22 Setembro 2020
A eucaristia é uma “instituição central” da vida eclesial. Por isso, “participar da celebração” é mais do que simplesmente “dar ou receber a comunhão”. Viver a dinâmica eucarística não é simplesmente “ter direito a (ou a possibilidade de) receber o sacramento”.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado pelo blog Come Se Non, 21-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na retomada do debate sobre a chamada “intercomunhão” – ou seja, a possibilidade de uma hospitalidade eucarística reconhecida entre católicos e luteranos – é necessário enfocar uma série de pontos delicados, em torno dos quais estão em jogo a plausibilidade e a dificuldade de um desenvolvimento significativo.
Não entrarei diretamente na discussão que parece se entrelaçar entre o episcopado alemão e a Congregação para a Doutrina da Fé, mas me limitarei a evidenciar alguns “limites sistemáticos” que parecem afligir os dois lados ao mesmo tempo.
O ecumenismo é um modo de reencontrar a paz. A paz se “faz” e se “recebe”. Na paz, não há apenas o otimismo da vontade, mas também o reconhecimento do dom. Se posso descobrir a diferença do outro não só como problema, mas também como oportunidade, compreendo que é possível uma “comunhão na diferença”.
Mas essas passagens não são fáceis, porque cada identidade, quando amadurecida por um longo conflito, sente uma necessidade invencível de “manter o conflito” para ser ela mesma. Como é possível ser católico sem ser antiluterano? E como é possível ser luterano sem ser anticatólico?
O conflito, uma vez institucionalizado, permite que os sonhos e as consciências se movam, mas tende a bloquear as instituições, que “escandalizam” assim que dão um pequeno passo à frente. E o escândalo não repousa apenas em “mentalidades”, mas também em “vidas”, em “tragédias”, em “lutos”.
E, assim, a força das tradições eclesiais e familiares também tende a se “manter firme”, mesmo que seja para honrar a memória dos avós ou do bisavós! Mas o sonho do desejo e a consciência da justiça sabem que essa “divisão no batismo” é um mal que deve ser superado.
Os sonhos e as consciências têm um imediatismo próprio que nenhuma instituição pode antecipar. Mas, sozinhos, não conseguem fazer isso. Ai de nós se eles não existirem. Mas ai de nós se confiarmos apenas neles.
É preciso acrescentar um segundo ponto como premissa. As tradições católica e luterana se distinguem em diversos aspectos, mas um deles, analisado com particular amplitude e profundidade, é o “papel das mediações”.
Não há dúvida, de fato, de que, na tradição católica, a relevância da mediação institucional constitui uma peculiaridade à qual dificilmente se poderia renunciar. Ai de nós se fizéssemos isso também nesse caso. Mas é preciso se perguntar, com muita franqueza, se precisamente essa “paixão institucional católica” não está um pouco murcha e enrijecida, não sabendo elaborar a tradição de modo plenamente eficaz.
Na questão que estamos examinando – ou seja, a possibilidade de que a “comunhão eucarística” se torne, pelo menos parcialmente, compartilhada entre sujeitos de confissões diferentes – parece-me que o nosso raciocínio, tanto positiva quanto negativamente, reflete sobre a tradição com instrumentos conceituais frágeis demais e com figuras institucionais pobres demais.
Se o acesso à eucaristia é garantido, institucionalmente, apenas por “doutrinas coerentes” e por “ofícios confiáveis”, talvez isso signifique que ainda não conseguimos compreender que o elemento institucional primeiro é a eucaristia como tal.
Se a Igreja “vive” da eucaristia, isso significa que a ceia do Senhor e a celebração eucarística são um “primum” no que diz respeito aos seus conteúdos doutrinais e às suas funções ministeriais. Aqui, evidentemente, utilizamos na discussão instrumentos jurídicos e institucionais que não estão totalmente à altura da questão e que acabam por reduzi-la a uma dimensão baixa demais, que a desfigura.
Houve um arcebispo que propôs “dar a comunhão ao luterano” apenas depois de lhe pedir, talvez na procissão eucarística, que fizesse o ato de fé sobre o “primado do bispo de Roma”. Sem chegar a essas formas caricaturais, aqui se paga o preço de um “olhar distorcido”. Recuperar um “olhar correto” – ou seja, olhar o outro não principalmente como “sujeito do erro a ser corrigido”, mas como “sujeito de diferença a ser valorizada” – exige não apenas “sonhar” e “examinar a consciência”, mas também elaborar novos instrumentos institucionais. Porque, se você quer desparafusar um parafuso, não pode usar o martelo.
É totalmente inevitável que, quando se pensa de modo institucional, entre-se em relação com a normativa vigente. E, dentro dela, com a técnica da interpretação e da hermenêutica, é possível encontrar as “aberturas” para poder elaborar estratégias novas. E é típico das instituições “iniciar” a partir dessas aberturas. Mas, em alguns casos, é a qualidade da “abertura” que é problemática.
De fato, a argumentação que autorizaria uma “comunhão eucarística” dentro de uma família “mista” raciocina apenas segundo o “estado de necessidade”, como se se tratasse de um “caso de morte”. Aqui recorremos a uma tradição institucional frágil demais. Que não foi atualizada por duas aquisições fundamentais, amadurecidas ao longo do século XX e que não estão presentes, inevitavelmente, na “mens” do código, cuja estrutura foi elaborada em 1917, embora posteriormente emendada em 1983, mas não de forma tão profunda.
O que falta à “consciência institucional católica” para enfrentar eficazmente a questão da intercomunhão? Tento dizer isso rapidamente em dois pontos:
a) A eucaristia é uma “instituição central” da vida eclesial. Por isso, “participar da celebração” é mais do que simplesmente “dar ou receber a comunhão”. Viver a dinâmica eucarística não é simplesmente “ter direito a (ou a possibilidade de) receber o sacramento”.
b) A família não é simples “receptora de comunhão”, mas lugar de elaboração e de prova da comunhão. A família é “sujeito” e “Igreja doméstica”, mesmo quando é “mista”. Por isso, ela pode ser uma profecia de comunhão eclesial: uma família mista anuncia uma profecia de comunhão eclesial. É uma antecipação da comunhão eucarística que a comunidade talvez possa, ou talvez deva, “reconhecer”.
Se o olhar que considera a questão não for enriquecido por essas aquisições institucionais, ele girará em vão, criará irrealidades e “casos limítrofes” pensando a realidade apenas “negativamente”. Não é apenas a “salus animarum” a fronteira da instituição, mas também a “vita corporum”. Há elementos das “formas de vida” que constituem uma profecia institucional, com uma exterioridade corporal e sensível própria, que exige formas novas de reconhecimento.
Para avaliar essa mudança de “olhar” – que está bem presente na trama do pensamento magisterial e eclesial das últimas décadas – tento aqui oferecer uma “narrativa” talvez inusitada, mas que eu acho pertinente.
Desde Pio X, intuiu-se que a eucaristia era não apenas “culto privado”, mas também “instituição eclesial”. Por isso, fazia sentido, à época, no início do século XX, apostar na “comunhão frequente”, na consciência de que a “comunhão eucarística” não devia ser um “prêmio semel in anno”, mas “remédio cotidiano”.
Uma Igreja que oferece durante séculos a comunhão à maioria dos fiéis “apenas na Páscoa” e que decide que os mesmos fiéis podem comungar não uma, mas 365 vezes por ano está fazendo uma pequena revolução, que diz respeito ao valor institucional da eucaristia e à relação entre eucaristia e Igreja.
Um dos últimos efeitos dessa grande reavaliação, mais de um século depois, mas quase com as mesmas palavras, foi a “abertura eucarística aos divorciados recasados” amadurecida na Amoris laetitia. Uma consequência adicional poderia ser a “recaída ecumênica” da consciência de que “a Igreja vive da Eucaristia”.
No entanto, não é difícil captar como a força dessa lógica institucional da eucaristia é facilmente argumentada com o recurso à “consciência” (e ao foro interno). Isso seguramente constitui uma abertura do sistema, mas oferece uma solução que, de fato, permanece desprovida de perfil institucional.
A força institucional da eucaristia não se deixa encerrar apenas nos “sonhos” ou nas “consciências”. Ela exige o reconhecimento de exterioridade de bem, por mais embaraçoso que seja. Até que a Igreja não encontre a coragem de um “reconhecimento institucional” – da comunhão dos divorciados recasados ou das famílias confessionalmente “mistas” – ela permanece no meio do vau.
Para fazer isso, no entanto, ela deve elaborar categorias novas. Não pode fazer isso apenas submetendo as velhas categorias (por exemplo, da nulidade do vínculo ou do “caso de morte”) a novas pressões. Metodologicamente, não há alternativa a esse caminho longo.
De algum modo, essa dificuldade “institucional” deriva do enrijecimento que, no plano institucional, jurídico e administrativo, a Igreja Católica, compreensivelmente, sofreu com a “brecha da Porta Pia”.
A mais alta resposta institucional a esse trauma – o Código de 1917 – esperou ser capaz de “blindar” a Igreja em um código “universal e abstrato”. Uma ideia hipermoderna – precisamente a ideia de lei universal abstrata – serviu de suporte para uma operação institucional grandiosa, mas com pés de barro.
Perdendo a secular “flexibilidade institucional”, a Igreja Católica correu o risco de se enforcar em um modelo rígido, identificando-se com as formas do século XIX de reação à modernidade.
A gestão das questões ecumênicas também corre o risco de ser afetada por essa redução da “instituição” à sua norma geral e abstrata. Ai de nós se pensarmos com essas categorias rudes demais a comunhão eucarística, o ápice e a fonte da nossa identidade, que é “o fim”, mas também “o final” de todas as nossas bravas normativas: a eucaristia não é sobretudo um “bem a administrar”, mas um “bem que nos administra”.
Ora, no que diz respeito ao “sistema”, a consciência que discerne e o inconsciente que sonha nos fazem respirar, mas não mudam o sistema.
Não é por acaso que, também sobre esse tema delicado da intercomunhão, uma das expressões mais famosas do Papa Francisco, com razão, tenha feito referência à “consciência dos cônjuges” como “summa lex”. Isso já é muito, mas não basta.
Devemos dar “forma institucional” a esse “primado eucarístico” que não é apenas “intimior intimo meo”, mas também “exterior extremo meo”. O cuidado do poder institucional da eucaristia significa “render-se às novas evidências”. À evidência de que um casal de “divorciados recasados” vive uma verdadeira comunhão familiar e eclesial. À evidência de que um casal de cônjuges pertencentes a confissões cristãs diferentes vive a comunhão familiar e eclesial de modo exemplar. As formas de vida antecipam o caminho eclesial. Por isso, são “instituições” a serem reconhecidas.
O sonho eclesial e as novas evidências da consciência esperam a laboriosa tradução institucional, aberta, clara, reconhecedora. O Rev. King, que “tinha um sonho”, preparou o crescimento civil dos Estados Unidos e se chamava Martin Luther. O padre jesuíta Bergoglio, que sonhou com a família, a Amazônia e a terra segundo uma ordem mais justa, prepara a Igreja para formas institucionais e jurídicas novas, e é bispo de Roma e papa.
A eucaristia institui novas formas de comunhão. A teologia só pode interpretá-las assumindo um novo olhar. Mas nós olhamos apenas para aquilo que sabemos nomear e pensar de modo adequado. Essa distância e proximidade entre olhar, palavra e pensamento é o espaço no qual a tradição coloca o magistério dos teólogos ao lado do magistério dos pastores. A instituição eucarística precisa de ambos, para que nada da sua irreprimível profecia se perca ou se desfigure.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sonho, consciência e instituição. Qual ecumenismo para a eucaristia? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU