Liderança indígena Mura denuncia políticas ambientais de fachada e empreendimentos que visam à liberação de mineração em terras indígenas
O povo indígena Mura habita as calhas dos rios Madeira e Purus, nos estados do Amazonas e Rondônia, em terras demarcadas e em processo de demarcação. No entanto, entre a população rondoniense, uma das mais diversificadas do país, a existência mura é negada sob a alegação de que o povo foi exterminado há muito tempo.
A falta de reconhecimento não é a única resistência que os Mura enfrentam na região Norte do país. Nos últimos anos, eles têm lutado contra o empreendimento da empresa canadense Potássio do Brasil, com a alegação de que a extração de potássio não é permitida em terras indígenas, conforme assegura a Constituição Federal. As investidas da empresa para garantir o empreendimento na mina localizada no município de Autazes, entretanto, têm causado uma divisão interna entre eles.
A denúncia é feita por Herton Filgueira, liderança indígena da Terra Apipica, localizada no município de Careiro da Várzea, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por WhatsApp. “Os que são favoráveis ao projeto atacam os que são contrários em grupos de WhatsApp, nas redes sociais e, às vezes, até fisicamente”, relata. Segundo ele, “como a empresa está desesperada para começar o empreendimento, ela começou a investir nas lideranças de Autazes. O que se sabe é que cada aldeia está recebendo mil reais por mês. O que dá para fazer com esse valor numa aldeia com 600 famílias? Nada. Quem fica com esse dinheiro? Quando vamos nas aldeias, as pessoas dizem que não são favoráveis ao projeto nem entendem o que está acontecendo. Isso tudo tem causado uma divisão interna entre nós”. Na avaliação dele, a proposta de exploração de potássio em Autazes tem como finalidade liberar a mineração em terras indígenas no país.
Nesta entrevista, Herton Filgueira resgata a história do povo Mura, comenta os processos de resistência que permitiram a sobrevivência das comunidades ao longo dos séculos e apela ao Judiciário para que a legislação constitucional seja assegurada. “A nossa última esperança está no Judiciário, porque os governos não estão preocupados com as políticas de proteção ambiental e com os direitos dos povos que vivem na floresta. (...) Meu apelo é que o Judiciário, de fato, considere a situação e faça o seu papel de guardião da Constituição Federal”.
Herton Filgueira (Foto: GCF)
Herton Filgueira é professor indígena e assessor técnico da Organização de Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV). Foi coordenador pedagógico e coordenador do Núcleo de Educação Escolar Indígena Mura (NEEIM), departamento da Secretaria Municipal de Educação do Município de Careiro da Várzea, cuja função é assessorar pedagogicamente as escolas indígenas localizadas no município
IHU – Pode nos contar brevemente a história do povo indígena Mura?
Herton Filgueira – Existem vários documentos e pesquisas antropológicas e arqueológicas sobre o povo Mura. Mas, tradicionalmente, o que sabemos, contado pelos nossos ancestrais, é que sempre habitamos a calha do rio Madeira, de Rondônia até o baixo Madeira, e uma parte do baixo Amazonas, na fronteira com o Pará.
Mapa da calha do rio Madeira (Foto: Reprodução Wikipedia)
Na época da Cabanagem [revolta que ocorreu entre 1835 e 1840 na Província do Grão-Pará, região do atual estado do Pará], no século XVII, houve uma perseguição em massa ao povo Mura porque eles eram vistos como um grande empecilho para o famoso progresso. Os colonos queriam invadir e colonizar a calha do Madeira, mas os parentes Mura não deixaram e resistiram durante cem anos.
No Pará, existia uma guerra contra os Munduruku, que também estavam resistindo aos colonizadores – hoje, eles vivem na terra indígena Coatá-Laranjal. Eles fugiram da guerra e, quando chegaram ao nosso território, encontraram nossos parentes ancestrais. Houve uma briga étnica entre os povos porque os Mura não aceitavam os Munduruku na região. Mas, no período da Cabanagem, eles precisaram unir forças.
Mais recentemente, em função da exploração da borracha, muitos nordestinos e pessoas de fora foram para a região. Nesse período, como estratégia de resistência, alguns Mura, já em contato com a sociedade atual, começaram a se identificar como caboclos em vez de se identificarem como Mura.
Além da guerra física e do genocídio contra nosso povo, houve também uma guerra linguística, que foi muito devastadora na vida dos Mura. Depois do processo de colonização, fomos proibidos falar a língua indígena mura. As comunidades passaram quase cem anos falando só a Língua Geral, o nheengatu, usado em todo o território brasileiro. Depois, foi proibido falar nheengatu e só era permitido falar português. Os antigos relatam que quando iam para a escola, se fossem pegos falando a Língua Geral, eram castigados, chicoteados, ficavam sem almoçar e merendar o dia todo. Em função da briga linguística, da guerra pelo território e pela sobrevivência física e cultural, infelizmente muitos aspectos culturais se perderam.
Em 1998, dizia-se que na região onde moramos, no baixo rio Madeira, tinha em torno de 800 famílias Mura. Esses dados foram apurados pelo Programa de Formação de Professores Indígenas, do Projeto Pira-Yawara, oferecido pela Secretaria de Educação (SEDUC).
Desde 2006, moro no município de Careiro da Várzea, mas nasci em Autazes e cresci na aldeia Guapenu. A história que ouvíamos sobre Autazes é que Ambrósio Aires – antigo nome da cidade – era uma vila que recebeu o nome do cidadão encarregado pela missão de ocupar e colonizar a região, anteriormente totalmente ocupada pelo povo Mura. Ambrósio Aires estava acompanhado de um exército, matou muitos dos nossos parentes e foi exterminando numa emboscada feita pelos Mura e Munduruku – mas, até hoje, em Autazes, ele é reconhecido como herói.
Cansados de serem perseguidos, os povos se aliaram para capturar Ambrósio Aires. Como os Munduruku sempre tiveram muita habilidade em navegar pelos rios, os Mura entraram numa canoa pequena e foram para o leito do rio. Todos os dias a caravana de Ambrósio Aires passava pelo leito do rio para exterminar algum Mura. Mas os Mura fizeram uma trincheira numa cabeceira mais estreita e, quando a canoa esbarrou na trincheira, Ambrósio Aires e os soldados ficaram presos. Contam que Ambrósio Aires foi o último a morrer, depois de matarem todos os soldados. Um padre escreveu essa história e relata que Ambrósio Aires foi morto com muita barbárie. Foi uma morte muito cruel. Mas, para os antepassados Mura, essa foi uma questão de honra e vingança por tudo que os colonizadores tinham causado para o povo. Essa é a história de Autazes, que muitas vezes é camuflada para negar o pertencimento Mura ao território.
IHU – Como vocês estão dispostos e organizados territorialmente hoje, entre os estados de Rondônia e Amazonas?
Herton Filgueira – Em Rondônia não se reconhece a existência do povo Mura. Negam a nossa existência e dizem que os Mura já foram exterminados há muito tempo. Mas existem famílias Mura lá, que vivem na resistência. Elas moram na calha do rio Madeira, na zona rural e urbana, inclusive, em Porto Velho, na capital.
No Amazonas, estamos divididos em 14 municípios. Em todas as cidades da calha do Rio Madeira têm presença Mura. O povo Mura também habita na calha do rio Purus, desde Beruri até o município de Lábrea. No Médio Solimões, Uarini, Tefé, Alvarães, temos parentes.
Mapa do rio Purus (Foto: Reprodução Research Gate)
IHU – Que parte desse território está demarcado e quais são os processos de demarcação em curso?
Herton Filgueira – Depois da Cabanagem, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que demarcou pequenas ilhas como sendo terras indígenas. A terra indígena Apipica, onde moro, é muito pequena. A aldeia Santo Antônio tem 600 metros de frente por 1.500 metros de fundo, para abrigar 113 famílias. Quer dizer, é um território minúsculo. Se todo mundo for plantar roça, não dá nem meio hectare para cada um e isso já está gerando conflitos porque não tem espaço para todos plantarem. Estamos sentindo o impacto da herança deixada pelo SPI.
Existem outras terras demarcadas, mas são ilhas. No município de Careiro da Várzea tem as terras indígenas Apipica, Gavião e Boa Vista; somente três terras indígenas demarcadas. As outras estão em processo de demarcação, como as terras indígenas Sissaíma, Ponciano, Bom Futuro e Tukumã. Duas já foram declaradas, mas é preciso concluir os processos, fazer as demarcações físicas e serem homologadas pelo presidente da República. A demarcação da terra indígena Bom Futuro seria ideal para o nosso povo porque a proposta é emendar as ilhas que foram criadas pelo SPI e criar um território único do nosso povo no município de Careiro da Várzea.
Em Autazes, várias terras indígenas foram reivindicadas e estão em processo de demarcação. São terras que estão ocupadas há quase 50 anos, com iniciativas de lutas, reivindicação e resistência e, em alguns momentos, até de massacre, mas que nunca saíram do papel; são apenas propostas.
IHU – Como e em que contexto surgiram as propostas de exploração de potássio no Amazonas? Como o projeto da Potássio do Brasil envolve e atinge as terras indígenas dos Mura?
Herton Filgueira – A exploração de potássio é consequência de uma pesquisa de petróleo da Petrobras na região na década de 1970. Foi nessa época que identificaram uma mina de potássio em Autazes, especificamente nas terras indígenas Soares e Urucurituba. Segundo relatos, na época, a própria Petrobras havia descartado a extração de potássio por causa do grande risco ambiental envolvido no processo. Aquela área corre risco de desmoronamento e é composta de terra firme e várzea, com predominância de várzea. Há uma diferença entre o solo da terra firme e o da várzea. O da várzea é muito mais frágil do que a terra firme; desmorona facilmente. Se molhar, vira um lamaçal e desmorona.
A Petrobras colocou essa área à disposição e a registrou na Agência Nacional de Petróleo (ANP). Somente em 2009 a empresa canadense Potássio do Brasil apareceu na região com a proposta de exploração. A empresa chegou fazendo lobby no município, dizendo que o empreendimento geraria desenvolvimento, emprego e renda. Quem não quer melhoria para o povo? Todos nós queremos. Mas ninguém se atentou para as questões ambientais e sociais nem se preocupou com a presença da empresa na região. Somente em 2015, com a empresa instalada no local e perfurando o solo, o povo Mura, de Autazes, resolveu se manifestar. A comunidade entrou em contato com os parentes de Careiro da Várzea e nos chamaram para tratar da situação porque a empresa estava perfurando o cemitério onde estão enterrados os nossos ancestrais, destruindo a mata onde os parentes caçam e plantam roça. Os parentes pediram nosso apoio e denunciamos a empresa ao Ministério Público Federal (MPF).
O MPF encaminhou a denúncia para a Justiça Federal, que suspendeu as atividades no território por seis meses. Nesse período, o povo Mura ficou de pensar em uma proposta alternativa do que fazer, ou seja, se queríamos fazer um processo de consulta ou decidir se aceitávamos ou não o empreendimento. Nos reunimos e decidimos não aceitar o empreendimento porque não sabíamos quais eram seus limites. Precisávamos de dados científicos, de esclarecimentos sobre a real situação. Foi quando surgiu a ideia de criarmos o nosso protocolo de consulta para podermos participar do processo de consulta nos moldes da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A OIT diz que os povos indígenas têm o direito de serem consultados de forma prévia, livre e informada. Mas não diz com detalhes como isso deve ser feito, onde tem que ser feito e quem tem que participar. Diante dessas preocupações, decidimos fazer um protocolo de consulta para depois passarmos por um processo de consulta.
Em fevereiro de 2018, reunimos 300 lideranças para tratar do assunto na aldeia Murutinga, em Autazes. Nos reunimos com a Justiça Federal e o MPF e solicitamos a suspensão da atuação da Potássio do Brasil nas terras enquanto estivéssemos construindo o protocolo de consulta. A Justiça, acatando nosso pedido, decidiu suspender a atuação da empresa. Somente em outubro de 2019 o protocolo de consulta ficou pronto, depois da realização de oficinas e assembleias nas diversas aldeias. Realizamos uma assembleia regional e debatemos o que foi discutido nas oficinas. Depois, realizamos uma assembleia geral para entrarmos em consenso.
Quando o protocolo ficou pronto, informamos à Justiça Federal que estávamos prontos para participar de um processo de consulta com a empresa. Fomos para um processo de pré-consulta, ou seja, nos reunimos para decidir se faríamos ou não uma consulta porque, durante a construção do protocolo de consulta, percebemos que a mineração em terra indígena é ilegal, segundo a Constituição Federal. Ficamos nos perguntando por que faríamos uma consulta com a empresa se o local do empreendimento, a aldeia Soares, é terra indígena.
A empresa alegava que o projeto não estava na terra indígena, mas próximo e, por isso, era preciso fazer a consulta. Discutimos esse tema na pré-consulta, em novembro de 2022, na aldeia de Urucurituba. Quando chegamos lá, a empresa apresentou o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), o projeto e os benefícios do empreendimento. Quando perguntávamos sobre a possibilidade de uma catástrofe, como aconteceu em Brumadinho, eles responderam que isso não aconteceria porque não teria barragem no empreendimento, mas não explicavam como o empreendimento não geraria risco para o meio ambiente e para as nossas vidas.
Além disso, detectamos que a empresa não tinha realizado o Estudo de Componente Indígena (ECI) [para identificar e analisar os impactos do empreendimento sobre as terras e povos locais]. Solicitamos que fizessem o ECI e depois nós nos reuniríamos para decidir se continuaríamos com a consulta ou não. No meio desse período, mostramos para a juíza que o projeto não estava próximo – como alegava a empresa –, mas dentro da terra indígena. A juíza, o MPF, a empresa e as organizações indígenas foram até o local para fazer uma inspeção. O próprio presidente da Potássio do Brasil estava junto e, perguntado pela juíza, onde seria a perfuração, ele indicou o local onde os Mura caçam e plantam roça. Ali a Justiça Federal percebeu que se tratava de um empreendimento dentro da terra indígena.
Hoje, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece que as terras indígenas não são somente aquelas que estão demarcadas e homologadas. O artigo 231 da Constituição Federal determina que terras indígenas são aquelas tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. A terra Soares nem se enquadra no caso do Marco Temporal, porque a proposta do Marco Temporal é que uma terra indígena é aquela em que o povo estava lá até 05-10-1988. Mas o povo Mura já está na terra Soares muito antes de 1988.
A partir disso, a juíza suspendeu todos os licenciamentos e atividades. Não há mais por que fazer consulta às comunidades porque o local destinado ao empreendimento é terra indígena, e em terra indígena não é permitido realizar projeto de mineração.
IHU – Quais foram os desdobramentos da disputa depois que o projeto foi suspenso?
Herton Filgueira – A Potássio do Brasil recorreu da decisão na segunda instância, mas, nessa etapa, negligenciaram muitas informações. Primeiro, disseram que houve a consulta prévia e que o povo Mura, por unanimidade, aceitou o projeto de mineração. A empresa alega que o aceite foi resultado do processo de consulta. Depois que a Justiça suspendeu o licenciamento, a empresa adotou a estratégia de corromper as lideranças, porque a única forma de fazer com que o projeto vá para frente é dizer que o próprio povo Mura aceita o empreendimento porque trará benefícios para a comunidade.
A coordenação atual do Conselho Indígena Mura (CIM) adotou o discurso do agronegócio. O CIM quer o empreendimento, diz que o nosso povo está sofrendo, que estamos morrendo de fome, não temos água potável, não temos alimentos, e que o projeto é uma alternativa para essa situação. Eu costumo dizer que o indígena Mura tradicional, que mora na terra indígena, passa fome se não plantar ou não criar galinhas, porque povo indígena nenhum vive na miséria. Existe diferença entre o que é miséria e o que é o meio cultural. Para nós, riqueza é ter nossas terras demarcadas, nossa alimentação e a nossa rede.
É claro que, com o contato atual com a sociedade, alguns acham que riqueza é ter uma casa boa, ter uma embarcação, um veículo. Não estou dizendo que não devemos ter essas coisas, mas, com esse discurso, a empresa cooptou algumas lideranças, principalmente as lideranças do CIM à época. Tanto é que a empresa sugeriu que o CIM tirasse as lideranças do Careiro da Várzea do processo porque nós éramos vistos como empecilho.
Em agosto de 2023, foi feita uma assembleia na aldeia Capivara, sobre a possibilidade de fazer uma alteração no protocolo de consulta, que não tinha nem cinco anos. Pegaram as assinaturas dessa reunião e alteraram o contexto da ata, dizendo que, naquela reunião, as lideranças decidiram tirar os membros do Careiro da Várzea do protocolo de consulta, o que nunca aconteceu. Protocolaram isso na segunda vara e não na primeira vara, onde a juíza conhece todo o processo.
A partir daí, começou o racha entre nós. Nós, do Careiro da Várzea, só entramos nessa briga a convite dos parentes de Autazes. Aceitamos o convite porque quando começamos a refletir sobre os impactos desse projeto, nos preocupamos com muitas coisas. A primeira delas é que o nosso território já está bem pequeno e estamos disputando espaço entre nós mesmos. Segundo, por causa dos impactos sociais. Temos medo do aumento de drogas e álcool na região, da superpopulação no nosso território, dos casos de prostituição. Além disso, o nosso município não tem capacidade para atender 13 mil pessoas que viriam de fora para trabalhar no empreendimento. Outro ponto preocupante é a questão ambiental. Soares está perto da nossa comunidade. Se acontecer algo lá, nós também seremos afetados. Nós não temos culpa se o Estado brasileiro dividiu nosso território em dois municípios.
Em 25 de setembro de 2023, as lideranças do CIM foram até o governador do estado do Amazonas, junto com a empresa Potássio do Brasil, para dizer que o povo Mura, por unanimidade, estava de acordo com o protocolo de consulta. Na hora, nós nos manifestamos contrários a isso por meio de cartas enviadas ao governo e publicadas nas redes sociais porque houve dois erros nessa declaração: não há unanimidade entre o povo Mura e não houve processo de consulta.
A aldeia Murutinga, que tem cerca de quatro mil habitantes, uma das maiores aldeias de Autazes, se manifestou. Outras aldeias também se manifestaram: Trincheira, que tem aproximadamente 200 famílias, com quase 1.200 parentes; Soares, que é a principal interessada, que tem 150 famílias; Ponta das Pedras, que fica dentro das terras indígenas Guapenu e Capivara. Isso gerou uma confusão na mídia e nós reafirmamos o que está acontecendo: a violação de direitos e a negação do processo de consulta.
IHU – Como está a situação?
Herton Filgueira – Embora o empreendimento esteja suspenso pela Justiça Federal, ainda assim o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) emitiu o licenciamento de instalação do projeto na região. O IPAMM é o órgão incompetente para essa situação porque se trata de terra indígena. Quem teria que dar a licença ambiental é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
Mas essa situação faz parte de uma combinação política porque o governador do estado, assim como os políticos do Amazonas, o prefeito à época e o atual prefeito de Autazes, têm interesse no projeto. Estamos brigando na Justiça para mostrar que não houve protocolo de consulta. Houve uma falsificação. Pegaram as assinaturas de uma reunião e anexaram em outra ata, dizendo que a comunidade era favorável ao empreendimento. Quando as pessoas viram suas assinaturas na ata, disseram que participaram de uma reunião sobre saúde, que não tinha nada a ver com potássio. Coisas desse tipo têm acontecido.
A Potássio do Brasil tinha prazo até o fim do ano passado para fazer um levantamento de arrecadação de recursos de 150 milhões de dólares para iniciar a exploração. Mas ela conseguiu captar somente 35 milhões. Como a empresa está desesperada para começar o empreendimento, ela começou a investir nas lideranças de Autazes. O que se sabe é que cada aldeia está recebendo mil reais por mês. O que dá para fazer com esse valor numa aldeia com 600 famílias? Nada. Quem fica com esse dinheiro?
Quando vamos nas aldeias, as pessoas dizem que não são favoráveis ao projeto nem entendem o que está acontecendo. Isso tudo tem causado uma divisão interna entre nós. Os que são favoráveis ao projeto atacam os que são contrários em grupos de WhatsApp, nas redes sociais e, às vezes, até fisicamente. A empresa tenta vender a imagem, no exterior, de que o povo aceitou o empreendimento, porque os financiadores precisam acreditar que está tudo certo, que a empresa está conversando com o povo indígena, e que ele, em sua maioria, está de acordo com o empreendimento, mostrando, assim que o povo da resistência é uma minoria.
Só poderíamos saber quem é minoria ou maioria se fizéssemos um processo de consulta adequado. Se acontecer algo com a aldeia Soares, como aconteceu em Maceió [desmoronamento de minas de sal-gema em Maceió, Alagoas], se tudo desmoronar, para onde esse povo vai? Onde eles vão morar? São essas perguntas que estamos fazendo para a empresa e ela não responde. Numa reunião, o presidente da Potássio do Brasil disse que comprariam uma outra área, de cinco hectares, numa outra região, e iriam tirar o povo da aldeia Soares para colocá-lo nessa outra terra. Só que o problema não é só comprar uma terra e mudar para outro local. Para nós, povo Mura, o território tem um significado maior: os nossos ancestrais estão enterrados ali, a nossa história está ali, o sangue derramado dos nossos antepassados que lutaram nas trincheiras, que foram massacrados pela Cabanagem, destruídos pela ganância dos colonizadores, está ali. A nossa história, a nossa relação e a nossa espiritualidade estão ali. Não dá simplesmente para mudar de uma casa para outra. Tem esse aspecto cultural envolvente.
Essa empresa não é brasileira; é canadense. Infelizmente, no nosso país, desde o início, pessoas de fora, sem consideração, sem respeito, sem sentimento e sem consentimento, entraram no nosso território para invadir, explorar e saquear. Não se importam com quem está no local, nem com sua história e sentimentos. Agem em nome do lucro e da ganância. Somente isso.
IHU – Em 21 de fevereiro, aconteceu a 1ª Assembleia da Organização Indígena da Resistência Mura de Autazes (OIRMA). Quem integra a organização e como foi o encontro? Quais são as pautas e propostas da OIRMA?
Herton Filgueira – O grupo da resistência é formado por cinco aldeias de Autazes que se manifestaram contrárias ao empreendimento. Estamos participando e dando apoio a eles. Nós, da Organização Indígena do Careiro da Várzea, formamos uma aliança com o grupo da resistência. Essa foi uma assembleia eletiva. O grupo, que antes era um coletivo, resolveu criar uma organização indígena como pessoa jurídica para poder ingressar no processo e continuar construindo incidência contra esse empreendimento.
1ª Organização Indígena da Resistência Mura de Autazes (OIRMA) (Foto: Gabriel Mura)
A proposta da OIRMA não é só para brigar contra a Potássio do Brasil. É justamente tentar fazer aquilo que era o papel do CIM, enquanto movimento indígena, ou seja, representar o povo Mura e lutar pelos direitos dos povos indígenas, principalmente pela demarcação das terras indígenas, e buscar apoio e desenvolvimento para as comunidades.
Infelizmente, depois que as lideranças do CIM foram corrompidas, a única coisa que o CIM faz é vender a propaganda do projeto de potássio em Autazes, negligenciando o Estatuto do Conselho Indígena Mura. Tanto é assim que o CIM entrou com um pedido de anulação da demarcação da terra indígena Soares. Ou seja, está dando tiro no próprio pé. O CIM, que começou este processo reivindicando a demarcação da terra indígena Soares, hoje entra com um pedido, dizendo que Soares não é terra indígena, solicitando a anulação da demarcação. Então, a OIRMA surge com a proposta de dar continuidade às lutas pelo movimento indígena e pelos direitos dos povos indígenas.
IHU – As lideranças indígenas da resistência estão sendo ameaçadas? Que tipos de ameaças vocês têm sofrido?
Herton Filgueira – A maioria dos professores de Careiro da Várzea e funcionários públicos da educação são funcionários efetivos. Mas, no município de Autazes, a maioria dos professores nem sequer fez processo seletivo e muitos são contratados via contratos diretos. Por serem contratados, eles podem ser demitidos e as ameaças vão nesse sentido. Se um professor for pego em manifestações contrárias ao empreendimento, é intimidado. Qual é o pai de família que quer abrir mão do emprego e de sustentar a família para continuar numa luta como essa?
Outro tipo de ameaça é a ameaça física e de morte, em grupos de WhatsApp, feita por pessoas pró-mineração. Quando chego na cidade de Autazes, muitas vezes, as pessoas apontam para mim, dizendo que, se sou contra o empreendimento, não deveria ir até a cidade. Eu me retiro porque sei que estão querendo briga. Infelizmente, minha casa está rodeada de câmeras; fui obrigado a fazer isso. Em 2024, as pessoas da comunidade viram dois homens procurando por mim e pessoas rondando minha casa à noite. Quando entro no ônibus, o pessoal diz que estou indo viajar para me manifestar contra a Potássio do Brasil. Outras pessoas que estão na linha de frente da resistência já foram bastante ameaçadas. Colegas de parentes me dizem para sair dessa luta porque ouviram pessoas dizendo que cedo ou tarde eu vou sumir e não vão nem achar meu corpo. Essas são situações que apavoram a minha família.
IHU – Como interpreta a proposta do ministro Gilmar Mendes, de substituir o Marco Temporal pela exploração mineral em Terras Indígenas, caso seja estratégico para o país? O que essa proposta significa para o seu povo?
Herton Filgueira – O Marco Temporal é uma proposta do agronegócio. Gilmar Mendes percebeu a falta de sucesso na comissão de conciliação e viu que não iria ter diálogo ali porque não tem como dialogar quando se é minoria e não se tem nem o direito de falar. Desde o começo da conciliação, sempre soubemos que essa era uma proposta para beneficiar o agronegócio e, principalmente, os latifundiários. Penso que quando o ministro percebeu a situação, começou a propor a liberação da mineração em terra indígena. Mas, como disse, a proposta é inconstitucional. A própria Constituição assegura o direito aos povos indígenas.
A questão sobre a lavra diz respeito a situações em que há interesse da União na extração. O ministro está querendo se beneficiar em cima dessa brecha, dizendo que o processo do projeto da Potássio do Brasil é de interesse da União. Essa justificativa vem desde o governo Bolsonaro. Quando começou a guerra na Ucrânia, ele disse que, em função disso, ficaria muito caro comprar potássio da Rússia e defendeu que deveríamos explorar a mina de potássio no estado do Amazonas. Mas a questão do potássio é uma proposta para liberar o que de fato eles querem, que é a mineração em terra indígena. Essa questão é muito preocupante não somente para o povo Mura. Se esse projeto for liberado, vai abrir precedentes para outros projetos em terras indígenas Brasil afora.
IHU – Qual sua expectativa em relação à COP30, que será realizada no Pará este ano? O evento está repercutindo entre as comunidades indígenas?
Herton Filgueira – A COP30 seria um momento oportuno para conversar com os países que investem recursos no Fundo Amazônia e nas mudanças climáticas. Há uma postura negacionista dos governos em relação à Amazônia. No estado do Amazonas, o governador Wilson Lima foi presidente do comitê regional da força tarefa dos governadores. Ele vendia a região amazônica como a região em que os estados estavam se esforçando para diminuir o desmatamento e para conter as mudanças climáticas. Mas a prática é totalmente diferente do discurso. Enquanto o governador se reunia com os governadores da Amazônia falando sobre isso, eu mesmo à época trabalhava no governo e percorria as regiões do sul do Amazonas e via os grandes desmatamentos e conflitos com os parentes Apurinã, na terra indígena Camicuã.
Falam em manter a floresta de pé, mas as políticas ambientais de fiscalização do desmatamento são políticas de fachada. Não é só o desmatamento que atinge os povos da floresta. Entre 2019 e 2024, o governo do estado do Amazonas trabalhou muito a questão dos acordos de pesca nos rios. Isso também trouxe e está trazendo muitos problemas não só para os povos indígenas, mas para muitas comunidades tradicionais. Vou citar o exemplo do rio Mutuca, no município de Carreio da Várzea. Fizeram um acordo de pesca que interfere diretamente nas terras indígenas, sem ter sido feita uma consulta aos povos. Hoje, os não indígenas estão reclamando que não podem mais pescar porque o tucunaré só pode ser destinado ao uso exclusivo dos turistas, enquanto os próprios ribeirinhos não têm mais direito de pescá-lo.
No rio Negro também fizeram um acordo de pesca para beneficiar os empresários da área do turismo de pesca. Todos são amigos do governador. Estão usando a estrutura do governo para passar a boiada. Quem está coordenando a COP deveria pautar as discussões a partir dessas situações também.
A Secretaria de Segurança do Amazonas captou investimentos do Fundo Amazônia para investir no combate ao desmatamento e compraram armas. Como as armas vão combater o desmatamento no Amazonas? Nenhuma ação efetiva foi feita. Na nossa região, em 2023, veio uma equipe do batalhão ambiental, a pedido da Funai, porque denunciamos o desmatamento dentro da nossa terra indígena. O grupo viu onde era o desmatamento e no outro dia foi embora. Não dá para ser assim. Não vamos conseguir conter o desmatamento e as mudanças climáticas se os governos não pensarem em mudanças efetivas. Um dos meios é chamar os povos indígenas para dialogar.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Herton Filgueira – Eu gostaria de chamar a atenção para o Judiciário. Quando pensamos no contexto histórico do nosso país como um todo, a primeira coisa que vem à cabeça é que o Brasil é um país colonizado. Colonização quer dizer invasão, massacre, estupro, violação de todas as formas de direitos humanos. A nossa última esperança está no Judiciário, porque os governos não estão preocupados com as políticas de proteção ambiental e com os direitos dos povos que vivem na floresta. Os governos vão para o exterior para vender uma Amazônia perfeita, sem desmatamento, sem violação de direitos, sem assassinato de lideranças dos povos indígenas e das comunidades tradicionais e organizações que lutam em defesa do meio ambiente e da vida como um todo. Meu apelo é que o Judiciário, de fato, considere a situação e faça o seu papel de guardião da Constituição Federal. Se o STF começar a violar a Constituição Federal no que diz respeito ao usufruto das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, como é a proposta do ministro Gilmar Mendes, não vai demorar muito para virarmos um país sem lei, infelizmente.