14 Abril 2020
A atual crise está acelerando “uma batalha entre duas visões do capitalismo: a ancorada nos direitos humanos e a que acredita que estes e a democracia não são prioritários”. Entre os valores liberais tradicionais e o modelo chinês. Porque as epidemias e as guerras são aceleradoras de mudanças históricas, afirma Emanuele Felice (Lanciano, Itália, 1977), economista e historiador, e responsável pela área de economia do Partido Democrático italiano, que publica em espanhol Historia económica de la felicidad (Crítica).
A entrevista é de Fèlix Badia, publicada por La Vanguardia, 13-04-2020. A tradução é do Cepat.
Em seu livro, relata a evolução de algo muito pouco tangível como a felicidade. Qual é a sua história recente?
Em suas origens, a humanidade reunia boas condições para ser feliz, mas, depois, pelo crescimento e concentração da população, ficamos muitos séculos em uma situação, poderíamos dizer, de opressão. Ao contrário, desde a Ilustração, nos últimos 200 anos, criamos as condições para ser felizes, um conceito com o qual se garante a liberdade, as relações sociais e um sentido à vida.
O que pesa mais neste processo, a industrialização ou a Ilustração?
Diria que esse processo provém da Ilustração e que a industrialização se desenvolve nesse marco. São evoluções paralelas, mas que não seguem uma correlação automática, porque a industrialização pode trazer também como resultado o stalinismo ou o nacional-socialismo. O desenvolvimento tem que ser acompanhado por uma evolução ética e política, por isso a Ilustração é importante. Se nos esquecemos disso, nos deparamos com o autoritarismo chinês.
Há quem diga que agora estamos encerrando a etapa que se iniciou com a Ilustração.
Certos valores estão sendo colocados em questão, mas de certa forma é uma batalha cujo resultado depende de como cada um jogue suas cartas. Por exemplo: Como sairemos desta crise? Com as nações mais isoladas ou com mais cooperação internacional? Não temos razão necessariamente para retroceder.
Certamente, o que se percebe hoje é que há uma expansão da influência da China, ou seja, de um capitalismo autoritário, porque os Estados Unidos não foram capazes de dar uma resposta global. A Europa, que está se organizando, mesmo que com um pouco de dificuldade, talvez possa usar esta crise para avançar em sua integração em um marco democrático. Esta situação acelera uma batalha entre as duas visões de capitalismo: a ancorada nos direitos humanos e a que acredita que estes e a democracia não são prioritários.
Mas a visão pouco ética não vem somente da China. Está aí o neoliberalismo.
O pensamento neoliberal é uma distorção do liberalismo porque prescinde de sua dimensão ética. O neoliberalismo defende que quando chega o desenvolvimento econômico, automaticamente, garantem os direitos civis, mas isso não é assim.
Em seu livro, você se move em uma dicotomia: temos as condições para ser felizes, mas também para não sermos. O conceito de felicidade pode ser bem ou mal utilizado...
A partir da Ilustração, foi tomando corpo a ideia de que é possível a felicidade na Terra. Mas essa ideia, em alguns casos, evoluiu para a busca de um mundo perfeito e isso deu lugar ao terror, na revolução francesa, em tempos de Robespierre, ao terror do comunismo e ao dos nazistas. A ideia de felicidade, portanto, pode ser utilizada para criar o terror ou então para fomentar os direitos humanos.
Hoje, essa tendência poderia se acentuar ainda mais com a tecnologia. Pense o que poderia fazer Goebbels com a tecnologia atual vinculada ao big data. O progresso tecnológico, se não está vinculado aos direitos humanos, pode ser utilizado para oprimir ainda mais.
Há preocupação pela economia. Em outras situações, que impacto e que transformações as epidemias causam?
As epidemias aceleram mudanças e dinâmicas que, caso contrário, seriam mais lentas. A peste do século XIV acelerou o fim do mundo feudal. Mas, por outro lado, no mundo romano, as epidemias do século II e III impulsionaram o caminho justamente para o feudalismo. As grandes epidemias são como experimentos da história.
Por exemplo, a Hungria contava com um processo de mudança antidemocrático que a epidemia pode ter acelerado. Mas, em países onde a democracia é mais avançada, talvez possamos esperar que se acelere uma mudança democrática, uma visão de que há valores públicos importantes como a saúde pública. É o caso da Itália, onde a saúde não tinha presença no debate público, apesar de ser crucial e agora, com a pandemia, sim, tem. Algo parecido pode acontecer nos Estados Unidos.
Você é otimista?
Vendo a história humana sou otimista, mas isso não significa que necessariamente estaremos melhor.
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“As grandes epidemias são como experimentos da história”. Entrevista com Emanuele Felice - Instituto Humanitas Unisinos - IHU