21 Fevereiro 2017
A notícia da próxima visita do Papa Francisco – em 26 de fevereiro de 2017 - à Igreja Anglicana All Saints, em Roma, a da realização da Oração Coral da Noite de acordo com o costume anglicano em São Pedro no próximo dia 13 de março (a data mais próxima do dia da São Gregório Magno), bem como outras iniciativas anunciadas na conclusão do quinquagésimo aniversário do diálogo entre a Igreja Católica e a Anglicana - restabelecido durante o encontro de 23 de março de 1966 por Paulo VI e Michael Ramsey - instiga-nos a relembrar que o "caminho" que Jorge Bergoglio convida a realizar "juntos" tem suas origens em fatos bem distantes. Mais especificamente, em um episódio que remonta a 1960 e que gostaríamos de recordar: a primeira visita do Arcebispo de Cantuária ao Papa desde o evento da separação ocorrido quatro séculos antes. Uma visita considerada como estritamente privada pelo cerimonial vaticano, claramente impensável só dois anos antes e que se revelou um verdadeiro ponto de virada na relação com a Igreja da Inglaterra. Mas, prossigamos aos poucos.
A reportagem é de Marco Roncalli, publicada por Vatican Insider, 18-02-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Até o final dos anos cinquenta, no dia 5 de novembro os anglicanos britânicos queimavam a efígie de Guy Fawkes, um dos católicos que tinham participado da "conspiração da pólvora" para explodir o Parlamento em resposta às perseguições de James I. O boneco lançado na fogueira costumava estar vestido sempre da mesma maneira: não para representar o conspirador, mas o Papa. Depois da eleição de João XXIII, no entanto – foi noticiado em primeira mão por Don Andrea Spada que - até mesmo "o mais ardente anglicano" não teve mais a coragem de "queimar" o boneco aos gritos habituais de "No popery!".
O Papa Roncalli "tornou-se e continua sendo querido, popular e respeitado em todo o Reino Unido", publicava em 2 de dezembro de 1961, o então sacerdote diretor do "Eco di Bergamo", em seu jornal. Como poderiam continuar com essa tradição se o Bispo de Roma, no ano anterior, em 2 de dezembro de 1960, havia recebido o seu primaz, Geoffrey Fisher, no Vaticano? Depois de séculos, o papa de Roma havia se encontrado cara a cara com o arcebispo de Cantuária, não como resultado de uma decisão de última hora, mas como desenlace de muitos pequenos passos facilitados pela criação do Secretariado pela Unidade dos Cristãos, e por um pedido do próprio Fisher levado ao conhecimento do bispo Johannes Willebrands no verão de 1960, durante uma visita em Lamberh Palace. Um pedido levado adiante apesar das resistências, quer do Núncio Apostólico O'Hara, como por parte de certos ambientes da cúria, mais tarde superadas com o expediente de uma "visita de cortesia". Foi um encontro, como era possível perceber apesar do sigilo mantido na sua preparação, que se temia poderia ser enfatizado demais pela imprensa, manipulado em suas expectativas, que pouco teria a ver com os encontros dos membros da Igreja da Inglaterra que orbitavam o chamado "anglo-papalismo", resquício de uma tradição de contatos que a partir dos Colóquios de Malines, no começo dos anos vinte, admiravam a "reunião corporativa" que, porém, geralmente se resumia na negociação de conversões individuais.
Existia, portanto, não uma cúpula religiosa, mas ainda assim uma reunião importante que inutilmente “rápidos e nervosos” telefonemas da Secretaria de Estado na Sala de Imprensa "pediam para redimensionar". Ou seja: "difícil explicar à imprensa que a entrevista", na verdade, poderia "ser apenas o início da jornada de esperança", anotava em seu diário o vaticanista Benny Lai. Mas foi justamente o que aconteceu quando, descendo de um carro no pátio de São Dâmaso (praticamente vazio em virtude dos "exercícios" no Vaticano), após o aperto de mão com um dignitário papal e subidos os poucos degraus do alpendre em direção ao elevador, o arcebispo de Cantuária com seu barrete roxo na cabeça, voltando de uma viagem do Oriente onde tinha visitado muitas igrejas ortodoxas, encontrou-se perante o Papa que havia anunciado o Concílio e para o qual acabaria depois convidando observadores cristãos não-católicos.
"Ao meio-dia, no entanto, recebi a visita do primaz anglicano de Cantuária, Dr. Fisher. Estava comigo para recebê-lo o cardeal Samorè, que foi meu bom intérprete. Nada de compromisso e de comprometedor. Visita de cortesia que se manteve nessas proporções. Creio que a boa impressão foi mútua, e isso foi o grande princípio de bem. Meu temperamento leva-me a considerar sempre o lado melhor, ao invés de ver tudo de maneira pessimista. No geral, este encontro foi feliz; não terá grandes resultados, mas aqui no umbral das grandes questões de ordem espiritual do mundo, coloca um princípio de confiança e de cortesia que é a introdução à graça", assim registrou João XXIII em seu diário. Tratava-se de quebrar o gelo presente desde tempos imemoriais. Tratava-se, antes mesmo, de enquadrar teologicamente o significado de um evento, tendo o cuidado de formular, como premissa necessária, aquela recusa ao pessimismo presente na base dos atos mais significativos do pontificado de João XXIII. Tratava-se de usar "bondade e prudência".
O Padre Tucci, diretor Jesuíta da revista Civiltà Cattolica, em seu diário de 9 de fevereiro de 1963 após uma audiência com o papa, anotou “[João XXIII ...] Fala-me de suas relações com os irmãos separados marcadas pela bondade combinada com a prudência e livre de ilusões: não tem sentido algum contrariá-los com afirmativas de ‘retorno’ ...”. E ainda: "Com Fisher que insistia em falar-lhe de ‘união’ e ‘unidade’ ele sinalizou para não prosseguir nessa linha e desviou o discurso para a imitação de Cristo e temas semelhantes, e o prelado anglicano...",
Não foi só isso. João XXIII foi capaz de viver aquele momento - ao qual L'Osservatore Romano reservou apenas uma exígua nota - em nome de Gregório Magno. Foi o próprio Roncalli que o lembrou em seu diário, novamente, no dia seguinte, 3 de dezembro de 1960, no qual lemos que a memória do "grande predecessor" que tinha enviado "para a Inglaterra o primeiro Arcebispo de Cantuária Santo Agostinho" tinha sido um "bom presságio" para o encontro, de caráter privado, como também o seria para o de 5 de maio de 1961 com Elizabeth II, ainda "governadora suprema da Igreja da Inglaterra". No mesmo mês, como atesta uma carta do Cardeal Bea a João XXIII – em 22 de maio de 1961 – o Dr. Fisher, confirmando um compromisso assumido com o próprio João XXIII por ocasião de sua visita ao Vaticano, recomendou aos membros da Igreja da Inglaterra orar para o sucesso do Concílio. "É certamente um fato memorável que, na Igreja Anglicana, o Primaz da Inglaterra recomende orações para um Concílio de Roma", comenta Bea em sua carta, disponível agora entre os documentos da Fundação Papa João XXIII, em Bérgamo.
Claro, se nos detivermos à visita de Fisher a Roma naquele começo de dezembro de 1960, precisaremos lembrar que a sua próxima reunião com o cardeal Agostino Bea e o Arcebispo Willebrands, na cúpula do recém-fundado Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos, foi autorizada apenas no último minuto no dia anterior: conscientes da importância do nova entidade, Fisher comunicou justamente aos dois eclesiásticos a dupla vontade de enviar a Roma um representante pessoal e estudar a proposta de enviar observadores ao Concílio. Quanto ao primeiro ponto, recebeu confirmações de disponibilidade e, no início de 1961, no entanto, chegou-se a uma decisão definitiva aprimorada com a nomeação de Bernard Pawley, representante pessoal do Arcebispo de Cantuária (que mais tarde chamaria a visita de Fisher de um “gesto inspirado”). Quanto ao segundo ponto, temos o trabalho cuidadoso e rico em referências de Mauro Velati, autor do recente Separati ma fratelli. Gli osservatori non cattolici al Vaticano II (Separados mas irmãos. Os observadores não-católicos no Vaticano II, em tradução livre), publicado pela Mulino (mesma editora que publicou, também de sua autoria, a ata da Secretaria pela Unidade dos Cristãos na preparação do Concílio Vaticano II, sob o título Dialogo e rinnovamento [ Diálogo e renovação], em 2011).
"Para Fisher a missão em Roma precisava manter certa discrição. Tratava-se de ter uma pessoa no local capaz de ‘aproveitar as oportunidades no momento em que surgiam’. Os indicados pelo lado católico foram identificados como Dell'Acqua e Cardinale, por seus laços estreitos com o papa e no Secretariado". Assim relata Velati, ressaltando também que Fisher não tinha ficado satisfeito com a nomeação dos membros ingleses dentro da nova organização chefiada pelo Cardeal Bea e tinha reclamado da exclusão do jesuíta Bernard Leeming, cujos contatos com o mundo anglicano eram mais próximos e equilibrados. A principal preocupação de Fisher em definir os contornos da missão permanecia, no entanto, "por uma representação adequada da ‘inclusiveness’ anglicana, ou seja, aquele equilíbrio de elementos e posições que caracterizavam a igreja". Como observa novamente Velati "a visita romana de Fisher com sua bagagem de dúvidas e controvérsia foi o episódio mais clamoroso da entrada em cena do Secretariado". Menos conhecida, mas não por isso menos importante, foi a rede de contatos e visitas, mantidas em segredo, que aconteceram durante aquele período com personalidades não-católicas e que suscitaram apreensão nos corredores vaticanos. Entre esses, muitos anglicanos interessados em abordar uma série de assuntos relativos às relações entre Roma e Londres, desde aqueles que diziam respeito a questões doutrinais ou teológicas, como diferenças dogmáticas ou o papel da mariologia, até as práticas, tais como casamentos mistos, o proselitismo católico em áreas de radicada presença anglicana ou mesmo a anunciada canonização de alguns mártires da reforma na Inglaterra, embora sem intenção de "propaganda anti-anglicana", e assim por diante.
Aos poucos, porém, passou-se desconfiança ao comprometimento no cenário das relações ecumênicas. Percebia-se também a marca do papa João XXIII, seus esforços, como resumiu Agostino Casaroli "para a avaliação da mentalidade e atitudes até mesmo dos mais afastados" para "perceber suas dificuldades objetivas", a sua capacidade "para saber criar um clima de confiança, apesar da distância ou até mesmo da oposição frontal entre os posicionamentos recíprocos" e inclusive "o cuidado para não ofender as pessoas, mesmo dizendo a verdade" (como relata em seu livro Il martirio della pazienza - O martírio de paciência -, publicado pela Einaudi dezessete anos atrás).
Relendo essas linhas, é possível ver que a partir dos anos sessenta até hoje realmente muita coisa mudou, e em questão de poucas décadas, com maior confiança mútua, o caminho ecumênico teve um pequeno avanço – apesar de lento, inclusive pela introdução de novos problemas antes inexistentes: graças ao Concílio Vaticano II, graças ao trabalho da Comissão Internacional anglo-católica romana, à serie de reuniões sucessivas entre os bispos de Roma e os arcebispos de Cantuária, entre Paulo VI e Ramsey, mas também entre Donald Coggan, Robert Runcie, e George Carey com João Paulo II, entre o papa polonês e Bento XVI com Rowan Williams, entre Francisco e Justin Welby entronizado dois dias após o início do pontificado bergogliano. Cabe também recordar que, em 14 de junho de 2013, Welby pela primeira vez em visita a Roma como arcebispo da Cantuária, junto com Vincent Gerard Nichols, arcebispo de Westminster, antes mesmo de encontrar-se com o cardeal Koch do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos e Francisco na Biblioteca do Papa, visitou o túmulo de São Pedro e a urna com os restos mortais de João XXIII, ali se recolhendo em oração pelo progresso do diálogo ecumênico.
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Depois de quatro séculos, o arcebispo anglicano teve um encontro com o Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU