A centralidade do medo na modernidade e a esperança em novos inícios. Entrevista especial com Paulo Eduardo Bodziak Junior

A categoria do medo é inseparável da política, mas deve ser tensionada com a esperança. Um dos aspectos do amor mundi arendtiano evoca o sentir-se responsável pelo mundo e aponta para um duplo desafio ético relativo à afetividade

Por: Márcia Junges | 24 Outubro 2025

“Penso que a modernidade é caracterizada pela centralidade do medo. Hobbes consolida o entendimento moderno desse afeto, mas a centralidade política do medo já remonta à antiguidade tardia romana. Não à toa, a célebre ideia de que o homem é o lobo do homem foi cristalizada na modernidade pelo filósofo inglês, mas sua origem remonta ao dramaturgo romano Plauto. Todavia, o medo sempre ocorre acompanhado da esperança, pois não há como separar as duas coisas. A ‘fé no mundo’, sempre renovada pela possibilidade de novos inícios, não é apenas uma convicção filosófica de Arendt, é uma experiência afetiva própria da modernidade”. A reflexão é do filósofo Paulo Eduardo Bodziak Junior na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em sua análise, o medo é um afeto político isolador, desolador. “Todavia, sua presença na esfera pública é inevitável, até mesmo porque não existem domínios políticos constituídos apenas de afetos alegres. Medo e esperança constituem a tensa relação que estabelecemos com o futuro, e qualquer experiência política voltada ao futuro, como é próprio da modernidade, será caracterizada por essa tensão”.

Manipulando com maestria as redes sociais, a extrema-direita enquanto fenômeno global catalisa com sucesso “a falência do capitalismo neoliberal” e se aproveita desse colapso, gerando medo nas sociedades de nosso tempo com ações como caçadas a imigrantes ou “pelo emprego de tropas em cidades governadas pela oposição de democrata nos EUA”, acrescenta Bodziak referindo-se ao exemplo norte-americano.

Ações como essas não suspendem necessariamente a ação, mas tem o dom de recrudescer a violência. Se tomarmos em consideração o prólogo de uma das célebres obras arendtianas, A condição humana, perceberemos que ela é “toda atravessada pela tensão entre o medo da aniquilação nuclear e a esperança mantida pelos novos inícios. Arendt não recusa nem negligencia tal ameaça. No jargão arendtiano, ela quer ‘compreender’ a ameaça da aniquilação, pois essa é a condição de reconciliação com este mundo à sombra do poder nuclear. Isso nos permite enraizar nossa existência nesse mundo e nos habilita a agir nele e sobre ele. Portanto, o medo constitui o fundo sobre o qual se ergue e tensiona a própria esperança dos novos inícios. A estrela brilha sobre o céu escuro”.

Paulo Eduardo Bodziak Junior (Foto: Arquivo pessoal)

Paulo Eduardo Bodziak Junior é bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com a dissertação Categorias de Validade Exemplar: sobre a distinção entre político e social em Hannah Arendt e a tese Em defesa do pensamento: modernidade e a crítica das ciências sociais em Hannah Arendt. É um dos organizadores da obra Experiências sociais negativas: um conceito de filosofia social. Salvador: EDUFBA, 2024. Leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e em 18-09-2025 ministrou na Universidade Estadual do Ceará (UECE) a conferência Sobre uma teoria afetiva da ação no V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea da ANPOF, do qual é membro.

Confira a entrevista.

IHU – Hannah Arendt define o medo como fundamentalmente antipolítico, pois ele nos priva do mundo comum e nos lança de volta à preocupação com a mera sobrevivência. Como uma “teoria afetiva da ação” a partir de Arendt nos permitiria diagnosticar as estratégias políticas contemporâneas que, ao instrumentalizar o medo (da violência, do outro, da instabilidade), buscam precisamente destruir a capacidade de ação e o espaço público?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – Minha leitura da teoria arendtiana da ação pressupõe que ela seja necessariamente afetiva. Com isso, refiro-me ao fato de que a pensadora explicita em diferentes textos a dimensão afetiva da existência humana entrelaçando-a à gênese do sentido do mundo. Ora, se a gênese do sentido, cuja atividade exemplar é a ação no sentido aristotélico de práxis, sempre se relaciona com nossas experiências afetivas, não é possível separar as duas coisas. Para finalizar essa premissa, basta observar que os conceitos de “princípio de ação”, presente em Arendt (1) desde Origens do Totalitarismo, e de “tonalidade afetiva”, incorporado de Heidegger (2) na segunda parte de A vida do espírito sobre a Vontade, atrelam as duas dimensões da existência humana – a visível e a invisível – a palavras como “medo”, “alegria”, “esperança” e “serenidade”. Portanto, e aqui gostaria de destacar algo importante na resposta à sua pergunta, entendo a ação em seu caráter mais amplo, público e revelador do sentido humano, não apenas no seu caráter específico, público da troca de promessas e formação de arranjos de poder. O embaçamento dessa distinção atrapalha intérpretes de Arendt que, ou entendem que ela condena a dimensão afetiva da política devido à sua célebre crítica da compaixão na Revolução Francesa, ou lhe concedem que embora haja uma experiência francesa problemática, há também uma afetividade positiva para a política na noção americana de felicidade pública. Na minha visão, embora tenha predileção pela segunda leitura, vejo ambas limitadas ao escopo fundador da ação que, como antecipei, é apenas um caráter dessa atividade.

Tenho desenvolvido essa perspectiva desde 2016, mas a pesquisa ganhou fôlego e estrutura a partir de 2021, quando se estabeleceu o Seminário Permanente de Filosofia, Crítica e Sociedade, reunindo pesquisadores da UFBA, UNESP e da UFRN na tarefa de fazer filosofia tecendo, a partir do esforço crítico de compreensão dos fenômenos sociais, a urdidura conceitual que lhe é própria. O grupo surge, emprestando a expressão criada por André Duarte, em meio à pandemia de Covid-19 e ao pandemônio do governo Bolsonaro, por isso mesmo muito mobilizado pelas perplexidades de esgotamento da versão neoliberal do capitalismo tardio e de proliferação da extrema-direita iliberal que cresceu rapidamente no seio de democracias tidas até então como consolidadas.

Extrema-direita antissistema

Fiz essa breve digressão de trajetória porque, se compreendi corretamente a pergunta, assumo a premissa de que movimentos como o bolsonarismo brasileiro, o La Libertad Avanza argentino, o MAGA americano, a AfD alemã, o VOX espanhol, o CHEGA português e outros que se espalham perigosamente pelo mundo desejam interditar a dimensão instituidora da política. Seu caráter antissistema não é uma etapa prévia para a substituição de regime, eles existem apenas como força negativa que se afirma contra instituições. Nesse sentido, discordo de Vladimir Saflatle, que enxerga na extrema-direita a verdadeira força revolucionária da atualidade. Eles não querem instituir nada, precisam apenas de sucessivos inimigos objetivos para manter seu movimento mobilizado. Para isso, exploram o caráter instituidor da ação apenas para organizar afetos como o medo e o ressentimento na forma do ódio. Isso é fundamental, o ódio requer organização, como demonstrou Caroline Emcke em seu livro recente Contra o ódio. Mas essa tese não é nova, Arendt assumiu essa mesma perspectiva ao mostrar como o antissemitismo foi usado politicamente no final do século XIX pelos franceses durante Caso Dreyfus.

No âmbito do “Seminário Permanente”, minha contribuição repousa nessa tentativa de ampliar o arcabouço conceitual sobre a organização dos afetos. Não vejo uma mera mobilização desses afetos como meios disponíveis a uma tática mobilizadora de agentes, mas a organização como expediente de gênese prática da afetividade. Há que pensar, portanto, uma “teoria afetiva da ação” que aborde esse problema em seu duplo aspecto, por um lado, elaborando recursos conceituais para a compreensão da gênese afetiva do sentido e, por outro, elucidando a organização afetiva como dimensão crucial das atividades humanas que se encontra em intensa disputa no mundo contemporâneo.

IHU – Arendt analisa como os regimes totalitários não se baseiam apenas no terror, mas também realizam uma perversa “alquimia” afetiva: transformam o medo isolante dos indivíduos em uma lealdade fanática ao movimento. Esta manipulação dos afetos seria mais crucial para entender a adesão totalitária do que qualquer ideologia racional?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – Em linhas gerais, sim. Mas precisamos pensar fora da dicotomia entre razão e emoção. Hannah Arendt afirma que a ideologia requer a adesão de muitos antes que o terror se estabeleça. Por terror, ela se refere ao medo indefinido e generalizado que o campo, instituição central do totalitarismo, é capaz de fabricar. Sabemos também que a adesão inicial ocorre pela mobilização dos medos dos indivíduos. Em sua obra de 1951, ela se refere especificamente ao medo de perder posição social, como ocorreu com os aristocratas franceses na quarta república, mas existem outros medos como o da burguesia alemã ameaçada de ver interrompido seu processo de acumulação e ascensão ou mesmo de alguns judeus que temiam perder privilégios adquiridos junto às cortes europeias. De todo modo, são medos difusos de classes e grupos específicos, completamente distintos do terror totalitário. O primeiro é apenas a matéria-prima para o segundo e a ideologia é o calor que forja essa transformação. Apenas a criação de uma realidade fictícia, com premissas e leis próprias, pode transformar o medo difuso – quando se teme a perda de algo – em ódio contra um inimigo objetivo – quando se teme e se hostiliza a fonte que se acredita ser causadora desse medo.

À ideologia cabe, portanto, o papel de operar a transformação da fobia isolante e difusa em ódio organizado. Note que não se trata da dicotomia entre racionalidade ideológica e irracionalidade afetiva. Se assumimos sucintamente que a racionalidade é a estrutura do sentido propriamente humano do mundo, a ideologia é lógica, não necessariamente “racional”. Pois, ela se descola da realidade em sua ficção e mantém sua coerência às custas da reconciliação com o mundo. Essa noção, que Hegel (3) entendia como a efetividade da razão, é assimilada por Arendt na palavra compreensão. Agora você pode perguntar qual a relação disso com a afetividade. Ora, toda.

A afetividade é uma dimensão da realidade mundana. Ela pode nos puxar para a realidade, em busca da reconciliação, e até nos expelir dela quando um inimigo objetivo é transformado em peça central da ficção. Ou seja, a eliminação da afetividade só ocorre às custas do mundo. Vemos isso na diferença brutal entre os membros das SA e das SS. Enquanto os primeiros eram torturadores sádicos, os membros da elite nazista operavam “administrativamente” os campos de concentração. Sabe-se que as SS eram a elite, a camada mais interna das diversas que formavam o regime nazista e aquela mais mergulhada na realidade ficcional do regime.

Por fim, considero decisivo o esforço de compreender nossos afetos como arranjos mundanos sujeitos à atividade humana, que, nestes termos, pode cultivar o ódio ou o amor ao mundo. Uma fenomenologia dessa relação entre afetos e atividade humana é o meu horizonte. Daí uma “teoria afetiva da ação”.

IHU – A ação, para Arendt, nasce da “natalidade”, da capacidade de iniciar algo novo. O medo crônico e a insegurança promovidos por certas políticas teriam o efeito de anestesiar esta capacidade, paralisando os cidadãos e tornando-os incapazes de resistir? Estaríamos diante de uma “destruição arendtiana” da faculdade de agir através da saturação afetiva negativa?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – Eu não vejo uma destruição da capacidade de agir, mas um rearranjo da constelação de atividades humanas, que sempre está em mudança. Arendt estabelece três atividades mundanas visíveis – ação, obra e trabalho – e três atividades mundanas invisíveis – pensamento, vontade e julgamento. Todas as seis estão entrelaçadas, pois não existem independentemente umas das outras. Como criaturas ativas, somos capazes de atuar sobre nossa própria condição humana, criando uma pólis para a práxis, escapando da Terra pelo artifício científico ou silenciando o pensamento pelo campo de concentração. São infinitas as possibilidades. Dito isso, entendo que sua pergunta se dirige ao que chamei anteriormente de caráter específico da ação, que nos permite fazer promessas e fundar instituições, e qual poderia ser seu estatuto na atual constelação de atividades humanas. Ela é interessante porque problematiza o equilíbrio mundano entre a face desestabilizadora da ação, de trazer à tona a novidade, e seu remédio estabilizador pela formação de pactos.

Creio que a extrema-direita, como fenômeno global, desenvolveu formas de catalisar a instabilidade produzida pela falência do capitalismo neoliberal e se aproveitar dela. Exploram como nenhuma outra força política a velocidade de circulação das mídias digitais. Sabemos que o pensamento requer tempo para efetivar a busca do sentido e com tamanha avalanche de fatos e afetos, essa busca dificilmente encontra desfecho. Nossa reação, formada ao longo da recente história das redes digitais, foi nos refugiar cada vez mais em sentidos prévios que permitem reduzir o esforço cotidiano de reconciliação com a realidade.

Medo e recrudescimento da violência

O efeito disso são as “bolhas de opinião”, nutridas por vieses de confirmação que as empresas de tecnologia aprenderam tão bem a manter e monetizar dada a possibilidade de dirigir conteúdos a nichos hiperespecializados do público. Vimos essa mesma lógica aplicada na política eleitoral desde que o escândalo da Cambridge Analytica veio à tona após a primeira eleição de Trump e a vitória do Brexit em 2016.

Assim, respondendo mais diretamente à última parte da pergunta, vemos um desequilíbrio de dupla face, por um lado, entre criar o novo e estabilizá-lo politicamente e, por outro, entre criar o novo e buscar seu sentido. Não são dilemas novos, mas foram hiperbolizados no atual estágio do desenvolvimento capitalista. Esse desequilíbrio é a maior ameaça à ação política, não porque novas estruturas de poder e pactos não possam continuar sendo firmados, mas porque eles ocorrerão na forma da divisão da sociedade e, potencialmente, escalarão a violência política entre campos adversários sem qualquer dimensão compartilhada.

O medo que movimentos de extrema-direita causam na sociedade, como aquele originado pela caçada a imigrantes ou pelo emprego de tropas em cidades governadas pela oposição de democrata nos EUA, não suspende necessariamente a ação, mas recrudesce a violência.

IHU – Em A Vida do Espírito, Arendt investiga o pensar, o querer e o julgar não como atividades frias, mas como experiências vibrantes do espírito. Como essa perspectiva redefine a própria afetividade, elevando-a de uma paixão passiva a uma atividade interna fundamental para preparar o terreno à ação no mundo?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – Essa pergunta vai ao encontro do aspecto mais difícil da minha pesquisa até aqui. Alinhar conceitualmente as noções de atividade, afetividade e espírito é meu objetivo final, mas essa constelação requer definições sobre o que entendemos por afetividade. Nesse ponto, chegamos ao problema que tem sustentado toda uma área multidisciplinar de pesquisa sobre as emoções que, pelo menos desde o século XX tem se organizado especialmente através da fenomenologia e da filosofia da mente. Outras áreas como a antropologia, sociologia e a teoria política mobilizam essa dimensão da existência humana, mas como definições assumidas de partida, sem o nível de elucidação próprio à filosofia. Não à toa, vemos diferentes tradições filosóficas interseccionando trabalhos com a psicologia, com a psicanálise e com as artes para viabilizar incursões sobre determinadas dimensões afetivas da vida humana. Sem mais digressões, quero apenas dizer que definições para emoções têm sido difíceis e não dispomos de respostas tradicionais únicas e muito menos definitivas. Basta olhar para a diversidade de palavras que, com etimologias e fundos filosóficos distintos, designam o que referimos como afetividade: humores, paixões, emoções, sentimentos, afetos, desejos, etc. Cada uma possui uma história e ontologia própria, sendo por vezes sendo complementares e em outros momentos sinônimos. Essa dimensão da vida humana foi associada ao irracional, ao fisiológico, a formas específicas de racionalidade e a relações sociais. Outro sintoma dessa diversidade é que se avolumam as Histórias das Emoções, obras habitualmente colossais que tentam sistematizar diferentes caminhos de formação dessa diversidade de conceitos e experiências.

Fenomenologia das atividades invisíveis

No atual estágio da minha pesquisa, vejo a necessidade de enfrentar o tema fora de uma eventual disputa de concepções, que me limitaria a escolher uma perspectiva, tal como já ocorre nas áreas práticas do pensamento. É o que estou tentando evitar. Noto que os diferentes conceitos de emoção não apenas refletem objetos distintos, mas também diferentes sujeitos e diferentes relações e circunstâncias – éticas e epistêmicas – de entendimento. Por isso, minha aposta até aqui para enfrentar essa complexidade está na compreensão da gênese dessas diferenças, algo como uma filosofia da história das emoções que dispense a pretensão hegeliana de alcançar uma totalidade.

É aqui também que meu caminho retorna à Hannah Arendt e à sua pergunta. Leio A vida do espírito como uma fenomenologia das atividades invisíveis, na qual Arendt expõe as atividades do pensamento e da vontade, as únicas efetivamente descritas, pela exposição de suas respectivas historicidades. A exposição do Pensar é uma resposta às perguntas “O que nos faz pensar?” e “Onde estamos quando pensamos?”, que revisitam as diferentes experiências dessa atividade na história. A vontade, por sua vez, é exposta desde sua descoberta por Paulo até sua conversão em leitmotif do pensamento moderno. Veja que há ali uma filosofia da história das atividades invisíveis, cuja exposição, como leio, comporta uma dimensão afetiva das experiências espirituais, algo que a própria Arendt sinaliza ao se apropriar do conceito heideggeriano de “tonalidade afetiva” para descrever a “serenidade” do pensamento e a “tensão” da vontade.

IHU – Arendt identifica a “solidão” (diferente da mera solidão) como o terreno fértil do totalitarismo: a ruptura de todos os elos comunitários que permitem o agir concertado. Esta “perda do mundo comum” não é, antes de tudo, uma catástrofe afetiva, um empobrecimento radical da experiência emocional de pertencimento que precede a ação política?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – Com toda certeza. A solidão (loneliness, Verlassenheit) detém um sentido fundamentalmente existencial e, nesse aspecto, é o exato oposto ao amor mundi. Ao observar ambas as pontas do espectro, fica mais claro entender que solidão e amor mundi a rigor não são emoções, mas as condições nas quais a afetividade é possível, ou não. Uma das descrições mais impactantes de Arendt sobre os regimes totalitários e os campos foi a redução de pessoas a feixes de reações idênticos. Ou seja, a destruição tecnicamente conduzida da espontaneidade do indivíduo, que equivale à destruição de uma porção significativa do próprio mundo comum, define-se pela anulação do registro afetivo da sua existência. A solidão, também traduzida para a língua portuguesa como desamparo, desolação ou abandono, guarda o signo do desenraizamento do mundo, da exclusão da trama comum de sentido que constitui nossa humanidade. Por outro lado, o amor mundi constitui um sentir-se responsável pelo mundo e assumir sua responsabilidade perante ele. Assumindo que a condição extrema da solidão constitui a perda da dimensão afetiva da existência, não podemos chegar a outra conclusão senão que o amor mundi constitui sua plena efetividade.

Amor mundi

Agora, a abertura da afetividade como dimensão e possibilidade do sentido humano não implica que as emoções nela experienciadas sejam alegres, prazerosas, positivas, por assim dizer. Com isso, refiro-me uma trivialidade do próprio senso comum, pois sentimentos como medo, raiva e ódio também requerem um mundo comum. Não há medo sem que haja algo a perder, não há raiva sem a negação do comum e não há ódio sem o outro. O amor mundi constitui afetividades que cultivam o mundo, mas que também podem destruí-lo. O oposto disso é a indiferença: o desamparado não teme, não odeia, não se enfurece. Essa é a preocupação de Arendt com movimentos violentos dos anos 60, em especial o black power, cuja revolta legítima contra instituições era sem dúvida uma expressão de seu amor mundi, mas que ao optarem pela violência, como no fatídico episódio de ocupação da Universidade Cornell com armas de fogo, arriscaram a si próprios, à universidade e o mundo comum. A criação do African Studies and Research Center (ASRC) como resultado direto da ocupação trouxe um avanço representativo, mas não alterou o racismo implícito nas instituições universitárias. Fez-se uma reforma, mas não a revolução necessária. Por fim, há um duplo desafio ético em relação à afetividade, a sua preservação como dimensão possível da existência e a concomitante responsabilidade sobre a trama de ações cultivada.

IHU – Se o medo é antipolítico, quais seriam os afetos ou disposições do espírito que fundam a ação? A “fé no mundo” de que fala Arendt, a confiança nos outros necessária para o agir concertado e até mesmo a capacidade de perdoar (que interrompe a cadeia de vingança), poderiam ser considerados os afetos constitutivos da esfera política?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – Se consideramos amplamente o conceito de ação como sinônimo da atividade humana, a afetividade sempre a prepara e acompanha. Porém, se falamos dos afetos vocacionados à ação concertada e à constituição do domínio político, Arendt apresenta diferentes respostas ao longo da sua obra. Ao longo do tempo, emergiram diferentes experiências políticas, com instituições próprias e princípios de ação variados. No ensaio A grande tradição, Arendt faz um panorama bastante amplo de diferentes formas de domínio político, que também estabelecem diferentes experiências de durabilidade, como a imortalização grega baseada na fama e na glória e a tradição romana baseada na virtude do amor à República. A modernidade constituiu sua própria experiência afetiva do comum, orientada na expectativa do futuro. Se você observar, a noção de “fé no mundo” sempre ocorre acompanhada da palavra esperança, o que vejo como um indício do papel que o futuro desempenha não apenas no pensamento arendtiano, mas na própria modernidade que ela pretende compreender.

Medo e modernidade

Quando Arendt analisa a filosofia moderna no volume sobre a Vontade de A vida do espírito, ela destaca a primazia do futuro como experiência espiritual que projeta o “ainda não”. Nas filosofias da história do XIX, na filosofia nietzscheana da vontade de poder e na filosofia heideggeriana do cuidado, temos diferentes soluções ontológicas para o “ainda não” que Heidegger denominou “abertura”, cuja interpretação de Dana Villa equivale ao initium arendtiano. Essa indeterminação que a modernidade preserva como condição de possibilidade do novo, é também condição do medo, a outra face da abertura. Não vejo como alegoria trivial que Hobbes (4), tido como fundador da ciência política moderna, tenha eternizado no De Cive a relação inseparável entre medo e natalidade ao afirmar: “Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”.

Enfim, penso que a modernidade é caracterizada pela centralidade do medo. Hobbes consolida o entendimento moderno desse afeto, mas a centralidade política do medo já remonta à antiguidade tardia romana. Não à toa, a célebre ideia de que o homem é o lobo do homem foi cristalizada na modernidade pelo filósofo inglês, mas sua origem remonta ao dramaturgo romano Plauto. Todavia, o medo sempre ocorre acompanhado da esperança, pois não há como separar as duas coisas. A “fé no mundo”, sempre renovada pela possibilidade de novos inícios, não é apenas uma convicção filosófica de Arendt, é uma experiência afetiva própria da modernidade.

IHU – Arendt descreve a ação autêntica, o “milagre” de iniciar algo novo, como acompanhada de uma espécie de alegria ou júbilo. Esta experiência afetiva positiva, que surge da liberdade e da pluralidade, seria o antídoto mais potente contra a política do medo? Por que essa dimensão de “alegria pública” é tão pouco explorada em nossa concepção de política?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – De certa forma, sim. Porém, não vejo a metáfora do antídoto como a mais adequada. Prefiro pensar que o medo tenha que ser tensionado. Permita-me deixar isso mais claro. O medo é um afeto antipolítico porque isola e desola. Todavia, sua presença na esfera pública é inevitável, até mesmo porque não existem domínios políticos constituídos apenas de afetos alegres. Medo e esperança constituem a tensa relação que estabelecemos com o futuro, e qualquer experiência política voltada ao futuro, como é próprio da modernidade, será caracterizada por essa tensão. Na realidade, se observarmos o prólogo de A condição humana, veremos que a obra é toda atravessada pela tensão entre o medo da aniquilação nuclear e a esperança mantida pelos novos inícios. Arendt não recusa nem negligencia tal ameaça. No jargão arendtiano, ela quer “compreender” a ameaça da aniquilação, pois essa é a condição de reconciliação com este mundo à sombra do poder nuclear. Isso nos permite enraizar nossa existência nesse mundo e nos habilita a agir nele e sobre ele. Portanto, o medo constitui o fundo sobre o qual se ergue e tensiona a própria esperança dos novos inícios. A estrela brilha sobre o céu escuro.

Contudo, essa é uma noção muito moderna da afetividade política. Observe que para os antigos o sentido de atualização da “amizade cívica” na comunidade é mais central do que a noção de novidade. Basta lembrar que Sócrates foi acusado de corromper a juventude e propagar novos deuses. Estamos diante uma polis hostil ao novo. Arendt estava ciente disso, não à toa, sai do mundo clássico e recorre à fundação do dogma cristão em Agostinho para conceber existencialmente a liberdade humana como initium. Jesus interrompeu a mitologia cristã e partiu o texto sagrado entre o Velho e o Novo Testamento. Nesse mesmo espírito, o perdão é compreendido por Arendt como a experiência cristã exemplar que define o novo como um acontecimento de interrupção do passado.

Medo e responsabilidade

Em Sobre a revolução, Arendt aborda a versão secularizada dessa afetividade voltada ao futuro como superação do passado, o “pathos do novo”. Vamos lembrar que os alemães chamam a modernidade de neuezeit, “novo tempo” em uma tradução literal, mas não seria exagero pensar que a modernidade seja o “tempo do novo”. Assim, nosso entendimento do que sejam afetos “positivos”, que corroboram a formação de comunidades políticas, está completamente preenchido pelo sentido revolucionário.

Como nos mostrou a experiência revolucionária francesa, a esperança pode rapidamente revelar terror. Com isso, não digo que toda ação política trará terror, seria um niilismo tosco que não tem qualquer relação com Arendt. No mesmo compasso afetivo de A condição humana, creio que o medo não deva ser eliminado, mas reconciliado e tensionado para que nossa responsabilidade diante do mundo seja plenamente assumida.

IHU – O julgar, para Arendt, envolve a capacidade de “visitar” mentalmente o ponto de vista dos outros, o que exige imaginação e uma certa afeição pelo mundo compartilhado. Dessa forma, poderíamos pensar que a crise atual de julgamento político não é apenas uma crise cognitiva, mas sobretudo uma crise afetiva, uma incapacidade de se afetar pela presença e pelas histórias dos outros?

Paulo Eduardo Bodziak Junior – Tenho visto tentativas recentes de compreensão da extrema-direita contemporânea pelo conceito de “dissonância cognitiva”. Em linhas gerais, trata-se de um comportamento marcado pela negação da realidade, pela de formação de bolhas, por viés de confirmação no trato da realidade, por racionalizações de contradições e pela intolerância à ambiguidade. Embora seja uma descrição muito pertinente do fenômeno da extrema-direita, creio que a ideia de uma dissonância cognitiva traga consigo a premissa equivocada de uma disfunção na cognição ou na relação dos atos cognitivos com a realidade. Essa abordagem provoca a conclusão falsa de que os indivíduos tiveram suas integridades psicológica e cognitiva comprometidas e, assim, demandariam algum “tratamento” ou “terapia”, mas isso os desabilita da posição de interlocutores políticos. Antes que eu prossiga, permita-me apenas dizer que os considerar interlocutores políticos não significa manter a crença ingênua em diálogos respeitosos, mas apenas os preservar agentes responsáveis por seus atos.

Em sentido diverso à inabilitação moral e cognitiva de agentes, Arendt entende a fragilização do julgamento como um fenômeno mundano. Basta lembrar que o julgamento é a atividade espiritual mais próxima e mais ligada ao mundo das aparências. Acho sempre complicado falar sobre o juízo porque nunca recebemos esse conceito formulado por Arendt para além das Lectures sobre Kant (5) e alguns fragmentos em textos como Crise na Cultura, mas, se assumimos a subsunção do geral desde o particular como essa experiência reflexionante e amparada no sentido comum de apreço ou desapreço pelo dado na sensibilidade, é evidente que o critério do juízo é o senso de comunidade. A perda desse senso de comunidade é um acontecimento político, pois, no limite, significa a perda da comunidade em si. A “visita” da qual nos fala Arendt não é uma inspeção de outras subjetividades, mas uma representação da pluralidade constituinte do comum. A primeira conclusão que destaco dessas considerações é que a inabilitação moral de agentes seria uma interdição do “pensamento representativo” por excluir o outro da mesma comunidade.

Afetividade compartilhada

Eis porque vejo um grave erro na “patologização” do outro como um expediente de crítico à extrema-direita. Feita essa observação, posso lembrá-la de que essa foi exatamente a postura de Arendt frente aos nazistas. Conceder-lhes o alívio da incapacidade moral significaria em última instância responsabilizar ninguém pelos campos. A perplexidade é imediata, afinal, como então aquilo teria sido possível? A saída de Arendt para essa armadilha é tão simples quanto decisiva, o critério não reside na integridade do indivíduo, mas na integridade do mundo.

O que especialistas contemporâneos tentam entender com a noção já mencionada de “dissonância cognitiva”, Arendt enfrentou com o conceito de ideologia, a criação de uma realidade ficcional amparada em premissas totais das quais nenhum aspecto da realidade pode escapar ileso à força irresistível da dedução lógica. Isto é, afirma-se na negação do mundo comum.

Nesse sentido, dialogando diretamente com a sua pergunta sobre se a crise do julgamento é uma crise afetiva, a resposta, como vejo, deve caminhar na mesma direção. Não podemos assumir a premissa de que uma crise afetiva seja anterior ao mundo, pois o mundo é, antes de mais nada, uma afetividade compartilhada.

Notas

(1) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”. Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975.

(2) Martin Heidegger (1889-1976): filósofo, escritor, professor e reitor universitário alemão. É amplamente reconhecido como um dos filósofos mais originais e importantes do século XX. Pertenceu à fenomenologia iniciada pelo seu professor Edmund Husserl, e ampliou seus horizontes a partir de pensamentos diversos, como a filosofia da vida de Wilhelm Dilthey e a interpretação da existência de Søren Kierkegaard, a qual Heidegger buscou superar com a ideia de uma nova ideia de ontologia. Os principais objetivos de Heidegger foram criticar a metafísica característica da filosofia ocidental e fornecer uma base intelectual para uma nova compreensão do mundo. Sobre seu pensamento confira a Revista IHU On-Line Edição 185, de 19-06-2006, O século de Heidegger, bem como a Edição 187, 03-07-2006, Ser e tempo. A desconstrução da metafísica.

(3) Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão, autor de A Fenomenologia do Espírito, tida como um marco na filosofia mundial, e que pode ser incluído naquilo que se chamou de Idealismo Alemão, movimento filosófico marcado por intensas discussões filosóficas entre pensadores de cultura alemã do final do século XVIII e início do XIX. Essas discussões tiveram por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. Hegel, ainda no seminário de Tübingen, escreveu, juntamente com dois renomados colegas, os filósofos Friedrich Schelling e Friedrich Hölderlin, o que chamaram de “O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão”. Posteriormente desenvolveu um sistema filosófico que denominou “Idealismo Absoluto”, uma filosofia capaz de compreender discursivamente o absoluto (de atingir um saber do absoluto, saber cuja possibilidade fora, de modo geral, negada pela crítica de Kant à metafísica dogmática). Sobre Hegel, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 217, de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 1807-2007; Edição 261, de 09-06-2008, intitulada Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel; Edição 430, de 21-10-2013, intitulada Hegel. A tradução da história pela razão; Edição 482, de 04-04-2016, intitulada Hegel. Lógica e Metafísica.

(4) Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês, mais conhecido por seu livro de 1651 intitulado Leviatã, no qual ele expõe uma formulação influente da teoria do contrato social. É considerado um dos fundadores da filosofia política moderna. Influenciado por ideias científicas contemporâneas, desejava que sua teoria política fosse um sistema quase geométrico, em que as conclusões decorressem inevitavelmente das premissas. A principal conclusão prática de sua teoria política é que um Estado ou sociedade não pode ser seguro a menos que esteja nas mãos de um soberano absoluto. Disso decorre a visão de que nenhum indivíduo pode ter direitos de propriedade contra o soberano, e que o soberano pode, portanto, tomar os bens de seus súditos sem seu consentimento.

(5) Immanuel Kant (1724-1804): filósofo alemão e um dos principais pensadores do Iluminismo. Seus abrangentes e sistemáticos trabalhos em epistemologia, metafísica, ética e estética tornaram-no uma das figuras mais influentes da filosofia ocidental moderna. Em sua doutrina do idealismo transcendental, Kant argumentou que o espaço e o tempo são meras “formas de intuição” que estruturam toda a experiência e que os objetos da experiência são meras “aparências”. A natureza das coisas como elas são em si mesmas é incognoscível para nós. Em uma tentativa de contrariar o ceticismo, escreveu a Crítica da Razão Pura (1781-787), sua obra mais conhecida. Kant traçou um paralelo com a revolução copernicana em sua proposta de pensar os objetos dos sentidos em conformidade com nossas formas espaciais e temporais de intuição e as categorias de nosso entendimento, de modo que tenhamos conhecimento a priori desses objetos. Sobre esse filósofo, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 93, de 22-03-2004, intitulada Kant: Razão, Liberdade e Ética, Edição 417, de 06-05-2012, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios.

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