09 Março 2020
Estimativa prévia das organizadora é de que 10.000 foram marchar na avenida Paulista. Houve atos em 70 cidades, incluindo Recife, Belo Horizonte, Brasília e Belém do Pará. Rio de Janeiro deixou sua manifestação para esta segunda, 9.
A reportagem é de Carla Jiménez e Gil Alessi, publicada por El País, 08-03-2020.
Quando dois milhões de mulheres vão às ruas num país de 18 milhões de habitantes, como o Chile, contar aos milhares as brasileiras que encararam as ruas neste domingo para protestar gera uma sensação de insucesso. Com 210 milhões de pessoas, mais da metade mulheres, e o quinto do mundo em feminicídios, era de se esperar que o Brasil liderasse a pauta no continente, e não ficasse a reboque. Mas, num país sem tradição em protestos populares — como Chile e Argentina — os atos em 70 cidades marcados para este domingo tiveram o papel de mostrar que o feminismo está vivo no Brasil, em resistência ao machismo que renasceu com força com as igrejas evangélicas, e agora, com o presidente Jair Bolsonaro.
O presidente foi um dos principais alvos dos protestos nas ruas, num momento em que o assassinato de mulheres cresce no país e não há uma política específica para tratar do assunto, enquanto Bolsonaro tem caprichado em declarações machistas e na perseguição a mulheres jornalistas, sob a concordância da ministra e pastora Damares Alves, que, em tese, representa a todas as mulheres à frente da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Em São Paulo, a chuva parece ter desestimulado muitas mulheres a marchar na avenida Paulista, assim como a pouca divulgação do ato, que passou batido para muitas jovens que não viram nem no noticiário nem nas redes sociais o anúncio das marchas. A prévia inicial das organizadoras é que 10.000 mulheres participaram da marcha, contra 60.000 do ano passado. As mais leais à pauta, no entanto, estavam lá, como a professora Natália, que vestia a camiseta “Lute como Marielle Franco”, em memória a vereadora negra, lésbica, assassinada no dia 14 de março de 2016. “Eu não deixaria de vir por causa da chuva”, dizia ela, sob um casaco amarelo. No trajeto, bateria de mulheres, representantes da capoeira, de movimentos de mulheres negras, e de sindicato de trabalhadores, e mulheres com uma estética mais parecida com a de outros países que já consolidaram seus movimentos de rua feministas. Lenços, coreografias, olhos vendados.
Foram quatro horas de marcha da Paulista, passando pela avenida Augusta até chegar à região central, na praça Roosevelt. Contra a violência e assassinato de mulheres, contra o estupro de crianças, pela visibilidade das mulheres negras, que representam 23,4% da população, e são muito mais afetadas pelo machismo no Brasil. São as que mais morrem em feminicídios, e as que menos ganham profissionalmente. Bandeiras de partidos, e algumas homenagens a Lula também podiam ser vistas na marcha. Uma fila de cadeirantes chamou a atenção. Entre elas, Luciana Trindade, que marcou presença ali para pedir visibilidade. “A maioria das vezes nunca é lembrada [a mulher cadeirante]. Estamos aqui para ocupar espaço, mostrar que existimos e não somos invisíveis”, disse ela. A marcha seguiu também com homens simpáticos à pauta das mulheres, como Gabriel, de 16 anos, que segurava um cartaz escrito “Fora Bolsonaro”. “Somos uma sociedade totalmente machista. Esta é uma luta central do nosso tempo”, afirmou.
Duas artistas chilenas com os corpos pintados com a bandeira do seu país chamavam a atenção. Violeta Molinet e Natalia Ahumada decidiram viajar ao Brasil neste #8M para denunciar a violência contra as mulheres no seu país, governado pelo presidente Sebastián Piñera. Estranhavam o fato de homens participarem da marcha, diferente do seu país, onde só mulheres se juntam à marcha. “A gente nunca sabe se está caminhando ao lado de alguém que violenta mulheres, ou abusa de uma amiga sua”, refletia Violeta.
Ao longo da marcha, dezenas de cartazes faziam referência ao assassinato de homens e mulheres negras pela polícia: “vidas negras importam”, dizia um deles, emulando o lema Black Lives Matter que se popularizou nos Estados Unidos e agora virou símbolo da luta antirracista. A discussão sobre a situação específica da mulher negra na luta feminista também se fez presente no ato. “É preciso levar em conta que, muitas vezes quando a mulher branca luta e consegue ir trabalhar fora de casa, se libertando do trabalho doméstico, ela subjuga a negra, que passou a arcar com estes afazeres”, explica Ana Luiza Lagonegro, 37, professora, que veio da Freguesia do Ó, na zona norte da capital, para participar do ato. Ela afirma que atualmente “existe uma escuta maior” por parte das feministas brancas com relação à questão de raça neste debate, mas que “ainda há muito trabalho a ser feito”.
A questão do racismo no Brasil faz com que algumas mulheres negras cheguem a falar em dois feminismos distintos. “O feminismo da mulher negra é diferente do da mulher branca. É a negra quem cuida do filho da branca e deixa o seu próprio em casa”, diz Lúcia Castro, 46. Segundo ela, muitas vezes homens e mulheres brancos querem “tutelar a nossa luta, tutelar a voz negra”. Castro defende uma maior participação das negras em espaços de poder dentro de movimentos sociais e na sociedade em geral como uma forma de dar visibilidade às pautas e dificuldades específicas das descendentes de pessoas escravizadas.
Na frente do ato, um grupo de homens e mulheres indígenas caminhava com adereços e pinturas tradicionais. “Nosso papel é somar na luta feminista. A mulher indígena tem muito a ensinar sobre resistência, pois é isso que fazemos [há mais de 500 anos]. Somos, acima de tudo, resistentes”, afirma Roseli Koá, 49, filha de pai Pataxó. De acordo com ela, o momento é de união entre mulheres de diferentes raças e etnias: “hoje a luta se une”, diz, fazendo uma ressalva sobre a situação específica dos ataques do Governo Bolsonaro aos direitos dos povos tradicionais. “Estamos sendo expulsos de nossas terras. O índio sem a terra não sobrevive”, diz, referindo-se ao fato do presidente ter feito do congelamento de novas demarcações de terra e do afrouxamento da proteção aos direitos dos indígenas algumas de suas bandeiras.
Já no final do ato, na praça Roosevelt, a pastora Eliad Dias dos Santos, 54, descansava na escadaria. Ela faz parte de um grupo de aproximadamente 30 pessoas ligadas a movimentos católicos e evangélicos progressistas –como Católicas pelo Direito de Decidir, que defende o aborto- que participou do ato. “É complicado ser evangélica e feminista. A instituição [religiosa] não gosta [do feminismo]... Mas minha fé me obriga, enquanto mulher negra, a lutar por uma vida mais digna para todas nós”, afirmou. Em seguida, Eliad fez questão de frisar: “Nós não representamos os evangélicos de arminha na mão [menção ao gesto de Bolsonaro], e sim o da paz e amor ao próximo”.
No Rio de Janeiro, protestos foram realizados em Copacabana, e a vereadora carioca Marielle Franco foi uma das grandes homenageadas, com diversos cartazes pedindo justiça e um desfecho para o caso. Nova manifestação será realizada nesta segunda, na Candelária. Um coletivo marcou presença ao encenar a música “El Violador eres tu”, lançada pelas chilenas, e que rodou o mundo.
Em Belo Horizonte, milhares de mulheres tomaram as ruas do centro durante a marcha. Já no Recife, centenas de pessoas realizaram um ato na região do Marco Zero com a presença de vários blocos de mulheres. Também em Salvador o Dia da Mulher reuniu manifestantes na Barra. Em Belém, a marcha ocorreu na praça Waldemar Henrique, e teve como lema “Com todos os seus direitos, por todos os seus direitos". Em Curitiba, o ato do Dia da Mulher se tornou uma homenagem a Martiza Guimarães de Souda, 41, e a filha Ana Carolina Souza, 16, ambas assassinadas no dia 4 de março. O principal suspeito do crime é o delegado Erick Busetti, marido de Martiza, que está preso.
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São Paulo leva milhares às ruas sob chuva, mas em número aquém ao do ano passado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU