03 Agosto 2020
“Joseph Moingt sustentou que a atual crise religiosa tem profundas raízes culturais e a Igreja não parece contar com a atitude requerida para a enfrentar devidamente. É inegável que assistimos a um retorno difuso e ambíguo do religioso, mas também que semelhante retorno não está acontecendo da forma como se poderia esperar, já que não reforça em nada as grandes instituições religiosas. Trata-se de um retorno no qual a estrutura hierárquica das grandes religiões fica estacionada, em favor de formas mais comunitárias, mais autônomas e corresponsáveis e, por isso, mais democráticas”, escreve Jesús Martínez Gordo, teólogo, em artigo publicado por Religión Digital, 30-07-2020. A tradução é do Cepat.
No dia 28 de julho de 2020, faleceu Joseph Moingt, aos 104 anos, um jesuíta dedicado à compreensão da fé em um mundo progressivamente distante da mesma. Mas também interessado em uma Igreja que, urgida a escutar e discernir os ruídos de tal mundo, percebia desmedida e crescentemente distante do mesmo, em uma boa parte de seus responsáveis institucionais, ainda que muito atenta a se confrontar com alguns de seus muitos desafios, entre outra parte notável dos batizados. Suas contribuições mais relevantes foram presididas por esta dupla inquietação, inclusive em seu último livro, publicado aos 103 anos, L’esprit du christianisme [O espírito do cristianismo], e escrito em primeira pessoa e com uma liberdade invejável.
Tive a sorte de me encontrar com ele em diferentes ocasiões na residência que, nas décadas finais do século passado, os jesuítas tinham na rua Monsieur (Paris). Em uma destas visitas, conversamos longamente sobre uma conferência que, dada por ele na Suíça, foi reunida por Jean Bernard Lang e publicada como um resumo na revista Choisir, no ano de 1994. Provavelmente, desconheça-se que não a pôde publicar da forma como havia escrito, porque o bispo da diocese entendeu que o então argumentado e proposto por J. Moingt, não era aceitável teologicamente, nem pastoralmente. A partir daquela intervenção, fecharam-se para eles as portas daquela diocese e de outras.
Joseph Moingt adentrou em uma urgência que, também compartilhada por seu amigo Bernard Sesboüe, está na origem da famosa declaração Interdicasterial de 1997, dedicada à “colaboração dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes” que, em certa ocasião, me permitiu denominar como “o desembarque teológico da Normandia”, por ter sido assinada por nada menos que oito organismos vaticanos: a Congregação para o Clero, o Pontifício Conselho para os Leigos, a Congregação para a Doutrina da Fé, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, a Congregação para os Bispos, a Congregação para a Evangelização dos Povos, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica e o Pontifício Conselho para a Interpretação dos Textos Legislativos. Quase nada!
Se não me engano, acho que que foi a primeira vez – é claro, no pós-concílio – em que houve um “desembarque” teológico e pastoral de tal profundidade. E também entendo que semelhante posicionamento – indubitavelmente carregado de uma enorme autoridade magisterial, ainda que falível, não se esqueça – não conseguiu silenciar o problema que J. Moingt, entre outros, tratou naquela ocasião. Pudemos ver isso, mais recentemente, na celebração do Sínodo da Amazônia e estamos constatando nas reações (criticamente contundentes, por parte da grande maioria do episcopado alemão) que o recente documento da Congregação para o Clero sobre as paróquias (Instrução pastoral, A conversão pastoral da comunidade a serviço da missão evangelizadora da Igreja) está provocando.
Acredito que a melhor lembrança que posso oferecer deste singular teólogo é reunir o então defendido e publicado a partir das notas tomadas por Jean Bernard Lang, um dos ouvintes, e que o próprio Joseph Moingt me afirmou que concentrava o fundamental do proposto e argumentando por ele naquela intervenção, em parte “silenciada”...
Segundo me confirmou, foi convidado para falar sobre o espetacular desenvolvimento que os ministérios laicais estavam experimentando, após a Carta Apostólica Ministeria Quaedam de Paulo VI (1972), bem como sobre a incidência que estavam tendo na concepção e na práxis do ministério ordenado. Teve um particular interesse em destacar que, embora fosse verdade que, naqueles anos, assistia-se ao retorno de uma nova religiosidade ( que caracterizou como difusa e comunitária), não era menos que tal retorno estava apresentando algumas características que não podiam ser descuidadas e que eram necessárias se ter em conta.
