25 Agosto 2017
"A razão pela qual, historicamente, o ponto de vista cultural foi considerado absoluto e o diálogo difícil, encontra-se na suposição de que a linguagem era instintivamente pensada como reprodução da realidade ou, até mesmo, reflexo das ideias divinas, enquanto ensinadas por Deus. Porém, desde que a linguagem foi percebida e interpretada como invenção humana, identificaram-se seus limites e condicionamentos. E, sobretudo, já não foi mais possível partir da linguagem para descrever a realidade", escreve Carlo Molari, padre e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado por Rocca, 15-07-2017. A tradução é de Ramiro Mincato.
Em junho 2016, teve lugar em Paris um Congresso teológico organizado pela revista internacional Concilium, juntamente com o Instituto de Ciência e Teologia das Religiões (ICTR), com a Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas do Instituto Católico de Paris (Theologicum) e com a participação dos dominicanos no quadro das comemorações do oitavo centenário da sua fundação. Os dominicanos, de fato, foram aprovados pelo Papa Onorio III, em 22 de dezembro de 1216, com a Bula Religiosam vitam, como Cônegos Regulares, segundo a Regra de S. Agostinho para comunidades clericais, enquanto no ano seguinte, o próprio Papa, com a Bula de 21 de janeiro de 1217 Gratiarum omnium largitori reconheceu sua peculiaridade como mendicantes e Frades pregadores. Isso explica a presença de numerosos dominicanos, desde o atual Mestre Geral da Ordem, Bruno Cadoré, ao decano do Theologicum, Thierry Marie-Courau, e ao mexicano Carlos Mendoza Alvarez, estes últimos editores da primeira edição da revista Concilium, onde foram publicados artigos que colocam em foco o problema enfocado no Congresso: “Como praticar o diálogo entre culturas e religiões. Os dois dominicanos assinaram o editorial da revista (p. 11-19). Também os Atos do Congresso de Paris serão publicados pela editora Cerf (Paris), de ascendência dominicana.
O Congresso e o caderno da Concilium partem da hipótese “de que o reconhecimento da singularidade cultural e religiosa de determinado mundo, com seus aspectos irredutíveis a outros contextos, não é um problema, ou um obstáculo, para um genuíno diálogo. Ao contrário, tomar consciência da singularidade dos outros é uma das atitudes decisivas para se poder avançar em um conhecimento mais adequado de si, e para construir um projeto comum de sociedade" (ibid. Editorial, p. 12).
Na prática do diálogo, e da reflexão que a acompanhou nas últimas décadas, propunha-se, como ponto de partida, os elementos comuns entre os dialogantes. Por isso, essa hipótese, proposta e desenvolvida, é considerada "como uma verdadeira mudança de paradigmas" (ibid. Editorial, p. 13).
A razão pela qual, historicamente, o ponto de vista cultural foi considerado absoluto e o diálogo difícil, encontra-se na suposição de que a linguagem era instintivamente pensada como reprodução da realidade ou, até mesmo, reflexo das ideias divinas, enquanto ensinadas por Deus. Porém, desde que a linguagem foi percebida e interpretada como invenção humana, identificaram-se seus limites e condicionamentos. E, sobretudo, já não foi mais possível partir da linguagem para descrever a realidade. Era necessário procurar um dado precedente, uma experiência vital anterior, e resignar-se ao diálogo para uma busca comum. Nesta perspectiva, a verdade é uma meta a ser alcançada juntos, partindo das características próprias de cada uma das diferentes culturas.
Essa nova aquisição permitiu uma convergência de reflexões; em particular, houve um acordo para o uso do termo racionalidade, como foi proposto no elenco dos temas do Congresso de Paris. Ele indica "uma visão, uma abordagem, uma percepção racional singular da realidade", e é “compreendido como um conjunto de gramáticas tecidas entre si, de estruturas mentais adquiridas, em vista de dar conta do que se experimenta e se chega a conhecer" (Ibid., p. 12).
São quatro as etapas do caminho realizado durante o Congresso e refletidos nos artigos do número da Concilium: pensar as diferentes racionalidades culturais e religiosas (para precisar os conceitos de referência); em contato com a realidade no campo (problematização das hipóteses no exame de fatos concretos); sobre a verdade e o universal (as oportunidades conceituais oferecidas pelo novo paradigma); e finalmente, as pistas (indicadas para um concreto e fecundo trabalho teológico). (Cfr. Ibid., p. 13).
