"Apesar da pobreza, a fome e a violência, apesar da exploração econômica, os protestos que explodem agora no Chile e Turquia, da Bielorrússia à França, evocam regularmente a dignidade", afirma o pensador
O filósofo, psicanalista e sociólogo esloveno Slavoj Žižek (71) tem sido um dos protagonistas do debate intelectual, em um mundo que enfrenta grandes mudanças. Referência ideológica para boa parte da esquerda, em inícios do ano, renovou suas credenciais como um pensador provocador ao postular que a pandemia de coronavírus seria “um golpe letal para o capitalismo” e uma oportunidade para reinventar a sociedade (a resposta antagônica do filósofo Byung-Chul Han – “Žižek se engana. Nada disso acontecerá”, escreveu – animou uma das discussões interessantes das ideias na pandemia).
Mas antes do vírus, que para Žižek representa uma oportunidade para pensar uma sociedade “para além do estado-nação, uma sociedade que atualiza a si mesma nas formas de solidariedade e cooperação global”, o filósofo esteve muito interessado e envolvido no que acontece politicamente no Chile. Há pouco, o filósofo esloveno - que a revista Foreign Policy incluiu na lista 2012 dos 100 maiores pensadores do globo - divulgou um vídeo em que afirma que diferente das “escolhas de mercado”, cujo resultado considera indiferente, o Chile enfrenta hoje uma “verdadeira escolha”.
Nesta entrevista, o professor da Universidade de Liubliana, que este ano já publicou três livros, incluindo “Pandemic!: Covid-19 Shakes the World, explica por que a crise chilena tem ressonâncias globais. Além disso, o pensador – que alguns anos atrás se definiu como um “esquerdista amargo” – reflete sobre o problema da violência e a política do século XXI.
Um ano depois do 18 de outubro, Žižek reflete sobre uma das palavras mais onipresentes nas manifestações: “dignidade”. “Penso que este ponto é crucial”, diz. “Apesar da pobreza, a fome e a violência, apesar da exploração econômica, os protestos que explodem agora no Chile e Turquia, da Bielorrússia à França, evocam regularmente a dignidade. Lembro-me que conversei com meus amigos em Istambul e me disseram que lá também seu lema principal era a dignidade, até mais que a liberdade política e as questões econômicas. Não podiam suportar como o regime de Erdogan os humilhava, tratando-os como idiotas. Acredito que a dignidade é a resposta popular ao cinismo aberto dos que estão no poder. Como destacou o filósofo Peter Sloterdijk, há quase meio século, a fórmula da ideologia atual não é “não sabem o que estão fazendo”, mas “sabem o que estão fazendo e, não obstante, continuam fazendo”.
A entrevista é de Constanza Michelson, publicada por La Tercera, 16-10-2020. A tradução é do Cepat.
Disse que a crise chilena tem relevância universal...
O Chile está em uma situação específica, mas considero que esta mesma especificidade faz com que seja mais universal que outras: marca a passagem de um tipo para outro de protesto. Lutar contra a ditadura de Pinochet era a luta pela democracia contra um regime abertamente autoritário, agora, são questionados os próprios limites da democracia liberal capitalista.
Questiona-se a forma da democracia das sociedades liberais?
Os protestos que estão sacudindo o mundo nos últimos anos oscilam claramente entre dois tipos. Por um lado, temos os de recuperação, que contam com o apoio dos meios de comunicação liberais ocidentais. É o caso de Hong Kong, Bielorrússia. Por outro lado, temos manifestações muito mais preocupantes, que reagem aos limites do projeto liberal-democrático em si: Coletes Amarelos, Black Lives Matter, Extinction Rebellion, no próprio Ocidente desenvolvido. A relação entre estes dois tipos se assemelha ao conhecido paradoxo de Aquiles e a tartaruga.
Em uma estrada, Aquiles permite à tartaruga uma vantagem e cada vez que ele chega a algum lugar onde a tartaruga esteve, ainda lhe resta alguma distância para que possa alcançá-la. Mas se permitirmos que Aquiles corra 200 metros, e na mesma unidade de tempo, a tartaruga percorrerá só 4 metros, sendo deixada muito para trás por Aquiles. Então, a conclusão que se impõe é: Aquiles nunca pode alcançar a tartaruga, mas pode passá-la facilmente.
Agora, substituamos Aquiles por “forças do levante democrático” e a tartaruga pelo ideal do “capitalismo liberal-democrático”. Logo percebemos que a maioria dos países não podem se aproximar muito deste ideal e que seu fracasso em alcançá-lo expressa debilidades do próprio sistema capitalista global. Tudo o que estes países podem fazer é a arriscada manobra de ir além deste sistema, o que, é claro, acarreta seus próprios perigos.
Além disso, somos obrigados a perceber que, enquanto os manifestantes a favor da democracia se esforçam para alcançarem o Ocidente liberal-capitalista, há sinais claros de que, na economia e na política, o próprio Ocidente desenvolvido está entrando em um pós-capitalismo, uma era pós-neoliberal, é claro, distópica.
Ou seja, considera que a crise tem a ver com o fato de que as democracias liberais se depararam com sua própria contradição?
O economista e filósofo Yanis Varoufakis se referiu a um sinal chave do que virá: a reação das bolsas de valores. Quando foi anunciada a maior recessão no Reino Unido e nos Estados Unidos, o mercado de valores registrou um recorde. Ainda que parte disto possa ser explicado pelos simples fatos de que a maioria dos máximos do mercado de valores pertencem a poucas empresas que prosperam agora, do Google à Tesla, o que vemos é uma dissociação entre a circulação e especulação financeira com a produção e os lucros. A verdadeira escolha é então: em que tipo de pós-capitalismo estaremos?
Precisamente, Hannah Arendt escreve, a propósito dos protestos estudantis de inícios dos anos 1970, que as explosões violentas são as dores de parto de uma sociedade que já estava em transição.
Arendt disse isto em sua polêmica contra Mao, que disse que “o poder surge do canhão de uma arma”. Arendt qualifica isto como uma convicção “completamente não marxista” e afirma que, para Marx, as explosões violentas são como “as dores de parto que precedem, mas, claro, que não causam, o nascimento orgânico do evento”.
Basicamente, concordo com ela, mas acrescentaria duas coisas. Primeiro, recorda a clássica cena de desenhos animados de um gato que simplesmente continua caminhando à beira do precipício, ignorando que já não tem terra sob os seus pés. Cai apenas quando olha para baixo e percebe que está suspenso no abismo. Nossa velha sociedade já está morta, simplesmente existem aqueles que não sabem e precisamos lembrá-los, fazer com que olhem para baixo e vejam o abismo sob os seus pés, mas como?
Não considero que seja possível fazer os que estão no poder enxergar, que “já estão mortos”. Em nosso universo cínico, em certo sentido já sabem, mas seguem como de costume. É assim que funciona a ideologia em nossa era cínica: não precisamos acreditar nela. Ninguém leva a sério a democracia ou a justiça, todos somos conscientes de sua corrupção, mas as praticamos, demonstramos nossa fé nelas, porque supomos que funcionam, mesmo que não acreditamos nelas.
O que isto significa em nosso caso é que nunca acontecerá uma passagem do poder “democrático” plenamente pacífico, sem as “dores de parto” da violência. Sempre haverá momentos de tensão em que são suspensas as regras do diálogo democrático e as mudanças.
Existe algo que mudaria, quase dez anos depois, em seu livro “Sobre a violência”?
Talvez só modificaria alguns pequenos acentos. Insistiria mais na diferença entre uma violência física ou mental, necessária para reproduzir o sistema, e uma “violência” dirigida contra o sistema, mas que pode respeitar plenamente todas as nossas liberdades e regras democráticas. Neste sentido, por mais louco que pareça, Gandhi era mais violento que Hitler.
Hitler não “tinhas as cartas” para mudar as coisas. Todas as suas ações foram fundamentalmente reações, atuou para que nada mudasse realmente, para evitar a ameaça comunista. Seu objetivo de eliminar os judeus foi, em última instância, um ato de deslocamento em que evitou ao inimigo real, ou seja, o núcleo das próprias relações sociais capitalistas. Gandhi, ao contrário, fez um movimento que se esforçou efetivamente para interromper o funcionamento básico do estado colonial britânico, respeitando todas as regras democráticas. A violência direta é, portanto, em regra geral, uma reação à ameaça de uma mudança. Quando um sistema está em crise, começa a quebrar suas próprias regras.
Em “A coragem da desesperança”, dizia que é preciso abraçar completamente a desesperança. Naquele momento, Trump triunfava e surgiam as direitas nacionalistas no mundo. Hoje, você tem esperança?
Sigo me apegando a essa fórmula de Giorgio Agamben. Por “desesperança” não me refiro a um tipo de pessimismo de “não há saída”, apenas considero que não podemos imaginar uma verdadeira mudança dentro das coordenadas básicas da ordem existente, no sentido de “radicalizemos nossa democracia”. O caminho para a verdadeira mudança se abre apenas quando perdemos a esperança em uma mudança dentro do sistema. Se isto parece muito “radical”, lembre-se que hoje nosso capitalismo já está se transformando em algo novo, em um novo tipo de regime opressivo.
É essa “desesperança” tática que o levou a afirmar, nas eleições passadas, nos Estados Unidos, que era menos ruim a vitória de Trump que a de Clinton? O que pensa sobre as próximas eleições?
Meu argumento foi que Trump é pior que Hillary Clinton. Esse era meu ponto. Esperava que, como reação a seu governo, a esquerda nos Estados Unidos se constituísse como uma força política independente. Isto, sim, aconteceu com o surgimento dos chamados socialistas democratas dentro do Partido Democrata, mas penso que hoje, com a pandemia, o que está em jogo é simplesmente nossa sobrevivência, razão pela qual aconselho a meus amigos nos Estados Unidos a votar em Biden. Paradoxalmente, a tarefa da esquerda é agora, como destacou Alexandria Ocasio-Cortez, salvar nossa democracia “burguesa”, no momento em que o centro liberal é muito frágil e indeciso para fazer isto. Que vergonha! Agora temos que travar inclusive suas batalhas.
Foi muito crítico à culturalização da política, também com as militâncias antirrepresentação. Como pensa a política do século XXI?
O século XXI começou com os atentados do 11 de setembro que marcam o fim da visão de Fukuyama. Agora, sabemos que o sonho de uma expansão universal do capitalismo liberal-democrático acabou. Mas estou disposto a dar um passo a mais aqui. O que hoje deveria se tornar problemático é precisamente um traço que Marx, Lenin e seus oponentes anarquistas tinham em comum: destroçar os aparelhos estatais existentes e os substituir por algum tipo de auto-organização transparente da sociedade, que exclua a alienação e a representação política.
Pelo contrário, penso que, finalmente, é preciso abandonar o mito da inocência perdida da “Comuna de Paris”, como se os comunistas fossem comunistas antes do terror comunista “totalitário” do século XX. Como se na “Comuna” um sonho se tornasse realidade, mesmo se as pessoas efetivamente comessem ratos.
O que aconteceria se, em contraste com a grande obsessão por superar a alienação das instituições estatais e conquistar uma sociedade autotransparente, nossa tarefa hoje fosse quase a oposta? Ou seja, promulgar uma “boa alienação”. O que acontece se necessitamos de um conjunto de instituições “alienadas”? Que, justamente como “alienadas”, sustentam o espaço de nossa liberdade, da mesma maneira que podemos pensar e falar livremente só através da linguagem, que não é senão uma substância não transparente de nossa vida mental.
Mas dá a impressão de que a ideia de que não somos transparentes para nós mesmos é pouco popular. Ao contrário, são tempos de extrema confiança na vontade e no “eu”. Suponho que essa é a parte em que incorpora a psicanálise e Hegel em suas análises.
Faço isto em um movimento crítico contra o marxismo tradicional, que também se baseia no progresso histórico geral que conduziria ao comunismo. Então, os comunistas podem assim se permitir confiar na história, atuar de acordo com suas leis e saber o que fazem. Mas acredito que deveríamos reverter a fórmula proposta por Robert Brandom, o grande hegeliano liberal de hoje: “o espírito de confiança”. Não é o traço mais profundo de um verdadeiro enfoque hegeliano um espírito de desconfiança?