A atual crise religiosa – sustentou – tem profundas raízes culturais e a Igreja não parece contar com a atitude requerida para a enfrentar devidamente. É inegável que assistimos a um retorno difuso e ambíguo do religioso, mas também que semelhante retorno não está acontecendo da forma como se poderia esperar, já que não reforça em nada as grandes instituições religiosas. Trata-se de um retorno no qual a estrutura hierárquica das grandes religiões fica estacionada, em favor de formas mais comunitárias, mais autônomas e corresponsáveis e, por isso, mais democráticas. A resposta da Igreja institucional, em vez de ler de maneira inteligente este sinal dos tempos, limita-se a desautorizar e marginalizar a teologia do povo de Deus, bem como a recuperar uma concepção autoritária e marcadamente personalista do ministério ordenado e, é claro, do papado.
E, no entanto, prognosticou J. Moingt, a solução à crise presbiteral – que se mostra ainda mais difícil em meio a este retorno difuso da religião e da explosão ministerial que o acompanha – não deve ser esperada do “reavivamento pré-conciliar” ativado por João Paulo II e a cúria vaticana, mas de uma nova e mais equilibrada divisão das tarefas que correspondem à comunidade e ao sacerdote.
Nesta divisão, continuou, é claro que a responsabilidade e missão da comunidade não passa somente pelo cumprimento de seus deveres culturais, mas, sobretudo, por superar o infantilismo e a submissão aos quais esteve submetida durante séculos.
Semelhante tarefa leva a avaliar criticamente a consistência teológica e pastoral de três estratégias que, diante da crise atual de efetivos ministeriais e a impossibilidade de participar na eucaristia dominical, vem se desenvolvendo desde a segunda metade do pontificado de Paulo VI.
Entendo, sustentou, que tais estratégias devem ser avaliadas superando a eclesiologia verticalista que vem sendo promovida, em favor de outra indutiva. Esta última passa por levar a sério que o sacerdócio comum não é uma palavra vã ou um brinde ao sol.
A primeira delas, apontou seguidamente, prima por reorganizar as comunidades em função do decrescente número de sacerdotes disponíveis. Nesta estratégia, recolocam os presbíteros nos principais centros urbanos, convidando os fiéis para que se aproximem deles para satisfazer suas demandas religiosas. Esta é a solução que mais agrada a hierarquia porque não toca em nada a estrutura hierárquica da Igreja.
Na realidade – criticou J. Moingt –, é uma falsa solução porque parte de que a vida cristã gravita em torno do ministério presbiteral. No entanto, não é aceitável – apontou – que os fiéis tenham que se acomodar à escassez de sacerdotes.
As pistas que precisam ser abertas passam, ao contrário, por levar a sério que os sacramentos foram instituídos para o bem dos fiéis (portanto, a Igreja lhes reconhece o direito de recorrer a eles, até mesmo se não houver sacerdotes) e, ao mesmo tempo, por aceitar que Cristo vinculou o dom dos sacramentos ao ministério ordenado (em cujo caso é preciso encontrar formas para que os fiéis possam dispor de seus serviços, sem ter que se prender única e exclusivamente ao modelo até agora existente).
A segunda estratégia possível passa – continuou – por aceitar comunidades sem sacerdotes. Esta alternativa não é aceitável porque suporia reconstruir a Igreja sobre bases que não leva em conta sua tradição, nem seu princípio de autoridade, ou seja, de unidade. Não é viável teologicamente, nem pastoralmente.
A terceira possibilidade, destacou, é favorável a que os sacerdotes possam se casar e as mulheres ser ordenadas. Até agora, a Igreja rejeita tais vias como contrárias a uma longa tradição, desconhecendo o que dizia Tertuliano: “Cristo não é chamado costume, mas verdade”. Não há, apontou J. Moingt, razão teológica séria que se possa opor a que as mulheres sejam ordenadas. As que são mencionadas não são mais que folclóricas. E, no entanto - criticou -, as propostas que são oferecidas nesta terceira estratégia também não solucionam o problema de fundo, porque partem da hipótese incontestada de que o povo cristão não poderia viver de outra maneira a não ser sendo atendido por uma 'clerezia'. Esta é a suposição que é preciso analisar.
Diferente destas estratégias, sustentou na sequência, entendo que é preciso remar a favor de instaurar “o ministro da comunidade”.
Seu papel seria diferente daquele do sacerdote “clássico”, posto que não viria do exterior da comunidade. Seria, ao contrário, eleito por ela e estaria consagrado a seu serviço. Não ficaria investido do poder universal, perpétuo e absoluto que caracteriza o presbítero atual, mas seria ordenado unicamente para celebrar a eucaristia de tal comunidade, anunciar o Evangelho e ser responsável somente por ela. E mais, continuaria sendo membro dela e não abandonaria sua condição secular.
Evidentemente, não estaria sujeito ao celibato e seria um ministério desempenhado tanto por pais como por mães de família, viúvos, viúvas ou celibatários (sem obrigação de permanecer como tais). O normal seria que desempenhassem sua profissão civil e que seu serviço eclesial fosse por um tempo determinado, ou seja, seriam ordenados temporariamente.
É certo que esta condição temporária entra em conflito com o caráter indelével do ministério da ordem, mas não se pode desconhecer que já na Idade Média se diferenciou – certo que por outras razões – o poder de ordem do de jurisdição. Com esta distinção, reivindicou-se que era possível continuar sendo sacerdote sem receber o poder de exercer o ministério em um lugar concreto ou passado um determinado tempo. Esta distinção limitava, por exemplo, o poder de confessar em uma só diocese ou a algumas determinadas pessoas.
Pois bem, apoiados nesta prática e nesta distinção, seria possível reconhecer que estes ministros da comunidade foram ordenados indelevelmente, mas que o ministério confiado foi por um tempo determinado e restrito a uma região geográfica concreta.
Desta maneira e graças a tais ministérios, as comunidades deixariam de permanecer privadas da eucaristia, da palavra e de sua animação.
Evidentemente, prosseguiu, com esta proposta tento articular os dois dados em jogo (o equilíbrio entre “alguns” – “todos” ou entre “corpo de Cristo” – “povo de Deus”), a partir uma particular sensibilidade às demandas que brotam da comunidade cristã em nossos dias, mas sem negar ou minimizar o caráter constituinte do ministério ordenado, nem sua indelebilidade.
É certo que para a teologia protestante não há diferença “ontológica” entre o pastor e o crente batizado, já que os dois fazem parte do povo de Deus e o formam da mesma maneira, ainda que suas funções não sejam idênticas. Tal é o sentido da doutrina luterana sobre o sacerdócio universal de todos os crentes: o povo de Deus em seu conjunto (e, neste sentido, cada cristão) é o depositário do “sacerdócio real”: “todos os cristãos – sustentava o reformador – são iguais”, “todos nós somos leigos, incluídos os sacerdotes” e “todos nós somos sacerdotes, compreendidos os leigos”. Por isso, todos temos o mesmo poder diante da Palavra e diante dos sacramentos. E, por isso, não se permite a ninguém fazer uso deste poder sem o consentimento da comunidade.
Consequentemente, o culto tem lugar não porque há sacerdotes ordenados, mas porque existe uma comunidade reunida que reza e se alimenta da Palavra.
No entanto, para a teologia católica o poder do ministério vem “do alto”, pelo sacramento da ordem, e não – assim como acontece no luteranismo – graças ao reconhecimento comunitário de um dom e de uma vocação particular. Este é um ponto – indicou J. Moingt – que convém ter particularmente presente, caso queiramos nos poupar de muitos problemas domésticos e, ao mesmo tempo, abrir novas possibilidades e modalidades ministeriais, entre elas, a dos “ministros da comunidade”.
Nestes últimos anos, tive notícias dele por outras pessoas. E também de suas inquietações, nenhuma a respeito desta proposta que acabo de resenhar.
Suponho que, tendo em vista suas últimas preferências teológicas, teria quase esquecido esta contribuição e as dores de cabeça que provocou em seu momento, ainda que, conhecendo o interesse com que acompanhava os acontecimentos seculares e eclesiais, não acredito que seja uma aventura pensar que tanto o Sínodo da Amazônia, como o caminho sinodal empreendido pelos alemães, foram motivo de um ou outro sorriso... E não acredito que seja um disparate pensar que tenham sido de complacência em mais de uma ocasião.
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In memoriam do teólogo que apostou no “ministro da comunidade” para superar o clericalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU