15 Abril 2020
"Que dia, afinal, o Senhor fez para nós? Dias de flagelos e calvário, aparentemente sem fim, se estendem na história para muitas pessoas. Para algumas, já é ressurreição... mas para tantas, a noite da quinta-feira santa e a sexta-feira da paixão se prolongam dia após dia", escreve Carlos Rafael Pinto, mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE-BH) e graduado em Filosofia e Teologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF). É professor de sociologia e filosofia.
Escutamos atentamente o discurso eloquente de Pedro: Jesus foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder, andou por toda a parte, fazendo o bem e, tendo sido morto na cruz, foi ressuscitado por Deus no terceiro dia (cf. At 10,38-40). Em seguida, o salmista entoa aos céus: “Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos!” (Sl 117):
— Dai graças ao Senhor, porque ele é bom!/ “Eterna é a sua misericórdia!”/ A casa de Israel agora o diga:/ “Eterna é a sua misericórdia!”
— A mão direita do Senhor fez maravilhas,/ a mão direita do Senhor me levantou./ Não morrerei, mas, ao contrário, viverei/ para cantar as grandes obras do Senhor!
— A pedra que os pedreiros rejeitaram/ tornou-se agora a pedra angular./ Pelo Senhor é que foi feito tudo isso:/ Que maravilhas ele fez a nossos olhos!
O que nossos olhos captam? Sinais de alegria ou tristeza? Desespero ou esperança? As linhas escritas por Carolina Maria de Jesus, em seu diário publicado com o título Quarto de despejo, ecoam: “é triste a condição do pobre na terra”. Escreveu, em diário, em 17 de maio de 1958: “Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava discontente[1] que até cheguei a brigar com o meu filho José Carlos sem motivo”.
Tantos padecem os flagelos da fome, dos preconceitos e do subemprego. Há um momento efusivo em que Carolina Maria de Jesus escreve, em 16 de junho de 1959: “... Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?”.
Diante do testemunho de Carolina Maria de Jesus e de tantas vítimas, por qual motivo alegrarmo-nos nos últimos tempos? “Parece que Deus esqueceu seu povo... ou escolheu alguns e desprezou os outros”, assim alguns podem pensar. Dados do Cadastro Único do Ministério da Cidadania mostram que a pobreza extrema no país aumentou e já atinge 13,2 milhões de pessoas (de junho de 2018 a junho de 2019).
Deus ressuscitou seu Filho no terceiro dia... e 13,2 milhões de pessoas se encontram no calvário da miséria. Será que Deus se enfraqueceu? “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo Senhor do céu e da terra”, não teria mais poder suficiente para ressuscitar as outras pessoas? Em 30 de maio de 1958, escreveu Carolina Maria de Jesus: “... Troquei a Vera e saímos. Ia pensando: será que Deus vai ter pena de mim? Será que eu arranjo dinheiro hoje? Será que Deus sabe que existe as favelas e que os favelados passa fome? (...) O único perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga”.
Que dia, afinal, o Senhor fez para nós? Dias de flagelos e calvário, aparentemente sem fim, se estendem na história para muitas pessoas. Para algumas, já é ressurreição... mas para tantas, a noite da quinta-feira santa e a sexta-feira da paixão se prolongam dia após dia. Dia que o Senhor fez para nós... Esse dia é um dia em que esperamos que a pedra seja retirada do túmulo (cf. Jo 20,1), pelas mãos bondosas daqueles que lutam pela justiça social. Esse dia é agora! Dia em que já, na terra, tantas pessoas podem se alegrar, experimentar a doçura da ressurreição e, um dia, no céu, celebrá-la definitivamente.
[1] Nas transcrições de textos de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, respeitamos a ortografia utilizada pela autora.
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