29 Abril 2021
É um dos filósofos e intelectuais europeus mais relevantes da atualidade. Professor de filosofia política e social, Daniel Innerarity é pesquisador do Ikerbasque na Universidade do País Basco e diretor do Instituto de Governança Democrática.
Seus diversos livros receberam atenção, prêmios e reconhecimentos: La democracia del conocimiento (Prêmio Euskadi de Ensaio 2012), A sociedade invisível (Prêmio Espasa de Ensaio 2004), A transformação da política (Prêmio de Ensaio Miguel de Unamuno e Prêmio Nacional de Literatura na modalidade de Ensaio 2003), Ética de la hospitalidad (Prêmio da Sociedade Alpina de Filosofia 2011 ao melhor livro de filosofia em língua francesa), e Política para perplexos (Prêmio Euskadi de ensaio 2019), entre outros.
Como colunista, também possui uma trajetória reconhecida, tanto no El País como no Correo/Diario Vasco e La Vanguardia. Em 2004, a revista francesa Le Nouvel Observateur incluiu Daniel Innerarity entre os 25 grandes pensadores do mundo, ao lado de figuras como Martha Nussbaum e Néstor García Canclini.
Nesta entrevista – realizada por meio de um questionário via e-mail –, aprofunda sobre o que está mudando neste mundo pandêmico, e também opina sobre o processo chileno, que acompanha com interesse. De fato, nesta semana, deu uma conferência em nosso país, ao Conselho para a Transparência, sobre “Democracia e Transparência para o futuro do Chile”.
O filósofo tem refletido profundamente sobre a pandemia. No ano passado, publicou justamente Pandemocracia, onde estabelece que a Covid é o fim de um tipo de mundo. “O coronavírus acabou com a ilusão de um mundo de sujeitos invulneráveis e autossuficientes. Vaticino que os novos debates girarão em torno ao modo como devemos responder adequadamente às novas exigências de proteção e interdependência. Contudo, não pensemos em uma espécie de substituição mágica, mas, sim, em uma tomada de consciência que vá abrindo passagem, novos debates e agendas, sem que o sucesso esteja garantido”, explica.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 23-04-2021. A tradução é do Cepat.
Um ano após publicar seu livro ‘Pandemocracia’, como você vê o mundo coexistindo com a covid?
Imerso em um debate de enormes proporções, com muitas mais incertezas do que estávamos acostumados a gerir e com a necessidade de reparar o barco sem o conforto de dispor de um porto seguro, em meio à travessia.
A “guerra das vacinas”, a “diplomacia” das vacinas, etc., não revela que o mundo segue com a mesma lógica de antes da covid?
Revela que o mundo seguirá no jogo de interesse particular, ao mesmo tempo em que adentra em cenários nos quais esse jogo é uma manifestação de torpeza. A condição humana é assim. Mas se comparamos a resposta à crise econômica de 2008 e a atual, constataremos que ocorreram algumas aprendizagens, insuficientes certamente, como o programa Covax de globalização das vacinas ou os fundos de recuperação europeus que implicam certa mancomunidade da dívida, algo impensável há 10 anos.
Quais são as maiores vulnerabilidades que a pandemia demonstrou, em nível global e em cada região?
Fundamentalmente, a falta de previsão diante de uma crise que nos surpreendeu em sua virulência, mas que havia sido anunciada e que se acrescenta a uma longa sucessão de crises, algo que para mim remonta à de Chernobyl, porque, nos anos 1980, vivia na Alemanha e foi minha primeira grande experiência de que as fronteiras são irrelevantes para certos tipos de catástrofes.
Como a democracia tem atravessado esta circunstância? Há uma investida autoritária?
Houve “coronaditaduras” como a Hungria, que aproveitaram a crise para conferir a seus executivos prerrogativas que certamente não vão querer renunciar. Ainda estamos todos sob a tentação de que os sistemas políticos autoritários são mais eficazes e podem fazer políticas mais de longo prazo, ao passo que as democracias liberais estão condicionadas pelo eleitoralismo imediatista. Nesta batalha, é fundamental que as pessoas comprovem com seus próprios olhos não só que não existe incompatibilidade entre eficácia e democracia, mas que as democracias são sistemas mais inteligentes, também em momentos de crises.
Você disse “a democracia é mais inteligente”, mas ela possui as ferramentas para combater sua crise de legitimidade em muitos países?
A democracia precisa conquistar a legitimidade em dois terrenos que, às vezes, parecem divergentes: o da participação e o da eficácia, mas se consegue, obtém uma estabilidade maior do que qualquer outro sistema político.
Como fortalecer a democracia nestes contextos de deterioração do debate público e de polarização? Nesse sentido, qual é a importância da transparência?
A transparência é um valor porque permite às pessoas assumirem a responsabilidade e entender o que está em jogo, mas não significa que a política deve se tornar um espetáculo visual que nos transmite ao vivo todas as minúcias dos personagens que o habitam. O importante é que a política seja compreensível para todos, não que seja um reality show.
O populismo ganhou ou perdeu espaço com a pandemia e por quê? Como você define o populismo e o que é comum em suas múltiplas versões? Como pode ser combatido?
Perdeu espaço porque a pandemia revalorizou três coisas que o populismo despreza: o saber especializado, a liderança compartilhada e a ideia de comunidade global. É uma batalha que não acabou e nós jogaremos tudo no modo como se resolverá a enorme crise social e política que já virá na sequência. Se agirmos mal, pode haver uma segunda oportunidade para ele, alimentado por uma raiva social para a qual o populismo não representa nenhuma solução verdadeira, mas, sim, uma saída emocional.
Você disse que a globalização não tinha instrumentos de proteção. Como evoluirá, em sua avaliação, ou como espera que proceda?
Precisamos voltar a identificar qual é o nível institucional mais adequado para gerir os diferentes tipos de riscos. Para alguns, ficou manifesto que necessitamos, por assim dizer, de mais globalização, como no caso da ciência e das instituições sanitárias globais. Para outros riscos, parece conveniente transitar para modelos de cidade, de abastecimentos e ajudas em um nível mais próximo.
As críticas à globalização têm a ver com sua ênfase econômica e não política ou, neste caso, sanitário. Por que é urgente, em sua avaliação, caminhar para uma governança mais global?
No caso da Europa, demos uma resposta em maior conformidade com a ideia de integração do que a que demos à crise econômica anterior e não me resta nenhuma dúvida de que haverá mais transferência de soberania em alguns âmbitos, inicialmente, todos aqueles que têm a ver com a gestão de riscos sanitários, com instrumentos de análise e proteção em nível continental.
Do ponto de vista global, já existe um grande debate acerca do papel de instituições como a OMS. A ideia fundamental é que um mundo atingido pelas mesmas ameaças precisa ser um mundo que as enfrente de uma forma mais integrada. Não é tanto uma questão de solidariedade, mas de inteligência: ajudar os outros, quando dependo deles.
Você afirma que as crises possuem um ponto comum: a interação. Sendo assim, como são superadas, se finalmente ninguém é “o responsável”?
Minha interpretação das crises que chamamos de complexas é que não se devem à inoperância ou maldade de um único ator responsável, mas à superposição ou encadeamento de múltiplos erros, ao longo da cadeia, que configura o que caracterizamos como mundo interconectado. O fato de não existir um ponto de Arquimedes não significa que não haja responsabilidade, mas que esta está mais dividida, e que não é possível liderar respostas, precisarão ser mais cooperativas.
Como evoluir para sociedades menos competitivas e mais cooperativas?
Não espero essa mudança na generosidade, mas na lucidez. Estamos diante de problemas que em boa medida saem do esquema dos jogos de soma zero. O exemplo do vírus é muito significativo a esse respeito: estamos em um mundo contagioso, no qual ninguém está suficientemente protegido, enquanto todos não estiverem a salvo. Os problemas mais importantes e complexos da humanidade afetam universalmente e não podem ser geridos a não ser cooperativamente, mediante instituições que representem uma maior integração.
Escreveu que é necessário retirar ao debate político essa aura de superioridade moral, tanto de esquerda como de direita. Como isso é possível? Por acaso, não existem temas que são de debate ético?
A democracia se baseia na ideia de que a diferença de valores não significa necessariamente uma diferença moral. Que em uma sociedade pluralista nossas escalas de valores não coincidam, não significa que uma delas seja moralmente superior. Introduziria aqui a distinção entre melhor e superior.
Cada um de nós está convencido (que eventualidade, “cada um”) de que tem os melhores valores, a melhor versão da justiça ou da liberdade, por exemplo, mas isso não significa que quem possui uma ideia diferente de justiça ou de liberdade deva ser considerado como alguém que despreza a justiça ou a liberdade. O fato de eu estar convencido de minhas concepções não deveria levar à desqualificação moral de quem vê as coisas de outra maneira.
Escreveu em uma coluna: “Os apressados celebradores da atopia digital tendem a esquecer que enquanto os lugares comuns e públicos nos igualam, os lugares próprios nos tornam mais desiguais”. Você espera que, por isso, surja (pós-covid) uma política urbana e educacional mais forte?
Não há nenhum aspecto de nossa vida que não tenha sofrido uma forte sacudida com esta crise, da intimidade às instituições globais. E esses dois temas são dos mais afetados.
Quando e como valorizaremos a presencialidade, quando retornar ao que se considera a “normalidade”?
Voltaremos a negociar a divisão entre presencialidade e virtualidade. Não sei como ficará a proporção adequada entre as duas, mas poderia nos ajudar a pensar que para a troca de informação o lugar é irrelevante, ao passo que para as experiências de aprendizagem a presença tem grande importância. Perguntemo-nos se o que queremos é meramente trocar informação ou realizar uma experiência de aprendizagem e já teremos pistas sobre que tipo de presença é necessária.
Como filósofo, como viveu este tempo? Qual é o seu maior medo e a sua maior esperança?
Como filósofo, preocupa-me que não façamos os diagnósticos adequados, que não procedamos à renovação conceitual que a crise está reivindicando. E minha maior esperança é que façamos descobertas significativas, que aprendamos.
Alguns dizem que a política chilena segue a espanhola... Que lições devemos tentar aplicar para não errarmos, sobretudo agora que temos uma nova Constituição e a renovação de quase todas as autoridades políticas pela frente?
Cada país tem suas peculiaridades, e as experiências só podem ser transplantadas de um lugar para outro em um grau muito pequeno. Vejo com expectativa o processo que esse querido país empreendeu, desejo-lhe o melhor dos êxitos e o invejo um pouco porque se dá em um momento especialmente interessante da história da humanidade, em que caíram certos lugares comuns e se abrem novas oportunidades. O mundo digital, a luta das mulheres, a consciência ecológica..., agora, são questões que estão na agenda com pleno direito e que mal tinham começado quando foram colocados em marcha outros processos constituintes.
No Chile, redigiremos a nova Constituição de maneira paritária, pela primeira vez na história. Por que a democracia paritária é relevante para a sociedade?
A paridade deve se fundar em um mero fato sociológico (que elas constituem, aproximadamente, 50% da população, ao passo que sistematicamente há uma porcentagem menor de mulheres nos postos de responsabilidade política) e não em uma suposta qualidade essencial. As mulheres não estão mais próximas das pessoas, mas, sim, infelizmente, mais distantes da política. A paridade cumpriria o seu objetivo quando a atividade política das mulheres deixasse de ser algo específico e grupal.
Quando as mulheres fazem política “de mulheres”, desenvolvendo alguns pressupostos atributos da feminidade (proximidade, humanidade, sentido comum, inclinação ao cuidado e a proteção, sensibilidade pelo particular...) que são justamente aqueles que as confinam na privacidade, contribuem involuntariamente para que sejam expulsas do espaço público.
A renovação da política não virá do fato de que as mulheres façam uma política feminina, mas da efetiva equidade. A paridade é necessária para corrigir uma disfuncionalidade que dificulta a presença das mulheres na política, mas não para que as mulheres façam, enquanto tais, outra política que deveria ser necessariamente mais próxima e humana.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“As democracias são sistemas mais inteligentes, também em momentos de crises”. Entrevista com Daniel Innerarity - Instituto Humanitas Unisinos - IHU