23 Março 2021
"A globalização está mudando de natureza. Ela completa sua transformação imaterial criando um novo grau de complexidade e de interdependência que a esfera física simplesmente não dá mais conta", constata Olivier Passet, diretor de Pesquisa do Xerfi, em artigo publicado por Alternatives Économiques, 22-03-2021. A tradução é de André Langer.
Quando você encadeia os argumentos favoráveis a uma “desglobalização” do mundo, a tendência parece inevitável. E a crise sanitária apenas reforçou uma argumentação que prolonga crise após crise.
Por trás dessa ideia, há, primeiro, a constatação de que a dinâmica global do comércio de bens, resultante de uma explosão do comércio cruzado entre as regiões do mundo, se desfez desde meados dos anos 2000.
Depois, há o fato de que o gigante chinês não se contenta mais em ser um segmento de baixo valor agregado nas cadeias de valor mundiais. O país que se confinou ao papel de país-oficina, de montador, não é mais esse polo que alimenta o jogo da importação-reexportação. Agora investe em todas as etapas da fabricação e muda de escala, ganhando autonomia tecnológica.
Há, ainda, a convergência dos custos unitários que diminui a busca de relocalização para países de baixos salários; há a robotização que requalifica a localização em países com altos custos de mão de obra; há a irrupção da videoconferência que reduz as necessidades de mobilidade profissional; há o ressurgimento de barreiras alfandegárias e o uso do dumping fiscal para conter a perda de substância industrial, cujas consequências nefastas sobre a inovação, o emprego e as desigualdades nos países mais avançados acabaram com a ideia de uma globalização feliz; há a sensibilização em relação às questões de autonomia estratégica, que a crise da saúde exacerbou, revelando a hiperdependência das nossas economias de certos princípios ativos no campo dos medicamentos ou dos semicondutores na indústria.
Há os efeitos inelutáveis de uma transição ecológica que pleiteia em favor de circuitos mais curtos e rastreáveis, reabilitando a subcontratação próxima. Há a passagem dos combustíveis fósseis massivamente importados para as energias renováveis, por natureza localizadas no território, etc.
Usamos aqui deliberadamente o efeito cascata para mostrar o quanto a ideia de desglobalização está de vento em popa. Mas também para destacar até que ponto se concentra em uma única dimensão, a do comércio de mercadorias, dentro de um processo muito mais amplo de interdependência crescente que envolve os mercados financeiros e toda a esfera dos serviços. Dizer que o processo de integração por meio das trocas de mercadorias atingiu a maturidade é uma coisa. Outra bem diferente é dizer que a integração da economia mundial está em declínio.
Olhando sob a perspectiva do mercado de capitais, o que constatamos? É certo que a renacionalização da detenção das dívidas públicas pode ser enganosa. Mas é o resultado da recompra massiva de títulos pelos bancos centrais como parte do quantitative easing (1) em conexão com a crise. Por outro lado, no que se refere ao controle de capitais, a intensa atividade em termos de fusões e aquisições, ainda que muito volátil, não nega a força do movimento de internacionalização das empresas, como mostra a evolução do número de operações transfronteiriças em escala global ou do número de subsidiárias europeias localizadas fora da Europa. E a crescente concentração entre alguns gigantes (BlackRock, Vanguard, etc.) consolida cada vez mais o domínio da governança acionária em escala planetária.
Olhando, agora, sob o ângulo dos serviços, o que constatamos? Que a globalização se desloca. Com o digital, os dados tornaram-se o novo terreno onde se opera a integração do mundo. Como podemos falar de “desglobalização” quando todos os dados que produzimos em todas as partes do mundo se tornam o principal recurso de gigantes planetários... do qual as economias são cada vez mais dependentes em termos de comércio, informação, cultura e lazer, processos produtivos, etc.
Esta hiperconexão certamente permite prescindir da mobilidade das pessoas para interagir a distância, seja em termos de negociação comercial, de prestação de serviços ou de trabalho em equipe em grupos multinacionais. Algumas pessoas equiparam essa menor necessidade de mobilidade dos homens e atividades a um sintoma da desglobalização. Isso é um equívoco, pois essa abolição das distâncias amplia as possibilidades de mobilização internacional da mão de obra, aumentando ainda mais a pressão competitiva. Porque também aumenta as possibilidades de prestação de serviços a distância.
Até agora, os serviços eram considerados difíceis de serem deslocalizados e exportados porque envolvem uma relação interpessoal. No entanto, as plataformas e a robótica permitem justamente o acesso aos serviços sem passar por uma distribuição ou serviço local, como a Netflix que contorna o nível de exploração cinematográfica em cinemas ou de robôs cirúrgicos manipulados à distância. Ou seja, a barreira à globalização que constituía a localização necessária dos serviços junto aos clientes está simplesmente se desfazendo, abrindo um enorme espaço de integração do mundo através dos serviços.
Em suma, a globalização está mudando de natureza. Ela completa sua transformação imaterial criando um novo grau de complexidade e de interdependência que a esfera física simplesmente não dá mais conta.
1. Quantitative easing (QE): flexibilização quantitativa, o QE é um instrumento mediante o qual um banco central compra ativos de agentes econômicos (na maioria das vezes títulos de dívida pública já emitidos) com dinheiro que ele cria. É, portanto, uma forma de injetar dinheiro para dar sustentação à economia em tempos de crise.
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A globalização está mudando de natureza e se hiperglobalizando - Instituto Humanitas Unisinos - IHU