rapidamente possível é apenas o corpo, o organismo sem vida. Eliminado isso, e o mais rápido possível, a alma pode continuar seu caminho, como evidenciam as fortes crenças sobre sua sobrevivência, das quais estão convencidos muitos italianos, do contrário desconfiados da possibilidade de ressurreição (mais uma vez o obstáculo do corpo, o embaraço de sua presença).
O corpo pode ser cremado (e cada vez mais também na Itália), assim como pode ser serenamente esquecido por quem nunca vai ao cemitério sem se sentir culpado. Se o corpo do morto pode ser visto, pelo menos que seja apresentado como se estivesse vivo; disso a disseminação da tanatoestética, que magicamente transforma um corpo morto em um que parece vivo. Este fato da condenação da corporeidade, a filosofia social expressa muito bem em um dos trechos da entrevista que aparecem no livro, aquele de uma senhora que confessa que "não quer realmente ser comida por vermes e sobretudo eu gostaria que nunca minhas filhas assistissem à exumação do cadáver da mãe ou do que resta da mãe e, por isso, eu disse ‘mas por quê? Mas por quê? Por que eles não podem se lembrar de mim, talvez bem velhinha, mas animada como eu era? Que lembrem de mim como eu era. Por que devo mostrar-lhes o desastre que acontece com o nosso corpo?’”. Em suma, julgo toda a história narrada no livro e da qual fomos espantados espectadores como o enésimo episódio do embate em torno da morte entre a tradição e a inovação social, entre o que resta dos antigos ritos, segurar a mão do morto no momento da passagem, beijar seu rosto antes do enterro, colocar uma flor no túmulo, e a nova "espiritualidade incorpórea" que leva a invadir as redes sociais com imagens do morto e escrever mensagens de condolências de três letras (Rip) no Facebook, eficazes e pouco exigentes. Uma cultura continuamente alimentada por filmes, seriados, inteiras séries editoriais, que de muitas formas se choca, mesmo dentro da consciência de muitos, com o legado do nosso passado. Como nos lembrou o belo livro de Asher Colombo.
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A morte está mudando de forma e não é apenas culpa do Covid. Artigo de Marco Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU