29 Outubro 2019
“Esse discurso de emergência climática a partir do poder é altamente perigoso, pois justifica a geoengenharia, ou seja, a manipulação do planeta em nível global, por meios tecnológicos, para diminuir a temperatura e remover gases da atmosfera. São propostas tecnológicas que, se fossem realmente implantadas na escala necessária para influenciar o clima global, provocariam um aumento catastrófico das secas e inundações em todos os trópicos, principalmente na Ásia e na África”, avalia Silvia Ribeiro, jornalista e ativista uruguaia, diretora para a América Latina do Grupo ETC, com sede no México, em artigo publicado por Tercera Vía, 26-10-2019. A tradução é do Cepat.
Não há dúvida de que estamos em uma situação muito grave de crise climática. Desde que o planeta era inabitável para vida, há milhões de anos, nunca houve tanta concentração de CO2 na atmosfera. Isso se traduz em aquecimento global, que com apenas 1 grau a mais na temperatura média global, a partir de 1850, está produzindo violentos furacões e tempestades, inundações, secas, morte de recifes de corais, todos com sérias consequências para os povos, sobretudo para aqueles que dependem diretamente da saúde dos ecossistemas em seus meios de subsistência, como os povos indígenas e camponeses. Por sua vez, são os que alimentam a maioria da população mundial.
A crise, portanto, é real e é grave. No entanto, a manipulação discursiva dela por aqueles que são seus principais responsáveis - as maiores empresas de petróleo, carvão e gás, agronegócio, químicos, construção, transporte e a dezena de governos de países que carregam maior responsabilidade histórica pelo aquecimento - garante que será pior.
A injustiça climática é uma característica fundamental das mudanças climáticas. Dois terços do aquecimento global foram causados por apenas 90 grandes empresas de petróleo, gás, carvão e cimento. Por sua vez, apenas 10 países são responsáveis historicamente por mais de dois terços do aquecimento global, com os Estados Unidos liderando, de longe. Desde 2010, a China superou os Estados Unidos como principal emissor, mas na distribuição de emissões per capita, a China permanece mais de 10 vezes abaixo dos Estados Unidos. Atualmente, 10 países, incluindo China e Índia, além dos Estados Unidos, Rússia, União Europeia, Japão, Arábia Saudita e outros, são responsáveis por mais de 70% das emissões.
Tudo isso para avançar em um modelo de produção e consumo industrial baseado em combustíveis fósseis, que é a base do capitalismo.
Quase a totalidade do aquecimento global ocorreu após 1970, quando já se sabia que o processo estava acontecendo e os riscos que significava. Também se conheciam suas causas e, na última década, foram definidas com mais detalhes. De acordo com números de especialistas oficiais, como o IPCC em seu Quinto Relatório Global, o aquecimento se deve aos seguintes fatores: 25% à produção de energia a partir de fontes fósseis, 24% à agricultura e o desmatamento, 21% às emissões industriais, 14% a transportes.
Estudos de organizações como Grain, Grupo ETC e Coalizão Mundial pelas Florestas, entre outras, extrapolaram esses dados do IPCC, concluindo que o sistema de alimentos agroindustrial (incluindo a pecuária em grande escala), devido a seu alto uso de fertilizantes sintéticos e agrotóxicos – que são derivados do petróleo –, o fato de que a expansão agropecuária ser o principal fator de desmatamento em nível global, o massivo transporte de alimentos por longas distâncias e a geração de lixo orgânico que emite metano são responsáveis por 44 a 57% das emissões que causam o aquecimento.
Tanto as empresas como os governos conhecem as causas da crise, mas suas ações não visam modificar as causas do aquecimento global, mas, ao contrário, “administrar” a crise, buscando assim criar novas fontes de negócios, principalmente através dos mercados de carbono e novas tecnologias.
Recentemente, o Secretário-Geral das Nações Unidas e alguns governos, como o Reino Unido, diante de protestos em massa liderados por jovens, começaram a falar sobre a necessidade de declarar um estado de “emergência climática”.
Contudo, novamente, esses discursos em nada questionam as causas do aquecimento global, nem tentam mudá-las. Se fosse o caso, o lógico e coerente seria desmantelar rapidamente a exploração de petróleo, carvão e gás, mudar o sistema alimentar industrial baseado e dominado por transnacionais, interromper a produção de veículos, mudar radicalmente os sistemas de transporte para que sejam públicos e coletivos e outras medidas assim.
Por mais cínico que possa parecer, o que acontece é o contrário. Nomeiam-se as causas, para na sequência ignorá-las e ver como continuar com todo o sistema de emissões de CO2, mas “compensando” essas emissões com tecnologias de geoengenharia e mercados de carbono.
Esse discurso de emergência climática a partir do poder é altamente perigoso, pois justifica a geoengenharia, ou seja, a manipulação do planeta em nível global, por meios tecnológicos, para diminuir a temperatura e remover gases da atmosfera. São propostas tecnológicas que, se fossem realmente implantadas na escala necessária para influenciar o clima global, provocariam um aumento catastrófico das secas e inundações em todos os trópicos, principalmente na Ásia e na África.
Já foram propostas há uma década, mas eram chamadas de plano B. Agora, com o chamado a enfrentar a emergência climática, são indicadas como plano A. Se a situação é tão grave e urgente, só resta utilizar tecnologias extremas para controlá-la. E colocam isso como se fosse uma resposta às demandas de milhões de jovens e pessoas preocupadas com as mudanças climáticas em todo o mundo, quando, na realidade, é uma maneira renovada de hipotecar seu futuro.
Isso significa que realmente não existe “emergência”? Sim, existe, mas não apenas uma emergência climática, também de desigualdade, de migrantes, deslocadas e deslocados em todo o mundo, de feminicídios, de guerras contra camponesas, camponeses e povos indígenas, de guerras contra os pobres e muitas outras guerras, de extinção massiva de espécies, de poluição de oceanos e solos, de lixo, de saúde, de epidemias de câncer e crise imunológica e muitas outras. A seleção pelo poder de uma delas como central, às custas das outras, é nos obrigar a aceitar medidas extremas e de cima, como se estivessem nos salvando de alguma coisa.
São lutas coletivas de baixo, pela defesa da vida comunitária no campo e na cidade, pelas formas saudáveis de produção, para manter a diversidade cultural e natural e/ou para criar culturas novas e justas que restaurem a relação entre e dentro das comunidades humanas e com a natureza, aquelas que realmente respondem à crise, além de entranhar o tecido de resistência e questionamento real do sistema capitalista, ecocida e genocida.
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O perigoso discurso da emergência climática. Artigo de Silvia Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU