Segundo os entrevistados, a assembleia realizada em outubro, no Vaticano, não pode ser vista como o ponto alto e de onde deveriam sair respostas e resoluções
Saiu decepcionado quem esperava que Sínodo sobre a Sinodalidade, este longo processo de consulta começado em cada paróquia e que culminou com uma assembleia em Roma outubro passado, encerrasse esta sua primeira fase com resoluções objetivas. Segundo os entrevistados ouvidos pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, esperar que o Sínodo traga respostas revela uma incompreensão da proposta. Para eles, este é um processo de escuta e não de rápidas transformações. É como um novo plantio em que sementes são lançadas ao solo e requer tempo para que germinem, cresçam, floresçam e deem seus frutos.
O cardeal-arcebispo de Manaus, dom Leonardo Steiner, participou da assembleia sinodal de outubro e é a partir do que viu e ouviu nas mesas de discussões que diz que é preciso entender o Sínodo como um processo. Ele reconhece que “a Síntese apresenta questões a serem aprofundadas, encaminhadas para podermos vislumbrar o Reino de Deus para todos, uma Igreja para todos, todos partícipes do Reino de Deus”, e comemora: “o texto de Síntese oferece como horizonte: ‘Uma Igreja sinodal em missão’. A missão tornou-se o centro!”
O jesuíta Geraldo Luiz De Mori participou ativamente dos momentos iniciais da consulta sinodal. Ao ver como as demandas chegaram à Santa Sé e o processo como um todo, ele observa que não se podem esperar avanços deste Sínodo. “Mais que de avanços, é preciso pensar o atual caminho sinodal como um convite a não só olhar o presente e o futuro em termos de progresso, como parece indicar o termo ‘avanços’, mas em termos de processo, que não é voltado apenas para o presente e o futuro, mas que supõe releituras contínuas do passado”, diz. O que não quer dizer que o Sínodo sobre a Sinodalidade não traga novidades. “Tanto na etapa continental quanto na 1ª Sessão do Sínodo, chamou a atenção o método da ‘conversação espiritual’ ou ‘diálogo no Espírito’, pouco utilizado até então em muitos processos eclesiais”, completa.
O padre Luis Miguel Modino acompanhou as etapas consultivas e foi a Roma. Ele, como jornalista, auscultou todas as impressões e até os cochichos que saíam da Sala Paulo VI. É através da experiência que ele salienta: “o informe de síntese não pretende refletir sobre temas e sim sobre dinâmicas de Igreja. À medida que as dinâmicas forem mais sinodais, os temas serão debatidos entre todos os batizados. Não adianta colocar temas se esses temas não são discernidos entre todos”. Ou seja, para ele a proposta é de que primeiro aprendamos a ser sinodais, a escutar, para desta dinâmica chegar aos temas mais controversos. “Ser uma Igreja sinodal é um processo, uma dinâmica que será compreendida aos poucos, mas que também enfrenta uma forte rejeição em alguns continentes e de uma parte da hierarquia”, reconhece.
Confira as entrevistas concedidas por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Dom Leonardo Steiner (Foto: Luis Miguel Modino)
Leonardo Steiner é arcebispo metropolitano de Manaus. Frade e cardeal franciscano, foi o segundo bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, atuando na região de 2005 a 2011. Cursou Filosofia e Teologia em Petrópolis, quando os dois cursos eram integrados e foi ordenado padre por Dom Paulo Evaristo Arns, seu primo, em 1978. No Pontifício Ateneu Antoniano, em Roma, cursou mestrado e doutorado em Filosofia. Foi secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.
IHU – Em sua opinião, quais os três avanços do processo sinodal e que estão contidos no Relatório de Síntese da assembleia sinodal?
Leonardo Steiner – A Síntese é o recolhimento de um processo, quase diria de um exercício de sinodalidade. O Sínodo foi um grande avanço. Todo o processo sinodal está sendo um grande avanço, pois exercício de Sinodalidade, a presença, a participação de membros do Povo de Deus nos diversos ministérios e vocações é um grande avanço. A afirmação “todos discípulos, todos missionários” é a aceitação de que todo o batizado, toda a batizada, recebe a graça do anúncio e do seguimento.
A Síntese apresenta questões a serem aprofundadas, encaminhadas para podermos vislumbrar o Reino de Deus para todos, uma Igreja para todos, todos partícipes do Reino de Deus. O Sínodo como processo, como ser Igreja, é um avanço.
IHU – O que está no cerne do documento e como podemos compreender a centralidade deste tema?
Leonardo Steiner – O título do documento, “Uma Igreja sinodal em missão”, pode passar inobservado. Tínhamos no processo sinodal: “Por uma Igreja sinodal: Comunhão, Participação e Missão”. O Instrumentum laboris levava como indicação: “Por uma Igreja sinodal: participação, comunhão e missão”. O texto de síntese oferece como horizonte: “Uma Igreja sinodal em missão”. A missão tornou-se o centro!
Uma Igreja sinodal em missão indica o horizonte, o sentido da sinodalidade. Ao lermos os Atos, nos damos conta do significado do ser Igreja: anunciar o Reino de Deus realizado plenamente em Jesus Cristo Crucificado-ressuscitado. O documento Conciliar Ecumênico Vaticano II Lumen gentium fundamenta o ser Igreja como expressão do Reino de Deus. A Síntese conseguiu recolher as reflexões, as meditações, os debates, as buscas da Igreja como missão.
O anúncio, o Reino de Deus, é a razão da sinodalidade da Igreja. A centralidade está no anúncio da dinamicidade que gera vida, que possibilita a vida em plenitude. Não se trata de buscar novas estruturas nas comunidades, mas dinâmicas que visibilizem um modo de viver em plenitude.
IHU – Qual o tema que esperava aparecer – ou aparecer com mais destaque – no Relatório Final, e que não apareceu?
Leonardo Steiner – A percepção pessoal, sempre subjetiva, é de que a sinodalidade pede mais discussão, reflexão, isto é, exige aprofundar teologicamente. A sinodalidade exige uma mudança, uma conversão. Deixar-se tomar pela força do Evangelho que faz todos serem discípulos missionários.
Nesse sentido, de Igreja como Povo de Deus deverá ser aprofundada e estar mais presente nas reflexões e debates. A escuta nas igrejas particulares, nas comunidades, o despertar para a realidade e as necessidades das comunidades deverá ter um lugar maior na segunda sessão do Sínodo.
A dinâmica sinodal na Igreja que está na Amazônia indica que o caminho da escuta é fundamental para a missão da Igreja; que há um compromisso maior de todos com a vida da comunidade. Ser Igreja em missão onde os leigos e leigas são os primeiros evangelizadores. A Palavra de Deus como força iluminadora e alimentadora das comunidades poderia estar mais presente.
IHU – Como analisa a forma como os temas mais polêmicos, por exemplo, a ordenação feminina, a comunhão de casais de segunda união e o papel dos leigos na Igreja, foram tratados e aparecem no documento final?
Leonardo Steiner – Não saberia dizer se são temas polêmicos ou temas que exigem mais escuta. O Sínodo buscava sondar o sentido de sermos uma Igreja sinodal. Havia o receio inicial de alguns, mesmo certa resistência, em relação à sinodalidade, pois poderia caminhar para uma igreja de democracia, conduzir para perda de autoridade. O horizonte alargou-se! Essas realidades fazem parte da vida da Igreja. Como elas aparecem na Síntese indica que deverão ser abordadas e aprofundadas.
O mesmo se diga da participação dos leigos na vida das comunidades, especialmente a participação das mulheres. Escutar como essas realidades são abordadas nas diferentes culturas desperta para uma sensibilidade como encontrar caminhos de acolhimento e participação. O ser do Evangelho anunciado e mostrado por Jesus pede lucidez e pode ser expresso de modos diversos.
IHU – Como ler e apreender a mensagem da Carta ao Povo de Deus?
Leonardo Steiner – Muitos irmãos e irmãs participaram do processo sinodal desde o início. Era necessário apresentar uma palavra, uma mensagem ao Povo de Deus. O futuro da Igreja será de participação e comunhão de todas as pessoas batizadas e crismadas no anúncio e testemunho do Evangelho. É a expressão de partilha, do caminhar juntos. A Carta e a Síntese ajudam para as irmãs e os irmãos se sentirem em comunhão e participação, despertando para uma Igreja em missão.
IHU – A partir de todo o processo de escuta, desde as paróquias até as dioceses, e com o fim desta primeira fase da assembleia sinodal, podemos afirmar que compreendemos o que é uma Igreja sinodal? Saímos uma Igreja mais aberta e disposta a escutar ou mais confusa e dividida?
Leonardo Steiner – São processos. Talvez se deveria dizer: criar uma cultura sinodal. Todos na Igreja nos exercitamos na sinodalidade para presencializar, visibilizar o Reino de Deus. Perceber que somos uma Igreja sinodal em missão exige exercícios de sinodalidade nas comunidades, nas igrejas particulares. Não basta um Sínodo.
O Sínodo é um despertar para um modo de ser Igreja de comunhão e participação, por isso, de decisões. Um processo para o qual podemos despertar. O Sínodo possibilita o sentir-se Igreja, responsabilizar-se pelo anúncio do Evangelho.
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Geraldo Luiz De Mori (Foto: Faje)
Geraldo Luiz De Mori é bacharel em Filosofia e Teologia pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus – CES, de Belo Horizonte, atualmente Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje. É licenciado em Filosofia pela PUC Minas, mestre e doutor em Teologia pelo Centre Sèvres – Facultés Jésuites de Paris. Realizou pós-doutorado no Institut Catholique de Paris. É professor titular no Departamento de Teologia da Faje. Entre seus livros publicados, destacamos: Discernir a pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas. Contribuições do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral (Paulinas, 2022) e Esses corpos que me habitam no sagrado do existir (Loyola, 2022).
IHU – Em sua opinião, quais os três avanços do processo sinodal e que estão contidos no Relatório de Síntese da assembleia sinodal?
Geraldo Luiz De Mori – Mais que de avanços, é preciso pensar o atual caminho sinodal como um convite a não só olhar o presente e o futuro em termos de progresso, como parece indicar o termo “avanços”, mas em termos de processo, que não é voltado apenas para o presente e o futuro, mas que supõe releituras contínuas do passado. Nesse sentido, o percurso trilhado corresponde bem ao princípio bipolar proposto na Evangelii gaudium, segundo o qual o “tempo é superior ao espaço” (EG 222).
Deste princípio resulta que “dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processo do que possuir espaços” (EG 223). Sob muitos pontos de vista, os passos dados até o momento são um grande aprendizado desse princípio. Por isso, em vez de falar de “avanços”, recorrerei ao termo “aprendizados”.
O primeiro deles diz respeito ao método. Na América Latina e na Europa, como observa Christoph Théobald, o método ver-julgar-agir foi muito importante no período que antecedeu a realização do Concílio Vaticano II e que depois conduziu a dinâmica de sua recepção. Amadurecido numa época de grandes mudanças na sociedade e nas ciências que a interpretavam, esse método ajudou a Igreja e sua pastoral a ler os “sinais dos tempos”, para poder oferecer um novo significado e relevância (aggiornamento) à mensagem do Evangelho nos diversos lugares e momentos em que ela era anunciada.
Uma das fontes da cultura ocidental, a da filosofia grega, é guiada pela visão, pois nasceu da admiração e levava à contemplação e à teoria. A segunda fonte, a da bíblia hebraica, que está na origem das Escrituras cristãs e da revelação islâmica, é guiada pela audição, como bem atesta o credo antigo dos judeus: “Escuta, Israel!” (Dt 6,4). No mundo gestado pela razão moderna, o sujeito era pensado numa teia de relações, que se organizavam nas grandes instituições que compunham a sociedade moderna: estado, família, forças armadas, empresas, sindicados, igrejas.
O ver do método da ação católica voltava-se em geral para essa rede de relações, com a ajuda das ciências sociais críticas. Os avanços da modernidade tardia, também denominada de pós-modernidade, levaram à fragmentação de grande parte do “nós” coletivo a partir do qual funciona a sociedade, que se compreende mais a partir do indivíduo e seus interesses e desejos, levando ao surgimento de um pluralismo de princípio, que reivindica reconhecimento das identidades que nele são gestadas, muitas delas em oposição umas às outras. Esse reconhecimento só acontece, porém, se cada identidade se deixa interpelar pela outra, e isso demanda escuta.
A primeira etapa do processo sinodal foi feita a partir de uma grande escuta nas dioceses de todo o mundo, a partir de um questionário proposto no Documento Preparatório, levando às sínteses diocesanas e nacionais. O resultado dessa primeira etapa deu origem ao Documento da Etapa Continental, a partir do qual foi realizada a segunda fase, cujos resultados, por sua vez, levaram à elaboração do Instrumentum laboris, a partir do qual acaba de ser realizada a 1ª Sessão da XVI Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos.
Tanto na etapa continental quanto na 1ª Sessão do Sínodo, chamou a atenção o método da “conversação espiritual” ou “diálogo no Espírito”, pouco utilizado até então em muitos processos eclesiais. Mais que opor-se ao método ver-julgar-agir, ou aos métodos dos sínodos anteriores, que partiam de documentos preparatórios elaborados nas instâncias da Secretaria Geral do Sínodo, o novo método quer sinalizar para um novo modo de proceder nas instâncias de discernimento e decisão no seio da Igreja.
Num mundo que tem cada vez mais dificuldades de escuta e diálogo, pelas dificuldades da própria cultura individualista, voltada mais para os interesses do “eu” do que os do “nós”, esse aprendizado no seio da Igreja, e numa instância tão importante como a de um sínodo, pode ser um sinal “sacramental” da Igreja para o mundo, ou, como tem insistido Francisco, o “melhor serviço” que ela pode oferecer-lhe, construindo pontes e não muros.
Um segundo aprendizado é o da relação entre sinodalidade, colegialidade e primado, apresentado na Segunda Parte do Relatório de Síntese ao redor dos termos “todos”, “alguns” e “um”, e da igualdade batismal, valorizada na Primeira Parte. Agenor Brighenti [1] tem afirmado em diversas ocasiões que o atual pontificado propõe uma “segunda recepção” do Concílio Vaticano II. Com efeito, se se leva a sério uma “teologia dos sinais dos tempos”, cada geração deve apropriar-se do que lhe transmite a geração precedente, ou seja, num mundo em contínua mudança, o ato de transmissão não é automático e não se dá mais como repetição do recebido, mas como gesto de recriação, que supõe interpretação dos conteúdos da fé em cada contexto em que é proposto.
O Concílio Vaticano II havia insistido muito na dignidade de todos os fiéis, dada pelo batismo, resgatando a eclesiologia da Igreja povo de Deus e colocando-a em diálogo de fecundação mútua com as eclesiologias da Igreja “corpo de Cristo” e “templo do Espírito Santo”. Esse resgate, muito forte no imediato pós-concílio, foi, porém, aos poucos cedendo o lugar a modelos pré-conciliares, supervalorizando o papel da hierarquia, dando origem ao clericalismo, fortemente denunciado pelo Papa Francisco e por muitos fiéis.
Essa redescoberta do batismo como fonte de nascimento da Igreja traz consigo a exigência de repensar a relação entre sinodalidade, colegialidade e primado, apresentada nesta formulação pelo Documento da fase continental da América Latina e o Caribe [2] e segundo a tríade “todos”, “alguns”, “um”, na Segunda Parte do Relatório de Síntese. Essa articulação já aparece na Lumen gentium, que, além de apresentar o “mistério da Igreja” à luz da Trindade, também reflete sobre sua dimensão hierárquica e sobre os diversos carismas e ministérios que a tornam servidora do reino e “sacramento de salvação” no mundo.
Théobald, em entrevista à revista La Vie, afirma que o Vaticano I esclareceu as prerrogativas do ministério de Pedro (o Primado do Papa), ainda mal interpretada em muitos ambientes; que o Vaticano II avançou na noção de colegialidade, que, a partir da instituição do Sínodo dos Bispos, fez avançar essa noção juntamente com a de comunhão entre Igrejas. O novo passo que o atual processo sinodal parece sinalizar é o da relação entre essas duas expressões da sinodalidade e a do conjunto do povo de Deus, que tem sido fonte de muitos mal-entendidos, conflitos e resistências. As duas metáforas propostas pelo Papa para articulá-las, a da pirâmide invertida e a do caminho (o bispo como aquele que está à frente, no meio ou atrás) foram enriquecidas, segundo Théobald, com a metáfora musical da harmonia, trazida das Igrejas da Ásia e da Oceania.
O terceiro aprendizado, em parte relacionado com o primeiro, é o da busca da comunhão na diferença, que parece sinalizar para o acolhimento do que cada Igreja particular traz para enriquecer o conjunto da catolicidade. É interessante perceber no Relatório de Síntese a valorização das Igrejas Orientais, com sua rica tradição litúrgica e teológica, mas também elementos da cultura asiática, como o da categoria da harmonia, ou, no caso particular das Igrejas africanas, a questão da pastoral da poligamia.
Evoca-se, também, embora sem mencionar os nomes das Igrejas, o que se aprende das Igrejas da Reforma e o que a Igreja pode aprender com o diálogo intercultural e inter-religioso. Essa diversidade, como indica Andrea Grillo, poderia abrir espaço à valorização dos discernimentos feitos em cada contexto continental, não significando perda da unidade dogmática, moral e canônica do conjunto da Igreja, mas sua capacidade de fazer avançar os processos de inculturação a partir dos “sinais dos tempos” de cada região ou contexto.
IHU – O que está no cerne do documento e como podemos compreender a centralidade deste tema?
Geraldo Luiz De Mori – O tema do Sínodo, “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”, tem levado muitos a pensarem que a sinodalidade é uma preocupação com o modo de ser da Igreja, ou seja, a forma como está organizada (hierarquia, religiosos/as, leigos/as), o modo como nela é exercido o poder (papa, bispos, padres, laicato), as relações entre os diversos grupos que a compõem etc. Essa leitura, embora não de todo equivocada, não me parece ser a que nos coloca no centro do processo sinodal nem dos resultados que são apresentados no Relatório de Síntese.
Outro tipo de leitura, que também não é equivocado, mas que tampouco parece ser a central, é a da inclusão de grupos tidos como “marginalizados”, “preteridos” ou “excluídos” do corpo eclesial (LGBTQIA+, casais em segunda união etc.). O Instrumentum Laboris parece ter recolhido bem o que está em jogo no presente sínodo e que também volta no Relatório de Síntese: a missão. O primeiro capítulo da Segunda Parte resume bem essa convicção, ao definir a Igreja como missão. Essa compreensão da Igreja, muito forte na Evangelii nuntiandi, de Paulo VI, é a que move o presente pontificado, como bem o atesta a Evangelii gaudium.
Se o Evangelho é o que leva à experiência mais profunda da alegria, por tornar possível o encontro com o Cristo vivo, que dá sentido à existência de quem o encontra e acolhe, ele só é realmente credível se aqueles que se dizem dele viver e nele pautarem suas convicções, condutas e ações, realmente testemunharem no mundo o que nele faz viver.
Num mundo que cada vez mais privilegia o “eu”, um eu muitas vezes “cansado”, “agônico”, decepcionado, revoltado, de mal com a vida e com o mundo, testemunhar a alegria do Evangelho normalmente deveria se traduzir em aprender a criar um “nós” que se oferece como “sinal”, “sacramento”, tal como expressou a Lumen gentium a respeito da Igreja.
Nesse sentido, a expressão “sinodal” da Igreja é um serviço ao mundo, sua principal missão. Para que desempenhe esse serviço, ela necessita certamente rever o que não mais contribui para que seja toda missionária, como diz a Evangelii gaudium (EG 21-38). E entre os elementos que necessitam ser revistos, num caminho de “conversão” contínua, encontram-se, sem dúvida alguma, os que se referem às relações entre as três dimensões constitutivas da sinodalidade acima evocadas: todos, alguns, um.
IHU – Qual o tema que esperava aparecer – ou aparecer com mais destaque – no Relatório Final, e que não apareceu?
Geraldo Luiz De Mori – O tema que teria gostado que tivesse sido tratado com maior profundidade é o da relação entre poder (potestas) e sacramento da ordem. Na fase da escuta às Igrejas locais, mas também na fase continental e mesmo na 1ª Sessão, o tema do poder na Igreja apareceu de muitas maneiras: como “abuso de poder”, muitas vezes associado à questão de abuso de consciência, abuso sexual, não transparência na prestação de contas por parte dos ministros ordenados; como clericalismo, ou seja, uma compreensão equivocada de que toda a missão de santificar, ensinar e governar seja atributo único do ministro ordenado; como concessão maior ou menor de “poder” ou “participação” a leigos e mulheres nas diversas instâncias decisórias da instituição eclesial. Faltou, porém, retornar à teologia do sacramento da ordem, tal qual foi “definida” no Concílio de Trento, e que domina a compreensão do “poder” do ministro ordenado na Igreja. Ou seja, o sacramento da ordem é intimamente associado com a “potestas”, ou seja, o poder de realizar as principais funções litúrgicas, o ensinamento e o governo.
Houve nessa definição um claro distanciamento da compreensão neotestamentária do que seria o “poder” na Igreja. Como bem diz Jesus, “vós me chamais de mestre e senhor, e eu o sou, mas se eu, o mestre e o senhor vos lavei os pés, também vós deveis fazer o mesmo” (Jo 13,13-14). Sem uma reflexão renovada do ministério da ordem, toda revisão do Código do Direito Canônico pode ficar comprometida e, certamente, todo o esforço de se pensar uma igreja sinodal.
IHU – Como analisa a forma como os temas mais polêmicos, por exemplo, a ordenação feminina, a comunhão de casais de segunda união e o papel dos leigos na Igreja, foram tratados e aparecem no documento final?
Geraldo Luiz De Mori – O capítulo 15, que faz parte da Terceira Parte do Relatório, define assim as “questões abertas”: “algumas questões, como as relacionadas à identidade de gênero e à orientação sexual, ao fim da vida, às situações matrimoniais difíceis, às problemáticas éticas relacionadas à inteligência artificial, são controversas não só na sociedade, mas também na Igreja, pois levantam questões novas”. O texto continua dizendo que as reflexões feitas até então não são suficientes e que são necessários ulteriores estudos.
Como mostraram algumas “leituras” do Relatório, em vez de nomear, por exemplo, os grupos LGBTQIA+, preferiu-se uma linguagem genérica e abstrata, não levando em conta, por exemplo, todo o caminho pastoral e toda a reflexão antropológica e teológica já feita junto a esses – e por esses – grupos sobre a problemática da identidade de gênero e da orientação sexual. Certamente, num grupo com horizontes culturais tão diversos, chegar a consensos sobre essas temáticas seria impossível, mas não as nomear explicitamente tampouco é o melhor caminho.
Algo parecido se pode dizer a respeito das reflexões éticas sobre o fim da vida ou das questões éticas relacionadas à inteligência artificial. Já existe um longo percurso feito pela teologia e pela pastoral nesses âmbitos, que, apesar de não terem o mesmo tipo de percepção nos distintos contextos, já podem oferecer pistas que mereceriam ser objeto de um maior avanço no discernimento feito pelo Sínodo.
Embora situado em outro contexto, o da Segunda Parte, no capítulo 9, dedicado “à mulher na vida e na missão da Igreja”, a questão do acesso delas ao ministério ordenado só é mencionada a partir das opiniões divergentes que essa temática provoca no conjunto da Igreja, ignorando o caminho de reflexão teológica feito e, sobretudo, o lugar que a mulher ocupa no conjunto das comunidades eclesiais, o que não deixa de suscitar certa perplexidade e estranheza.
Na questão do acesso à comunhão a casais divorciados em segunda união, é também curioso que o caminho feito no Sínodo da Família, há quase dez anos, embora mencionado, ainda não parece ter criado consenso no seio das diversas Igrejas, sinalizando para uma “não recepção” da exortação pós-sinodal Amoris laetitia, sobretudo do capítulo oitavo.
Com relação ao papel do laicato, presente sobretudo na Segunda Parte, capítulo 8, que trata da Igreja como missão, por um lado, se recorda a ação dos leigos/as nas diferentes “realidades temporais”, valorizada pelo Concílio Vaticano II, por outro, parece que há maior ênfase nas atividades que eles/as exercem no seio das comunidades, com uma clara orientação, na última parte, a à sua melhor formação. Esta ênfase à ação interna não sinaliza para uma impostação à ação ad intra do laicato em detrimento da ação ad extra?
IHU – Como ler e apreender a mensagem da Carta ao Povo de Deus?
Geraldo Luiz De Mori – É um texto que pretende alcançar o conjunto dos fiéis da Igreja e quem não é católico, mas tem alguma relação com a Igreja. Enfatiza a experiência vivida, em grande parte marcada por alguns momentos fortes, como a cerimônia ecumênica do dia 29-09-2023, feita de silêncio, comunhão com distintas Igrejas cristãs; o retiro, que deu o tom ao conjunto da experiência, que seria realizada, sobretudo, a partir do método da “conversação espiritual” ou “diálogo no Espírito”, já experimentado certamente por quem tinha participado da etapa continental, mas realizada ao redor das “mesas” na Sala Paulo VI, que se tornaram o símbolo mesmo desta 1ª Sessão Sinodal; a comunhão com as “dores e angústias”, “alegrias e esperanças” do mundo, ilustradas pelas guerras terríveis; o grito da terra e dos pobres, de novo retomado na exortação apostólica Laudato Deum.
O texto recorda que “a vocação da Igreja é anunciar o Evangelho, não se centrando em si mesma, mas pondo-se ao serviço do amor infinito com que Deus ama o mundo (cf. Jo 3,16)”. Lembra ainda a experiência da confiança que brotou das “convergências” e “divergências”, e se pergunta: “E agora?”
Como resposta, recorda que para que a Igreja seja realmente sinodal, ela tem que escutar a todos, começando pelos mais pobres, dando atenção especial às vítimas de abusos em seu seio, passando, em seguida, pelos diversos grupos que a compõem: leigos e leigas, catequistas, crianças, jovens, idosos, famílias, os que exercem ministérios na Igreja: leigos e leigas, diáconos, padres, bispos, religiosos e religiosas, os que não partilham a fé da Igreja.
O texto é a expressão de uma experiência profunda e inaudita, realizada pela primeira vez: a de um sínodo no qual participaram todas as vocações que compõem a Igreja, com liberdade de tomar a palavra e participar dos processos de discernimento e votação, e observadores.
IHU – A partir de todo o processo de escuta, desde as paróquias até as dioceses, e com o fim desta primeira fase da assembleia sinodal, podemos afirmar que compreendemos o que é uma Igreja sinodal? Saímos uma Igreja mais aberta e disposta a escutar ou mais confusa e dividida?
Geraldo Luiz De Mori – Excelente pergunta. Só o tempo poderá respondê-la. De nossa parte, o que desejamos é que o “processo sinodal” inaugurado no dia 10-10-2021, com a missa presidida pelo Papa Francisco, na Basílica de São Pedro, dando início ao caminho da XVI Assembleia Sinodal, realmente tenha sido uma expressão do “iniciar processos” mais do que “possuir espaços” (EG 223), tradução do primeiro princípio segundo o qual “o tempo é superior ao espaço” (EG 222).
Provavelmente muitas dioceses realizaram a escuta da primeira fase como um ato meramente formal, ou seja, um ato de “obediência” externa à demanda do Papa, sem, de fato, aproveitar a ocasião para inaugurar processos. Outras se contentaram de permanecer na autorreferencialidade, já se dizendo sinodais ou utilizando esse termo para manter práticas que não são nada sinodais. Nessas Igrejas particulares o sínodo será somente um evento a mais, sem provocar nada de novo que possa fazê-las sair da “pastoral da manutenção” para o processo da “conversão missionária”.
É bom lembrar a esse respeito minha resposta à segunda pergunta: qual o centro do Relatório de Síntese? A missão e não tanto as estruturas, a briga por poder, os debates estéreis sobre temas sensíveis que nada mais são que a autojustificação da própria opinião ou ideologia. Não que esses temas todos não sejam importantes. Muitos deles necessitam de profunda revisão, ou, na linguagem teológica privilegiada pelo Papa, de “conversão”: no plano da teologia, da pastoral, do direito canônico, como aparece em várias das afirmações da Síntese. Toda a Igreja precisa de novo colocar-se à escuta de seu Senhor e à escuta dos “gritos do povo”, para nessa dupla escuta descobrir para onde a conduz o Espírito do Senhor.
Certamente muitas dioceses aproveitaram esta “ocasião favorável” para fazer do presente processo sinodal um “kairós” para sua caminhada. Em muitas delas tem sido levado a sério o que veio da escuta da primeira fase. Outras escolheram iniciar o próprio processo sinodal, ampliando a dupla escuta necessária para que a conversão de fato aconteça.
O que resultará disso tudo não é possível ainda prever. Alguns grupos, opostos à figura de Igreja que nasceu do Concílio Vaticano II, têm agido de modo forte e permanente para acusar o processo sinodal de “traição” ao que seria a “verdadeira” Igreja de Cristo, infelizmente, atraindo muitos católicos desatentos ou com pouca formação, que têm se deixado levar por tal propaganda. Os frutos do que está sendo semeado nesse tempo só serão colhidos após o longo processo de nascimento, crescimento, amadurecimento do que foi semeado.
[1] BRIGHENTI, A. Discernir a pastoral em tempos de crise. In: DE MORI, G. Discernir a pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas. Contribuições do 1º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral. São Paulo: Paulinas, 2021, p. 42.
[2] 3 CELAM. Resumo da Fase Continental do Sínodo na América Latina e Caribe. Bogotá: CELAM, 2023.
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Luis Migel Modino (Foto: acervo pessoal)
Luis Miguel Modino é presbítero da Arquidiocese de Madri e missionário na Arquidiocese de Manaus. Atua como assessor de imprensa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB (regional Norte1) e coordenador da Comissão para a Comunicação na Arquidiocese de Manaus. É pároco da Área Missionária São José do Rio Negro, em Manaus, formada por 26 comunidades indígenas e ribeirinhas. Vive no Brasil desde 2006 e na região amazônica desde 2016. É formado em Filosofia pela Universidad de Comillas, em Madri, e em Teologia pelo Seminário da mesma cidade.
IHU – Em sua opinião, quais os três avanços do processo sinodal e que estão contidos no Relatório de Síntese da assembleia sinodal?
Luis Miguel Modino – O grande avanço é ver que é possível falar no mesmo plano, como batizados, independentemente do ministério que cada um assume na Igreja. Mesmo com a necessidade de melhorar o método, mas estar sentados em mesas redondas, tendo cada um o mesmo tempo para falar e sem a possibilidade de rebater as opiniões dos outros é um grande passo.
A participação das mulheres com voz e voto é um grande avanço, que aos poucos deve ir se assumindo em todos os níveis de Igreja, superando episódios de marginalização das mulheres na vida da Igreja e colocando empecilhos para poder aprofundar na formação teológica, em assumir ministérios, em participar dos órgãos de decisão na Igreja.
Assumir a importância do mundo virtual e da presença no ambiente digital, sobretudo pensando nos jovens. Sentir a necessidade de assumir essa nova linguagem e modos de se relacionar e querer dar passos para fazer essa presença mais efetiva.
IHU – O que está no cerne do documento e como podemos compreender a centralidade deste tema?
Luis Miguel Modino – Aprender a ser Igreja sinodal, uma Igreja que tem como fundamento o batismo, onde a autoridade não vem do poder e sim do serviço, das atitudes e do modo de fazer visível o Evangelho hoje, de ser presença de Jesus Cristo. É uma nova dinâmica de ser Igreja, uma Igreja que concretiza a comunhão, participação e missão na vida cotidiana, no modo de tomar as decisões e conduzir a prática pastoral em todos os níveis. O ponto fundamental é descobrir quem toma as decisões na Igreja e os passos que são dados para elas serem tomadas.
IHU – Qual o tema que esperava aparecer – ou aparecer com mais destaque – no Relatório Final, e que não apareceu?
Luis Miguel Modino – Insisto em que o informe de síntese não pretende refletir sobre temas e sim sobre as dinâmicas de Igreja. À medida que as dinâmicas forem mais sinodais, os temas serão debatidos entre todos os batizados. Não adianta colocar temas se esses temas não são discernidos entre todos.
IHU – Como analisa a forma como os temas mais polêmicos, por exemplo, a ordenação feminina, a comunhão de casais de segunda união e o papel dos leigos na Igreja, foram tratados e aparecem no documento final?
Luis Miguel Modino – A forma como foram tratados mostra a diversidade de modos de entender e viver a fé hoje. A Assembleia Sinodal fez aparecer essa diversidade, o desafio é como buscar caminhos comuns sem provocar rupturas. Não será um caminho fácil.
Na segunda sessão, onde devem participar os mesmos membros, os temas devem ser mais aprofundados e o papel dos teólogos deve ser mais relevante para poder fundamentar melhor os debates que devem aparecer no salão sinodal.
IHU – Como ler e apreender a mensagem da Carta ao Povo de Deus?
Luis Miguel Modino – Um elemento fundamental é que é uma Carta de batizados, sentados à mesma mesa para participar não apenas das discussões, mas também da votação desta Assembleia do Sínodo dos Bispos, para uma escuta da “Palavra de Deus e da experiência dos outros”, por meio do método do diálogo no Espírito, com o qual “compartilhamos humildemente as riquezas e as pobrezas de nossas comunidades em todos os continentes, tentando discernir o que o Espírito Santo quer dizer à Igreja hoje”, segundo afirma o texto.
Uma Assembleia Sinodal que pediu “conversão pastoral e missionária” e que chama à participação do povo de Deus entre as duas sessões da Assembleia Sinodal e à escuta de todos, sobretudo “aqueles que não têm o direito de falar na sociedade ou que se sentem excluídos, também da Igreja”.
IHU – A partir de todo o processo de escuta, desde as paróquias até as dioceses, e com o fim desta primeira fase da assembleia sinodal, podemos afirmar que compreendemos o que é uma Igreja sinodal? Saímos uma Igreja mais aberta e disposta a escutar ou mais confusa e dividida?
Luis Miguel Modino – Ser uma Igreja sinodal é um processo, uma dinâmica que será compreendida aos poucos, mas que também enfrenta uma forte rejeição em alguns continentes e de uma parte da hierarquia. Custa escutar as mulheres, os pobres, os excluídos, aqueles que alguns consideram estar fora dos seus padrões. Mas também é verdade que aos poucos a disposição a escutar é maior, pois vai se entendendo que é o melhor modo de ser Igreja.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Luis Miguel Modino – É fundamental o envolvimento de todos os batizados no período que vai até a segunda sessão. O Informe de Síntese tem que ser trabalhado e aprofundado em todos os níveis de Igreja. Não podemos ter medo de escutar a todos e deixar falar à vontade. O perigo é evitar que esse debate aconteça e tudo fique na opinião de um pequeno grupo.