O nexo entre neofascismo e neoliberalismo e a criação sistemática de crises. Entrevista especial com Adriano Correia Silva

Enquanto o neofascismo esfacela estruturas estatais, o neoliberalismo as combate. Comportamento fomentado pelas redes sociais interdita debate público, engaja indivíduos atomizados a consumirem discursos pré-fabricados e opera via desresponsabilização

Manifestação de apoiadores do então deputado Jair Bolsonaro, na Avenida Goethe, em Porto Alegre-RS, 2018 (Foto: Bernardo Speck | Editorial J | Flickr)

Por: Márcia Junges | 16 Abril 2025

“Na sociedade de massas, que ainda é a nossa, onde cada pessoa é levada a se ver apenas como uma peça dentro de uma engrenagem maior, é comum que haja uma separação profunda entre a personalidade individual e o papel que se exerce, como se o desempenho de funções como empregado ou servidor público estivesse isento dos juízos morais normalmente aplicáveis a outras áreas da vida. Além disso, muitas vezes a identidade pessoal se confunde totalmente com a função desempenhada, reduzindo o indivíduo à condição de um agente anônimo dentro de uma estrutura burocrática, esvaziando a riqueza e a complexidade de sua humanidade”, reflete Adriano Correia Silva em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Para o pesquisador, “a ausência de reflexão e o isolamento dos indivíduos em nossa sociedade, aliados à forma como as redes sociais conectam os indivíduos sem constituir um espaço público entre eles, constituem os elementos centrais da suscetibilidade dos indivíduos aos discursos conspiradores mobilizados pelas fábricas de mentiras concebidas por diversos grupos de interesse. Concordo com Arendt quando ela defende que o que explica a suscetibilidade das massas a essa fuga da realidade é a sua perda de um lugar no mundo e sua atomização, de sua perda de status social e das relações comunitárias nas quais o bom senso faz sentido”.

Para Correia, existe uma conexão entre “a voracidade neoliberal contra direitos civis, políticos, trabalhistas e a indução sistemática de crises que levam a condutas inflamadas e adesões apaixonadas a grupos. Há algo como o estímulo a um comportamento de gangue que visa minar todo o arcabouço institucional da política liberal burguesa, assim como os direitos assegurados nas lutas políticas travadas pelas classes populares ao longo dos dois últimos séculos”.

Outro aspecto discutido na entrevista é o conceito de banalidade do mal, criado pela filósofa Hannah Arendt no contexto do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. “Tratava-se de um mal superficial, desarraigado das motivações de seu perpetrador, que se apoiava na ausência de reflexão e na consequente incapacidade de julgar do agente”, argumenta. A atualidade dessa ideia é enorme, uma vez que seguimos imersos em sistemas burocráticos, cuja lógica opera através de um sistema de impessoalização, ou o “governo de ninguém”, como Arendt propunha, aquele que pode ser seguido por qualquer um de nós.

Adriano Correia Silva (Foto: Arquivo Pessoal)

Adriano Correia Silva possui graduação em Filosofia (bacharelado e licenciatura) pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e mestrado em Filosofia pela mesma instituição. É mestre em Educação e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Leciona desde 2006 na Universidade Federal de Goiás (UFG). Organizou os livros Transpondo o abismo: Hannah Arendt entre a filosofia e a política (Forense Universitária, 2002) e Hannah Arendt e a condição humana (Quarteto, 2006). Publicou Hannah Arendt (Jorge Zahar, 2007), O caso Eichmann: Hannah Arendt e as controvérsias jurídicas do julgamento (Edições 70, 2023) e A banalidade do mal (Edições 70, 2025).

Confira a entrevista.

IHU – Quais são os principais desafios de fazer Filosofia em tempos de negacionismos, fascismos e autoritarismos?

Adriano Correia Silva – É tão urgente quanto difícil pensar em circunstâncias nas quais predominam negacionismos, fascismos e autoritarismos. Urgente porque o que caracteriza esses ismos é, em grande medida, a ausência de pluralidade de perspectivas, o que torna a reflexão e a crítica ainda mais transformadoras do que sempre são. E é difícil porque em tais circunstâncias vemos solapadas as bases mínimas para o estabelecimento de um diálogo em que é possível tanto convergir quanto divergir. Presenciamos um empobrecimento profundo do diálogo e do interesse na compreensão quando os acordos fundamentais acerca do que é um argumento válido e acerca do oferecimento de razões que possam fundamentar as opiniões são desconsiderados. O dilema se instaura precisamente porque o decorrente empobrecimento da capacidade de figurar o ponto de vista das demais pessoas aprofunda ainda mais essa desconsideração.

Testemunhamos há alguns anos, principalmente em 2020, a um deliberado ataque ao ensino e à pesquisa em filosofia, algo que desencadeou numerosas tensões e a fragilização do financiamento dos estudos na área de filosofia, mas também provocou várias pesquisadoras e vários pesquisadores a enfrentar os desafios colocados pelo momento presente. Julgo que o desafio principal de se fazer filosofia nesses tempos um tanto sombrios é precisamente o fato de que não podemos prescindir dessa confiança mínima no discurso argumentativo, que é paradoxalmente aquilo de que precisamos para nos fazer entender. Quando fatos são confundidos com opiniões e quando as opiniões são tidas como válidas simplesmente por ser o ponto de vista de alguém que não precisa prestar contas dela, a filosofia se vê em grandes dificuldades, mas também com isto pode evidenciar sua urgência e nossa capacidade de oferecer elementos para a compreensão em situações tão adversas.

IHU – Em que medida o conceito arendtiano de banalidade do mal continua sendo uma chave interpretativa para compreender não só o passado, mas também os tempos atuais?

Adriano Correia SilvaArendt (1) concebeu a noção de banalidade do mal quando acompanhou o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann (2). Tratava-se de um mal superficial, desarraigado das motivações de seu perpetrador, que se apoiava na ausência de reflexão e na consequente incapacidade de julgar do agente. Eichmann evitava assumir responsabilidade individual ao alegar que apenas cumpria ordens dentro de um sistema que, de forma perversa, teria se aproveitado de sua dedicação zelosa à pátria. Segundo ele, caso não tivesse agido como agiu, outra pessoa teria ocupado seu lugar e feito o mesmo. A lógica dos sistemas burocráticos favorece esse tipo de justificativa, já que, como Arendt observa em diferentes momentos de sua obra, a burocracia representa “o governo de ninguém” – o que, justamente por essa razão, pode torná-la “a forma de governo mais desumana e cruel”.

As críticas à caracterização de Eichmann por Arendt foram instantâneas, abundantes e furiosas. Causou indignação o fato de ela retratar um criminoso diretamente implicado no genocídio de milhões de judeus como alguém comum: um homem ambicioso, de perfil medíocre, funcionário aplicado, considerado um cidadão exemplar e bom pai de família, que enxergou no regime nazista uma chance de ascensão profissional. Parecia inaceitável que alguém que colaborou ativamente com o extermínio, colocando suas habilidades logísticas e de negociação a serviço desse objetivo, pudesse não se identificar como antissemita – mesmo em textos escritos antes de ser julgado – sem que isso fosse interpretado como uma farsa ou encenação.

Para Arendt, apenas quem escolhe conscientemente, a cada decisão, o tipo de pessoa que deseja ser para si mesmo consegue entender até onde pode ir sem se contradizer e comprometer sua própria integridade, tornando a convivência consigo mesmo difícil ou até insuportável. Para isso, no entanto, é necessário que exista de fato uma relação interior consigo mesmo. Essas escolhas conscientes exigem um diálogo constante com o próprio pensamento diante das situações do cotidiano – sejam elas provocadas por nós, sejam elas presenciadas ou sofridas. “Fazer o mal significa danificar essa capacidade”: perder o hábito de conversar consigo mesmo, deixar de ser ao mesmo tempo juiz e testemunha de seus atos, esquecer o que se fez e não refletir se as ações são coerentes com a pessoa que se deseja ser. Os piores transgressores são aqueles que ignoram esses limites, que não pensam e, portanto, não criam profundidade nem raízes; são levados facilmente pelos acontecimentos, seja pelo espírito da época, seja pela História ou por meras tentações.

Banalidade do mal e abandono de si

O que define esse tipo de mal é que ele se torna tanto mais extenso quanto maior for o número de pessoas que atuam de maneira despersonalizada em sua execução. Nesse mal característico da contemporaneidade, as intenções pessoais quase nunca estão à altura da gravidade das ações que essas pessoas podem causar. Seu impacto não se deve essencialmente a figuras monstruosas, mas àqueles que, sem refletir, se adaptam facilmente a qualquer contexto – seja por conformismo, conveniência, crença cega, seja por simples apatia – limitando-se a cumprir suas funções burocráticas com eficiência, independentemente de sua natureza. Penso que este é um problema nosso contemporâneo e foi partindo desta constatação que me pus a escrever meu livro mais recente (A banalidade do mal, Ed. 70, 2025).

Na sociedade de massas, que ainda é a nossa, onde cada pessoa é levada a se ver apenas como uma peça dentro de uma engrenagem maior, é comum que haja uma separação profunda entre a personalidade individual e o papel que se exerce, como se o desempenho de funções como empregado ou servidor público estivesse isento dos juízos morais normalmente aplicáveis a outras áreas da vida. Além disso, muitas vezes a identidade pessoal se confunde totalmente com a função desempenhada, reduzindo o indivíduo à condição de um agente anônimo dentro de uma estrutura burocrática, esvaziando a riqueza e a complexidade de sua humanidade.

A ideia de banalidade do mal buscava compreender um tipo de mal que é desvinculado de raízes pessoais – ele não surge de paixões intensas ou de interesses egoístas de quem o comete –, mas sim da ausência de reflexão, sendo praticado por pessoas que não se realizam como indivíduos pensantes e que evitam exercer julgamento, recusando-se a escolher conscientemente o tipo de pessoa que desejam ser para si mesmas. Nesse abandono de si, nessa negligência interior e prontidão para obedecer sem questionar, revela-se o potencial de um mal sistemático, que vai além da capacidade de ação até mesmo dos piores indivíduos, tomando uma forma extrema, coletiva, impessoal e destrutiva. Essas ainda são questões nossas, penso eu.

IHU – Qual é a contribuição de Kant para se pensar a obediência e o uso público da razão a partir do caso Eichmann?

Adriano Correia SilvaKant (3) sustentava que a própria capacidade de pensar depende de sua manifestação pública; sem o “teste do exame livre e aberto”, não haveria pensamento verdadeiro nem formação legítima de opiniões. Esse tipo de exame, que exige que cada um responda por suas próprias ideias, tem raízes políticas desde a Grécia antiga e, para Arendt, carrega implicações políticas inescapáveis, por ser essencialmente contrário a qualquer forma de autoridade imposta. Kant acreditava que o esclarecimento (Aufklärung) só avançaria à medida que o pensamento – inclusive o mais filosófico – fosse compartilhado amplamente. No entanto, Arendt observou que a liberdade de expressão e de publicação que Kant exaltava – que ele chamava de “a mais importante liberdade política”, mas também “a mais inofensiva” – era, na verdade, a liberdade do erudito, não do cidadão comum. O público a quem esse erudito se dirigia também não era a coletividade política, mas uma audiência global de leitores instruídos, capazes de dialogar com o especialista em seu campo. Assim, o “uso público da razão” kantiano era voltado a um público restrito, muito diferente da noção de pensamento crítico aberto a qualquer pessoa, tal como concebido por Arendt, mais inspirada em Sócrates (4) do que no próprio Kant.

Kant definiu a menoridade como a situação em que alguém permanece sob a orientação de outra pessoa por falta de iniciativa e coragem para usar o próprio entendimento – muitas vezes motivada pela preguiça ou pelo conforto dessa dependência. Contra isso, ele propôs, curiosamente em forma de comando, o “Sapere aude” – ouse saber –, incentivando o uso autônomo da razão. Segundo Arendt, essa disposição crítica de pensar por conta própria está no cerne do que Kant entendia como esclarecimento.

Ausência de raciocínio como menoridade

Foucault (5), ao analisar Kant, destacou que esse estado de menoridade era sustentado por dois pares indevidos e ilegítimos. O primeiro é a associação entre obediência e ausência de raciocínio – uma ideia que Kant rejeitava ao afirmar que é possível pensar livremente sem deixar de obedecer. O segundo é a confusão entre os domínios do privado e do público, que deveriam ser claramente separados. A frase de Kant, “raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes; mas obedeça”, atribuída a Frederico da Prússia, evidencia essa separação e só podia ser sustentada, segundo Foucault, porque o rei dispunha de um exército disciplinado e poderoso para garantir a ordem.

Aqueles que exercem funções públicas, como os soldados, devem obedecer às ordens que recebem sem questionamento, pois seu papel exige submissão total. No entanto, enquanto especialistas, têm o direito – desde que isso não interfira no desempenho de seus deveres – de se dirigir por escrito a um público igualmente especializado para fazer observações técnicas e propor melhorias no serviço. O ponto fundamental é que obediência não deve ser confundida com falta de pensamento crítico; a ausência de raciocínio, e não a presença da obediência, é o que caracteriza a menoridade.

Maioridade e liberdade de pensamento

A maioridade, por outro lado, não está associada à recusa a obedecer – pois essa escolha não está posta –, mas sim à capacidade de pensar tecnicamente sobre o aprimoramento dos aspectos operacionais e administrativos de sua função, seja ela burocrática, militar, religiosa ou judicial. O uso público da razão, enquanto exercício de pensamento técnico, não compromete em nada o dever de obedecer; pelo contrário, como observa Foucault a partir de Kant, quanto mais liberdade se dá ao pensamento, mais se fortalece a disposição para obedecer, pois o raciocínio reforçaria a percepção da necessidade da obediência.

Assim, a maioridade não impede o cumprimento zeloso das ordens por parte de funcionários ou soldados, mas os torna aptos a colaborar intelectualmente com o aperfeiçoamento das funções que desempenham. Surge, então, a inquietante pergunta: como seria se Eichmann tivesse exercido o uso público da razão? Como funcionário responsável pela logística da deportação para campos de extermínio, ele não poderia jamais desobedecer a ordens, mas, como técnico ou especialista, poderia dirigir-se ao público letrado para propor melhorias em sua atividade, tal como um oficial que aponta falhas no serviço militar ao seu público sem comprometer sua obediência.

Penso que é essa centralidade da noção de obediência e a interdição a qualquer rebelião contra as ordens mais arbitrárias provindas do soberano que levaram Eichmann a julgar que podia justificar sua obediência cega como virtude recorrendo, para desconforto geral, a Kant. De todo modo, o uso público da razão não parece ser um bom antídoto contra a arbitrariedades dos governantes.

IHU – Qual a atualidade desse caso para refletirmos acerca da desresponsabilização do sujeito numa sociedade com crescente interferência do algoritmo, das fake news e da criação de inimigos públicos?

Adriano Correia Silva – Penso que a ausência de reflexão e o isolamento dos indivíduos em nossa sociedade, aliados à forma como as redes sociais conectam os indivíduos sem constituir um espaço público entre eles, constituem os elementos centrais da suscetibilidade dos indivíduos aos discursos conspiradores mobilizados pelas fábricas de mentiras concebidas por diversos grupos de interesse. Concordo com Arendt quando ela defende que o que explica a suscetibilidade das massas a essa fuga da realidade é a sua perda de um lugar no mundo e sua atomização, de sua perda de status social e das relações comunitárias nas quais o bom senso faz sentido. Esse desarraigamento e esse isolamento são pressupostos nas mentiras difundidas pela propaganda, que joga com o isolamento das massas para inseri-las no “realismo superior” que desvela pela propaganda todo aspecto da vida social e política que presumidamente vinha sendo ocultado.

Com estratégias de propaganda, a fabricação deliberada de mentiras e a eleição de inimigos comuns se promove a criação de uma efetiva realidade paralela cuja articulação é bastante volátil e visa produzir uma mistura de credulidade e cinismo que solapa a própria realidade comum. O processo de formação da opinião na vida política se dá no desenvolvimento de nossa capacidade de pela imaginação representar a posição de outras pessoas que assim possuem perspectivas diferentes. Esse caráter perspectivo da formação da opinião pressupõe que há algo em comum que é visto de vários modos, e que esses vários pontos de vista se corrigem reciprocamente e permitem o estabelecimento de acordos mais ou menos gerais sobre o que é a realidade do mundo, que é tanto mais rica quanto mais for compartilhada. A produção de indivíduos atomizados e engajados em redes que são ao mesmo tempo consumidores de discursos pré-fabricados envenena e arruína o debate público.

IHU – Como analisa o recrudescimento do neofascismo através do aprofundamento do neoliberalismo? Quais são os nexos possíveis?

Adriano Correia Silva – Penso que o neoliberalismo leva ao paroxismo aquilo que Michel Foucault indicou com argúcia: o indivíduo acumulador autointeressado que é o presumido subscritor dos contratos que fundam as comunidades política não deixa de ser o agente econômico egoísta calculador que se supõe que ele era em um imaginado estado de natureza. Esse indivíduo que acaba por se converter formalmente em cidadão não tem qualquer compromisso com a liberdade política no sentido de um engajamento em questões comuns. Para ele, a política permanece sendo um mal necessário e o Estado não deve ser muito mais que uma força policial bem organizada. O liberalismo, entretanto, estabeleceu-se tendo como antagonista a soberania moderna e sua pretensão de domínio potencialmente ilimitado, e precisamente por isto julgava que a política parlamentar, representativa, era indispensável a uma vigilância constante contra o Estado e sua expansão para preservar liberdades econômicas, civis e políticas.

O neoliberalismo tem como vício de origem a desconexão com qualquer forma de liberdade política e sua vinculação com regimes autoritários como o de Pinochet no Chile. Compreende-se que a política é um mal potencialmente desnecessário caso seja possível assegurar um ambiente mínimo de estabilidade para que o agente econômico possa estabelecer a competição que torna significativa sua existência. Julgo que há estreita conexão entre a voracidade neoliberal contra direitos civis, políticos, trabalhistas e a indução sistemática de crises que induzem condutas inflamadas e adesões apaixonadas a grupos. Há algo como o estímulo a um comportamento de gangue que visa minar todo o arcabouço institucional da política liberal burguesa, assim como os direitos assegurados nas lutas políticas travadas pelas classes populares ao longo dos dois últimos séculos. Nesse sentido, penso sim que há conexão entre neofascismo e neoliberalismo, na medida em que o primeiro esfacela estruturas do Estado que são combatidas pelo segundo. O comportamento induzido pelas redes sociais não parece deixar muita dúvida de que há um projeto deliberado de criação sistemática de cisão e de crises.

IHU – Com a chegada de Trump ao poder, consolida-se o império dos tecnocratas que compõem com ele o governo norte-americano. Nesse cenário, parece que as figuras do homo oeconomicus, de Foucault, e o animal laborans, de Arendt, são cada vez mais atuais e corroboram o esvaziamento da política. Qual a sua análise?

Adriano Correia Silva – Penso que há uma mistura enigmática de prevalência do interesse estritamente privado e a adesão apaixonada a comportamentos de grupos que levam os indivíduos a apoiarem iniciativas que sistematicamente prejudicam os interesses privados desses mesmos indivíduos. O sujeito de interesse que era o homo oeconomicus do liberalismo clássico, como caracterizado por Foucault, que acabou por se converter no empresário de si mesmo, está passando por uma nova transformação crítica em um cenário que muitos já chamam de pós-neoliberal, na falta de nome melhor. A conjugação entre a prioridade estrita do interesse individual e o autoabandono dos indivíduos em movimentos como o nacionalismo tribal parecem indicar que esse agente econômico se encontra cindido.

Penso que a noção de animal laborans, que traduz o modo de vida de indivíduos para quem o mero viver em consumo conspícuo é estruturante de sua subjetividade pode oferecer pistas para compreender o momento presente. O envenenamento do espaço político pelo cultivo sistemático de ódios públicos incessantes e pelo solapamento das bases do debate político parecem não mais serem efeitos de uma crise temporária, mas o eixo estruturante de um projeto de dissolução da vida política, mesmo da política liberal. A confluência entre o hiperbólico individualismo do agente econômico e sua adesão apaixonada a grupos que se unem antes pela eleição de inimigos comuns que pela partilha de interesses comuns apresenta-nos algo inteiramente novo e que parece estar na base disso que foi chamado de neofascismo.

Notas

(1) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como “filósofa” e se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”. Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível aqui.

(2) Adolf Eichmann (1906-1962): SS-Obersturmbannführer (tenente-coronel) da Alemanha Nazista, e um dos principais organizadores do Holocausto. Eichmann foi designado pelo SS-Obergruppenführer (general/tenente-general) Reinhard Heydrich para gerir a logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e campos de extermínio das zonas ocupadas pelos alemães no Leste Europeu durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1960, foi capturado na Argentina pela Mossad, o serviço secreto de Israel. Após um julgamento de grande publicidade em Israel, foi considerado culpado por crimes de guerra e enforcado em 1962. O julgamento foi seguido pelos meios de comunicação e serviu de inspiração para vários livros, incluindo o de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, no qual Arendt descreve Eichmann com o conceito de “banalidade do mal”. Sobre a banalidade do mal, confira a Edição 438, de 24-03-2014 da Revista IHU On-Line, intitulada Banalidade do mal, disponível aqui.

(3) Immanuel Kant (1724-1804): filósofo alemão e um dos principais pensadores do Iluminismo. Seus abrangentes e sistemáticos trabalhos em epistemologia, metafísica, ética e estética tornaram-no uma das figuras mais influentes da filosofia ocidental moderna. Em sua doutrina do idealismo transcendental, Kant argumentou que o espaço e o tempo são meras “formas de intuição” que estruturam toda a experiência e que os objetos da experiência são meras “aparências”. A natureza das coisas como elas são em si mesmas é incognoscível para nós. Em uma tentativa de contrariar o ceticismo, escreveu a Crítica da Razão Pura (1781/1787), sua obra mais conhecida. Kant traçou um paralelo com a revolução copernicana em sua proposta de pensar os objetos dos sentidos em conformidade com nossas formas espaciais e temporais de intuição e as categorias de nosso entendimento, de modo que tenhamos conhecimento a priori desses objetos. Sobre esse filósofo, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 93, de 22-03-2004, intitulada Kant: Razão, Liberdade e Ética, disponível aqui, Edição 417, de 06-05-2012, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, disponível aqui.

(4) Sócrates (470 a.C. - 399 a.C.): filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga. Creditado como um dos fundadores da filosofia ocidental, é até hoje uma figura enigmática, conhecida principalmente através dos relatos em obras de escritores que viveram mais tarde, especialmente dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como pelas peças teatrais de seu contemporâneo Aristófanes. Muitos defendem que os diálogos de Platão seriam o relato mais abrangente de Sócrates a ter perdurado da Antiguidade aos dias de hoje.

(5) Michel Foucault (1926-1984): filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984 (ano da sua morte). Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados ​​como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas. Sobre seu pensamento confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 466, de 01-06-2015: Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia), disponível aqui; Edição 335, de 28-06-2010, Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault, disponível aqui; Edição 203, de 06-11-2006, Michel Foucault, 80 anos, disponível aqui e Edição 119, de 18-10-2004, Michel Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois, disponível aqui.

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