Ou seja, o axioma básico de Hegel não é a premissa de que, por mais terrível que seja um evento, ao final, resultará em um momento subordinado que contribuirá para a harmonia geral. Seu axioma é que não importa o quão bem planejada e pensada uma ideia ou um projeto, de alguma forma, sairá ruim: a comunidade orgânica grega de uma pólis se converte em uma guerra fraterna, a fidelidade medieval baseada na honra se converte em um lisonjeio vazio, a luta revolucionária pela liberdade universal se converte em terror.
A questão de Hegel não é que este giro incorreto das coisas poderia ser evitado, mas que precisamos aceitar que não há um caminho direto para a liberdade concreta. A “reconciliação” reside apenas no fato de que nos resignamos à ameaça permanente de destruição, que é uma condição positiva de nossa liberdade.
O mesmo é possível dizer a respeito de outros temas que são planejados. Por exemplo, no campo sexual. Mesmo quando se tenta liberar, continua complicado.
A epidemia de Covid acaba de concluir o processo de digitalização progressiva de nossas vidas. As estatísticas mostram que os adolescentes de hoje dedicam muito menos tempo para explorar a sexualidade do que para explorar a web e as drogas. Mesmo quando se envolvem no sexo, fazê-lo no ciberespaço, com toda a pornografia hardcore que se oferece, não é muito mais fácil?
Mas deveríamos dar um passo a mais aqui. E se nunca houvesse existido um sexo completamente “real”, sem um suplemento virtual ou fantasioso? A masturbação se entende normalmente como “fazer a si mesmo, enquanto imagina um casal ou casais”, mas e se o sexo for sempre, até certo ponto, masturbação com uma parceira real? A isto acrescentaria a lição da psicanálise: algo está constitutivamente podre no estado de sexo, a sexualidade humana está em si pervertida, exposta à mistura de realidade e fantasia.
Mesmo quando estou só com minha parceira, minha interação sexual com ela/ele está inextrincavelmente entrelaçada com minhas fantasias, ou seja, utilizo a carne e o corpo de minha parceira como apoio para realizar e representar minhas fantasias. Não podemos diminuir esta lacuna entre a realidade corporal de minha parceira e o universo das fantasias a uma distorção aberta pelo patriarcado e a dominação ou exploração social. A lacuna está aqui desde o princípio. É por esta mesma razão que, como parte da relação sexual, um pedirá ao outro que continue falando, geralmente narrando algo “sujo”, inclusive quando tenha em suas mãos a “coisa em si”.
Você é feminista?
Sim, sou. Oponho-me apenas a certo tipo de teoria de gênero que vê a diferença sexual como uma construção social imposta pela ordem patriarcal opressiva, sobre uma sexualidade fluida anterior. Ao contrário, penso que a diferença sexual a partir de Lacan, que não é binária no sentido de uma oposição simbólica fixa. É uma diferença “impossível”, uma lacuna traumática que diferentes identidades sexuais tentam ofuscar.
Outro problema adicional que vejo com o feminismo contemporâneo, nos países ocidentais desenvolvidos, é que, como demonstrou Nancy Fraser, a forma predominante do feminismo estadunidense foi basicamente cooptada pela política neoliberal. Deveria haver mais mulheres em posições de poder, mas a estrutura de poder em si não deveria mudar. Devemos ajudar os pobres, mas devemos continuar sendo ricos. Não se deve abusar de uma posição de poder em uma universidade para obter favores sexuais daqueles que estão subordinados a nós, mas tudo bem para o poder que não se sexualiza.
A propósito da hegemonia que vai tomando a racionalidade da técnica, e que, como dizia Heidegger, a ciência não pensa em consequências, que exigência tem o pensamento no tempo que nos toca?
Necessita-se simplesmente de um pensamento filosófico verdadeiro, um pensamento que reflita sobre os pressupostos e implicações do que estamos fazendo. Por exemplo, Elon Musk e outras figuras corporativas estão anunciando a possibilidade da Neuralink, a conexão digital direta entre nossas mentes, que fará com que a linguagem seja obsoleta. A pergunta que devemos fazer aqui é como esta mudança afetará o que significa “ser humano”. Teremos que aprender a fazer questões muito básicas. Acredito que está chegando uma nova era da filosofia.