Entre vários artigos, limito-me a apresentar o relatório de Felix Wilfred, atual diretor da Concilium, que propõe um olhar asiático sobre o problema, mas com olhos treinados ao olhar universal, já desde seus estudos teológicos iniciados em Roma (Universidade Urbaniana), e continuados com múltiplas experiências de ensino universitário em várias partes do mundo. Em sua relação, uma seção geral retoma o tema do Congresso com breve aplicação ao mundo indiano: Fé Cristã e racionalidade sociocultural. Reflexões a partir da Ásia (p. 119-130).
O exemplo de que parte é indicativo: no mosteiro adjacente à Catedral de Bressanone, há uma pintura de "um grande e poderoso cavalo, com duas presas de elefante, tronco, e duas grandes orelhas". O artista, que nunca tinha visto um elefante, mas que dele tinha ouvido falar, o imaginara, de acordo com suas categorias, em que o cavalo representa o maior animal já visto. É uma maneira concreta de introduzir o assunto. A primeira observação diz respeito aos limites de uma teologia que pressupõe usar categorias universais, sem consciência da diversidade da racionalidade humana. Por isso, "a teologia precisa aproximar-se da razão com novos métodos, profundamente consciente de suas graves limitações, e, ao mesmo tempo, também, das formas plurais de racionalidade resultantes da história, cultura, tradição, filosofia, visões de mundo e assim por diante" (ibid., p. 120). Quando não tem consciência da diversidade da racionalidade humana "a teologia torna-se inautêntica, e perde sua aderência à realidade" (ibid., p. 121). Ele cita o exemplo de Bento XVI, na polêmica palestra em Regensburg, em 2006, quando identificou a razão humana à racionalidade greco-romana e disse: "Mas, decisões de fundo, como as que se referem precisamente à relação da fé com a busca da razão humana, fazem parte da própria fé, constituem o seu crescimento, de acordo com sua natureza" (L’Osservatore Romano, 14 de setembro de 2006, cit., ibid., p. 121).
A segunda constatação refere-se à raiz do pluralismo da racionalidade, ou seja, ao condicionamento derivado da linguagem. "Exatamente porque a língua chinesa, a árabe e a francesa operam com diferentes modos linguísticos, nós realizamos raciocínios diferentes e abordagens diversas da realidade, temos muitas maneiras de classificar e interpretar o mundo e estruturar a sociedade. Em resumo, os processos cognitivos e as construções do pensamento seguem modelos linguísticos" (ibid., p. 122s).
Por isso, justamente, Wilfred avança a suspeita de que a teologia não se beneficiou plenamente dos resultados da linguística estrutural, seja a medieval para a Índia (cita Anandavardhana 820-890), seja a moderna para o Ocidente (cita o Curso póstumo de Ferdinand de Saussure, 1857-1913). E insiste, em particular, na dimensão classista da racionalidade humana: "as operações teoréticas, tais como análise, síntese, classificação, inferência, dialética, etc., não são concepções imaculadas; também refletem o fator classista, as inclinações culturais, as condições e disposições sociais. A maneira pela qual os pobres percebem, julgam, analisam e avaliam situações é diferente da forma como o fazem as classes dominantes, castas e as elites da sociedade" (ibid., p. 128s).
Por fim, ele cita como "lamentável" a advertência contra o uso de "métodos orientais" pela Congregação para a doutrina da fé (Carta sobre alguns aspectos a respeito da meditação cristã, de 15 de Outubro 1989), "porque associa a fé com um determinado tipo de razão e demonstra quase total ignorância sobre a natureza da práxis desta razão prática no contexto asiático" (ibid., p. 128). A este respeito, Wilfred está convencido de que a Congregação deve deixar a tarefa de monitorar a racionalidade sociocultural às igrejas locais "que têm condições de julgar questões de ortodoxia e heterodoxia no contexto" (ibid., p. 130). E termina rapidamente: "Isto significa que a igreja pode não precisar de uma instituição como a Congregação para a Doutrina da Fé. Esta Congregação deve passar rapidamente para a história. Não deveria já ter desaparecido há muito tempo?" (ibid., p. 130). Mas, se acreditamos no processo evolutivo e na ação criativa de Deus à medida que as criaturas se desenvolvem e se tornam complexas, porque não aceitar que, assim como as descobertas do passado mostraram os limites de muitas interpretações teológicas, e permitiram uma mudança verdadeira das estruturas mentais, o mesmo acontecerá, certamente, no futuro. E o caminho em direção à verdade começará de novo.
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Diálogo entre culturas e religiões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU