08 Abril 2020
Diz-se que os Salmos terminam em glória. É verdade para muitos deles, mas no Salmo 22 encontramos algo extraordinário. Acima de tudo: em vários Salmos onde se fala de inimigos ferozes, acrescentam-se invectivas e maldições contra eles. Neste, em vez disso, não há nada semelhante. E isso surpreende.
A opinião é do biblista e monsenhor italiano Giovanni Giavini, ex-capelão de Sua Santidade, durante o pontificado de João Paulo II. O artigo foi publicado em Settimana News, 06-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Rezar em uma hora de angústia também acontece conosco, assim como ao autor do Salmo 22. Um salmo que os evangelistas colocam nos lábios do Crucificado.
Também porque o ouvimos e o cantamos na Quaresma, o Salmo 22 (ou 21) é um dos mais conhecidos, mencionado também nos Evangelhos da paixão de Jesus.
Como de costume, perguntamo-nos quem fala nesse Salmo, que releremos seguindo a última versão da Conferência Episcopal Italiana [aqui, em português, a versão da CNBB].
É evidente: quem fala é um judeu de antes de Cristo, terrivelmente angustiado, mas admiravelmente firme na fé do seu povo e sua, pessoal. Mais ou menos como um espelho para nós hoje, que corremos o risco de ser devorados por um vírus minúsculo?
A angústia abunda, descrita até com imagens poéticas e vivazes. O orante está cercado por inimigos zombadores, que, como feras ferozes, dilaceram-no e despojam-no de tudo:
“Zombam de mim todos os que me veem, torcem os lábios, sacodem a cabeça (...) Escancaram contra mim sua boca como um leão que dilacera e ruge (...) repartem entre si as minhas roupas sobre minha túnica tiram a sorte”, ou seja, interessam-lhes mais as minhas coisas do que eu.
Além disso, eles o desafiam sobre a fé: “Confiou no Senhor, que ele o salve; que o livre, se é seu amigo!”. O desafio à fé não existe também hoje? Não reaparece frequentemente também em nós e não só nos inimigos da fé?
Certamente, o salmista tinha e mantém a fé em Deus. Ainda no grito inicial, ela é vislumbrada, porque, mesmo nesse tipo de angústia, ele grita: “Meu Deus, meu Deus”, e depois retorna com outras frases: “Não fiques longe de mim (...) minha força, vem logo em meu socorro. Livra-me da espada, das unhas do cão salva a minha única vida”.
Tal fé se baseia, por um lado, na história do seu povo: “Tu, porém, és o santo e habitas entre os louvores de Israel. Em ti confiaram os nossos pais, confiaram e tu os libertaste; a ti gritaram e foram salvos, esperando em ti não ficaram desiludidos”: alusão a episódios como a libertação da ameaça de extermínio no Egito e outros semelhantes.
Por outro lado, a sua fé também se baseia na sua história pessoal: “Foste tu que me fizeste sair do seio materno, me fizeste descansar sobre o peito de minha mãe. Quando nasci me acolheste, desde o seio materno tu és o meu Deus”. Belíssimas imagens, tanto para conectar a ação do Criador com a da mãe e do pai, quanto – e mais ainda – para dizer que Deus mesmo agiu como meu pai desde o nascimento!
E agora? “Está seca minha garganta, como um caco, minha língua ficou colada ao paladar, na poeira da morte (TU, precisamente tu) me colocaste”! O desafogo é incrível e muito humano; mas Deus não rejeita a nossa sinceridade, mesmo que à beira da blasfêmia (como também está no livro de Jó).
Mas continua sendo sincera e granítica, pelo menos no salmista, a sua fé. Também em... “mim”? Eu sei alimentá-la com as recordações da história do povo de Deus e da minha pessoal...?
No entanto, é evidente quanta riqueza humana e espiritual emerge de salmos como esse. Realmente, existe uma inspiração por trás disso, no mínimo misteriosa: celeste e encarnada, pão para a vida e para a oração de todos.
Diz-se que os Salmos terminam em glória. É verdade para muitos deles, mas aqui encontramos algo extraordinário. Acima de tudo: em vários Salmos onde se fala de inimigos ferozes, acrescentam-se invectivas e maldições contra eles. Neste, em vez disso, não há nada semelhante. E isso surpreende.
Depois de uma rápida menção (v. 22) a uma resposta salvífica por parte daquele Deus paterno-materno-decepcionante (“Tu me respondeste”), encontramos apenas um grande hino de ação de graças e de louvor, que envolve tanto o orante quanto muitos outros: “Anunciarei o teu nome aos meus irmãos, vou te louvar no meio da assembleia. Louvai o Senhor, vós que o temeis, que toda a raça de Jacó lhe dê glória, que o tema toda a estirpe de Israel”, portanto, acima de tudo, o povo judeu, mas não só, porque pelo menos cristãos e muçulmanos também se referem aos patriarcas judeus e ao seu Deus, mesmo com nomes diferentes.
O motivo do louvor é que esse Deus “não desprezou nem desdenhou a aflição do pobre (apesar dos seus desafogos quase blasfemos)” nem o seu grito por socorro. E, com esse pobre, também outros “pobres comerão e ficarão fartos”, alusão ao costume de envolver parentes e pobres em um banquete ritual e sacrificial de ação de graças (em grego: eucaristia) no templo de Jerusalém ou em outros lugares; ou, melhor, “louvarão o Senhor os que o procuram”, gritando e talvez levantando um cálice: “Viva para sempre o coração deles”.
Ampliações adicionais no mesmo fim: “Recordarão e voltarão ao Senhor todos os confins da terra: diante dele se prostrarão todas as famílias dos povos. (...) Só diante dele se prostrarão os que dormem debaixo do chão (também os mortos, portanto?); Pois o reino pertence ao Senhor”, não é da morte, nem dos reis ou dos demônios deste mundo, por mais ferozes que sejam.
Obviamente, “quanto a mim – diz o salmista –, para ele viverei, a ele servirá a minha descendência (...) anunciarão a sua justiça; dirão ao povo que vai nascer: ‘Eis a obra do Senhor!’”. Vida, portanto, mesmo após a morte, vida pessoal daquele Servo e de muitos outros depois e com ele.
Aqui, uma observação: depois de uma das primeiras perseguições por parte dos seus compatriotas judeus, os primeiros cristãos de Jerusalém se expressaram com uma oração no mesmo espírito do Salmo 22 (Atos 4,23-30). Isso no rastro dos evangelistas.
A comparação com a história da paixão e da vida nova do Senhor Jesus é fácil, dadas as inúmeras semelhanças, não apenas aquelas explicitamente destacadas em Mateus e Marcos (“Meu Deus, meu Deus... por quê?”, de Jesus na cruz e em João sobre a divisão das vestes), mas também as outras que notamos.
Pode-se dizer que os evangelistas e as primeiras Igrejas cristãs viram no salmista judeu original uma imagem em antecipação daquele judeu de Nazaré, Senhor até da morte, como o seu Deus paterno-materno-decepcionante, mas confiável, apesar de tudo. Obviamente, neste ponto, é importante reler esse Salmo no contexto da Quaresma e da Páscoa, como pobres mortais e, além disso, pecadores.
Mas eu também posso me ver aí? Você também. E podemos rezar juntos, sobretudo junto com Jesus e a sua Igreja, esse admirável salmo antigo, mas sempre novo. Muito atual, mesmo em momentos como o da já famosa epidemia ou, melhor, pandemia: o Salmo 22 nos convida a vivê-la com um certo espírito (ou, melhor, Espírito) e também a nos preparar para o depois: para a alegre retomada junto com os outros, após os medos e as angústias.
Uma esperança e um sonho em particular: quando poderemos rezar assim também com todo o povo judeu...? Por enquanto, depois de um longo desinteresse e desprezo por Jesus da parte deles, registramos um notável interesse de vários judeus por esse seu Jesus. E, da parte cristã, um novo diálogo com eles. Que futuro sairá disso? Enquanto isso, também com o Salmo 22, rezemos por eles.
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Meu Deus, meu Deus... por quê? Artigo de Giovanni Giavini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU