27 Setembro 2020
"A Igreja doméstica já vive a comunhão eucarística nas refeições comuns, nos sonos comuns, no cuidado comum. Não haverá escritório em Roma, em Tübingen ou em Moscou que tenha autoridade para lhe negar isso", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 25-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O olhar sobre as questões que dizem respeito à “comunhão eucarística” amadureceu ao longo dos séculos segundo modelos teóricos e práticos bastante diferenciados. O nosso saber eucarístico, a prática ritual que o substancia ou a oração com a qual nos referimos à eucaristia também são marcados por esses modelos e são influenciados pelo seu modo de olhar, de pensar e de rezar o mistério eucarístico.
Sem espírito polêmico, mas com o discernimento necessário para um desafio tão importante, devemos reconhecer que as novas questões, levantadas por “formas de vida” inéditas, nos forçam a pensar, a meditar e também a rezar na eucaristia de modo novo.
O que aconteceu, na perspectiva de uma avaliação da resposta da Congregação para a Doutrina da Fé à elaboração alemã de uma possível “comunhão eucarística” interconfessional, merece um julgamento que vá além de questões individuais, embora relevantes, e que toque, de modo significativo, todo um “paradigma” de leitura e de julgamento sobre a tradição. Esse paradigma, que aparece com muito clareza na resposta da Congregação, pode ser definido como “dogmático-disciplinar” e se preocupa essencialmente com uma questão muito séria: ou seja, com a “autoridade”.
O que esse paradigma custa a elaborar é precisamente a “mudança epocal” dentro da qual a Igreja, também a Igreja Católica, teve que acertar as contas com as formas de vida inauguradas pela época tardo-moderna, ou seja, a partir do século XIX. Existem novas “autoridades” a serem levadas em conta e que fogem ao olhar clássico.
Tal novidade se apresenta, de modo evidente, no documento “Juntos à mesa do Senhor”, que foi elaborado por uma comissão mista católico-luterana e que certamente trabalha em uma perspectiva fundamental, mas cuja intenção é bem fotografada por esta clara e linear conclusão, que desejo relatar aqui na íntegra:
“O Grupo de Trabalho Ecumênico de Teólogos Evangélicos e Católicos considera teologicamente fundamentada a prática da participação recíproca na celebração da Ceia/Eucaristia no respeito às tradições litúrgicas alheias. Ela é pastoralmente oportuna, especialmente na situação de famílias de confissão mista. Tanto em vista do caso individual quanto como normativa geral, ninguém pode se contentar com as soluções até agora existentes. Esse parecer implica o reconhecimento das respectivas formas litúrgicas, assim como dos serviços de presidência, do modo como assumidos pela comunidade que celebra e convida à celebração, em nome de Jesus Cristo, os batizados de outras confissões. Não se deseja uma nova forma concordada de liturgia eucarística além das tradições que cresceram ao longo da história. Na práxis por nós proposta, pressupõe-se o reconhecimento do batismo como vínculo sacramental da fé e como pressuposto de participação.”
Eu quis retomar esse trecho na sua íntegra porque ele fotografa plasticamente a “mudança de paradigma”. O “olhar” sobre a questão fundamental da comunhão eucarística move-se aqui a partir da “periferia”, que, porém, se torna centro. A periferia, que é o novo centro, são as “famílias confessionalmente mistas”. Precisamente aquilo que para a Congregação permanece irremediavelmente “periférico”, para o documento alemão assumiu uma nova centralidade. Ou seja, as “formas de vida de comunhão”, que envolvem ao mesmo tempo um/a católico/a e um/a luterano/a, são “lugares de julgamento e de crise” das Igrejas de pertença.
Quem experimentou uma “comunhão familiar”, que edifica casas, gera filhos, forma as consciências, constrói relações, anunciando desse modo a Boa Nova, mas, enquanto isso, foi forçado a celebrar a comunhão eucarística “na divisão eclesial”, compreende que a família se tornou profecia para as Igrejas. As famílias estão à frente, e as Igrejas, até mesmo as Congregações, arrastam-se atrás.
É preciso acrescentar que a questão assumiu, também para os católicos, uma relevância própria somente depois que mudaram duas condições eclesiais e sociais totalmente decisivas:
- Os casamentos mistos, pelo menos em algumas regiões, intensificaram-se muito (a partir da autodeterminação de homens e mulheres). Na sociedade tradicional, os grupos eclesiais tendiam a se fechar sobre si mesmos.
- A comunhão tornou-se “frequente”, mas somente depois de Pio X. Em um mundo católico em que a comunhão da família só se realiza na Páscoa, ninguém escreveria documentos como o examinado!
O “paradigma clássico”, que a Congregação parece manter como o “único possível”, é marcado por alguns limites que eu gostaria de definir como “existenciais” e que são o fruto de escolhas que estão a montante em relação aos problemas.
O julgamento da Congregação, de fato, limita-se a considerar as evidências “dogmático-disciplinares”, que, no entanto, a vida sabe e pode transformar. Mas a vida só pode transformar essas evidências quando os sujeitos envolvidos se deixam “tocar pela vida”. Uma Congregação que trabalha com padrões e estruturas do século XVI, composta exclusivamente por presbíteros ou bispos desprovidos de família, ou seja, sem esposa e sem filhos, não consegue sair do paradigma clássico, não consegue perceber a centralidade da periferia e assumir o olhar novo, que é necessário para interceptar essa nova realidade.
Por isso, como é evidente, o tema da “comunhão eucarística” se liga, com um nó inextricável, com o tema de uma visão aberta e dinâmica da ministerialidade eclesial. Homens casados com autoridade eclesial e mulheres com autoridade eclesial são hoje uma “condição de possibilidade” não tanto para dar soluções adequadas às questões, mas para compreender e entender os problemas e as suas prioridades.
Uma preocupação dogmático-disciplinar apenas, sobre cuja consistência não há razão para duvidar, pode se tornar uma visão unilateral demais, se não for acompanhada pela consciência das mudanças antropológicas, sociais, afetivas e ministeriais que mudaram o mundo e também a Igreja. A autodeterminação do sujeito (masculino e feminino) no âmbito matrimonial e no âmbito eucarístico aparece, então, como uma das causas daquele problema que hoje se torna oportunidade e profecia eclesial, desde que não seja abordado de modo redutivo e com um paradigma datado demais. E seria tudo muito mais simples se os católicos se casassem apenas com católicos e se a comunhão fosse feita apenas na Páscoa. Mas o mundo não é assim há mais de um século, sem culpa de ninguém!
Um bom teólogo não católico, Fulvio Ferrario, escreveu um post muito lúcido sobre o tema, com o qual eu estou amplamente de acordo. Mas em uma coisa eu discordo: ele escreveu que os teólogos católicos “devem colocar seus corações em paz”, porque a Igreja Católica não pode aceitar a comunhão eucarística com confissões diferentes.
Eu acredito que, precisamente como teólogo católico, só posso cultivar aquela “inquietação” sem a qual não poderia mais olhar serenamente para o meu rosto no espelho todas as manhãs. A fé comum no Senhor Jesus, embora na diversidade das tradições ou, melhor, honrando precisamente essas diferenças, não pode impedir que, em certas circunstâncias, sem torná-la uma norma geral, seja possível “compartilhar a fração do pão” entre sujeitos confessionalmente diferentes.
De modo particular, isso deve valer para aquelas “formas de vida” como o matrimônio, em que a “diversidade de confissão” não impede a vida de uma “Igreja doméstica”. A Igreja doméstica já vive a comunhão eucarística nas refeições comuns, nos sonos comuns, no cuidado comum. Não haverá escritório em Roma, em Tübingen ou em Moscou que tenha autoridade para lhe negar isso.
Trata-se, em vez disso, de reconhecer uma comunhão que já existe, não de fazer um ato criativo. Reduzindo as pretensões de autoridade e reconhecendo ao Senhor Jesus e à sua fração do pão a autoridade primeira e última, tudo será mais simples e mais verdadeiro. E também poderíamos ler as claras diferenças entre as tradições, no olhar renovado da fé comum, não sobretudo como “erros” dos quais devemos nos proteger, mas como “riquezas” das quais não devemos nos privar.
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O olhar sobre a “comunhão eucarística”: uma mudança de paradigma. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU