O desafio de reencantar a população e pensar a escola não só para “privilegiados”. Entrevista especial com Pâmella Passos e Rodrigo Manoel Dias da Silva

Depois do desmonte realizado pelo atual governo, professor apontam caminhos para a nova gestão de Lula

Em projeto de escola de Manaus, projeto leva circo para a escola, misturando aprendizado e diversão | Foto: Antonio Pereira/ Semcom pre. Manaus

Por: João Vitor Santos | 20 Dezembro 2022

Tanto a professora Pâmella Passos, do Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ, como o professor Rodrigo Manoel Dias da Silva, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, reconhecem que o Ministério da Educação foi uma das pastas mais desvertebradas no governo de Jair Bolsonaro. “Para além da constante falta de investimentos na área, os cortes orçamentários impactaram e, em alguns casos, interromperam importantes ações de ensino, pesquisa e extensão pelo país, tais como programas de assistência estudantil, iniciação científica, entre outros”, exemplifica Pâmella. “A gestão presidencial de Jair Bolsonaro para a Educação foi incapaz de produzir uma agenda coordenada para o enfrentamento das principais questões que afetaram o setor no último quadriênio”, completa Rodrigo.

Sem articulação para sanar os déficits históricos e agravados na pandemia em termos de aprendizagem, houve o que os professores classificam como desfinanciamento que atingiu desde a Educação Infantil até pós-graduação. “É nesse contexto que emerge com força a fantasiosa e perigosa ideia de uma educação neutra que somente prepara para o mercado de trabalho. Nesta concepção de educação defendida e produzida pelo governo derrotado, caberia às escolas e universidades agir de forma a ignorar a realidade de desigualdade social, não abordando temas relacionados às opressões de gênero, raça e classe”, observa Pâmella, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Rodrigo, também em entrevista por e-mail ao IHU, vai na mesma direção. Ele aponta que “a educação deve ser um projeto democrático orientado por valores republicanos, para tal devemos reconhecer os cenários do ‘futuro apagão’ de docentes e os necessários investimentos para assegurar a viabilidade e a relevância da escola”. E completa, dizendo que “movimentos semelhantes devem ocorrer na educação superior. É fundamental a regularização dos repasses orçamentários às instituições públicas, mas igualmente fundamental conter a corrida privatista da educação superior, predominantemente ocorrida em cursos a distância, mal avaliados e desprovidos de qualidade acadêmica”.

A saída, segundo Pâmella, é complexa, mas não impossível. “O governo eleito tem a tarefa de reencantar a população sobre a importância da educação”, sinaliza. Para ela, “é preciso descontruir a ideia de professor como inimigo e doutrinador, afirmando uma educação crítica e cidadã. Em termos práticos, é necessário priorizar o diálogo com o setor público e não com os empresários da educação”. Rodrigo concorda e chama o célebre educador Anísio Teixeira, que supera a ideia de indicadores e ranqueamentos de sabres e aprendizagem. Isso porque não é preciso ficar sempre medindo e remedindo o desempenho das escolas em provas nacional, concebidas desde gabinetes brasilienses. O que é fundamental são “relações de aprendizagem ancoradas nos territórios, em escolas de tempo integral e no diálogo com estudantes e comunidades escolares”. “Parafraseando Anísio, não mais uma escola voltada à formação dos ‘privilegiados’, mas uma escola inclusiva, cooperativa e justa. E, ainda, capaz de valorizar e desenvolver aprendizagens a partir de uma ecologia de saberes, em sintonia e respeito a cidades, campos e territórios diversos”, resume.

Confira as entrevistas.

Pâmella Passos (Foto: Acrevo pessoal)

Pâmella Passos é professora titular de História do Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Realizou dois estágios de pós-doutorado, o primeiro em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e o segundo em Educação na UFF. É líder do Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Educação & Cultura – GPTEC. Autora de livros, tem produção na área de cultura popular, ensino de história, educação e direitos humanos. É uma das autoras de O professor é o inimigo: uma análise sobre a perseguição docente no Brasil (Mórula Editoral, 2021), obra que pode ser baixada gratuitamente aqui.

IHU – Qual é seu diagnóstico da gestão de Jair Bolsonaro na área da educação?

Pâmella Passos – Os últimos quatro anos do governo federal foram marcados por um sucateamento na educação brasileira, afetando diretamente sua qualidade, sobretudo na educação pública. Para além da constante falta de investimentos na área, os cortes orçamentários impactaram e, em alguns casos, interromperam importantes ações de ensino, pesquisa e extensão pelo país, tais como programas de assistência estudantil, iniciação científica, entre outros.

Nesse período, os cortes de bolsas e financiamento de pesquisa foram se avolumando, chegando ao mais recente cenário em que milhares de bolsistas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES não receberam o auxílio, tendo que pressionar a União para honrar o compromisso já estabelecido com esses pesquisadores. O que se apresenta com essa realidade é um projeto anticiência e anti-intelectual, que governou o Brasil de 2019 a 2022.

Dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc afirmam que o gasto público com educação está em queda nos últimos cinco anos. Segundo a instituição de pesquisa, entre os anos de 2019 e 2022, o ensino médio público, por exemplo, vem sofrendo um desfinanciamento gradual. A alimentação escolar é outro ponto a ser destacado; o descompasso entre a verba liberada pelo governo e os preços dos alimentos resultou em uma merenda escolar com baixo teor nutricional, prejudicando mais diretamente as crianças em situação de vulnerabilidade econômica. O cenário que temos é um Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE que carece de investimentos urgentes.

Aos fatores destacados acima, somam-se as trocas ministeriais e os escândalos que fizeram parte da trajetória do Ministério da Educação – MEC nesse período, revelando o projeto político que estava por trás deste (des)governo: sucatear a educação pública através da retirada de recursos e reduzir a educação à ideia de transmissão de conteúdos e treinamentos. Como diversos líderes que apoiam o governo repetem: “A família educa e a escola ensina”.

Educação neutra

É nesse contexto que emerge com força a fantasiosa e perigosa ideia de uma educação neutra que somente prepara para o mercado de trabalho. Nesta concepção de educação defendida e produzida pelo governo derrotado, caberia às escolas e universidades agir de forma a ignorar a realidade de desigualdade social, não abordando temas relacionado às opressões de gênero, raça e classe, por exemplo. Como herança desse tempo de trevas, temos uma educação brasileira que sobreviveu a duros ataques econômicos, trabalhistas, éticos e conceituais.

Um ponto muito importante desse período foi o fortalecimento do discurso religioso na esfera educacional. Ignorando a premissa de que a fé é privada e a política é pública, a educação laica foi atacada enquanto argumentos de fé foram utilizados para disseminar um pânico moral acerca de pautas que visam garantir direitos a populações minoritárias e em risco.

Pandemia

Também não podemos deixar de enfatizar a condução dada pelo governo federal à pandemia de covid-19. O que assistimos foi uma gestão de morte que deixou duras sequelas também na educação. A política de desincentivo ao uso de máscaras, ao isolamento social e o atraso da vacinação resultaram em mais de 690 mil mortes, das quais, segundo o epidemiologista Pedro Hallal, estima-se que 400 mil poderiam ter sido evitadas, além de impacto econômico nas famílias.

Como consequência desse período, a educação viu a evasão escolar crescer, sobretudo para crianças, jovens e adultos mais pobres. O ensino remoto, que se fez necessário para garantir o isolamento social durante um longo período da pandemia, aumentou o abismo já existente entre estudantes da rede pública e privada. A falta de acesso a equipamentos e estrutura necessária para as aulas on-line prejudicou ainda mais as famílias com menor renda, sendo urgente a elaboração de uma política de reparação a esta situação.

Assim, diagnosticar a gestão Bolsonaro na educação é relembrar a inconstância na chefia do Ministério da Educação que, ao longo do governo, teve quatro ministros, além dos inúmeros escândalos envolvendo corrupção com desvio de verbas e privilégios no MEC. O desmonte na política educacional brasileira foi um projeto bem executado pelo governo que agora se encerra. Temos pela frente um árduo trabalho de reconstrução.

IHU – Como reconstruir a educação pública do país ante o presente cenário?

Pâmella Passos – Sabemos que a governabilidade do governo Lula não será fácil. O amplo arco de alianças que o elegeu cobrará arduamente o preço de seu apoio político. Nesse cenário, é preciso escolher prioridades na reconstrução do país e, sem dúvida, a educação pública é uma delas. É urgente redirecionar investimentos para educação, não aceitando as imposições do mercado que apelam para a ortodoxia financeira da responsabilidade fiscal e teto de gastos.

Os governos anteriores do PT possuem dados que mostram como o investimento na rede federal de educação não pode ser visto como gasto, mas como investimento, visto que gera empregos, ciência, tecnologia, autonomia e competitividade do país frente às inovações internacionais em diferentes áreas do conhecimento.

Outro aspecto crucial para tal reconstrução é afirmar que a educação precisa ser gerida por quem dela entende. O MEC não pode ser um balcão de negociações políticas. Há, no arco de apoio ao governo, experientes gestores educacionais que podem implementar a árdua tarefa de reestruturar a educação brasileira e garantir uma educação laica, democrática e promotora de direitos.

O desafio de reencantar a população

O governo eleito tem a tarefa de reencantar a população sobre a importância da educação. É preciso descontruir a ideia do professor como inimigo e doutrinador, afirmando uma educação crítica e cidadã. Em termos práticos, é necessário priorizar o diálogo com o setor público e não com os empresários da educação.

A sociedade civil organizada em associações, ONGs e diversos movimentos sociais na área educacional, converge na urgência de que o governo eleito precisa revogar o novo ensino médio e as escolas cívico-militares, reverter os ataques ao Programa Nacional do Livro Didático – PNLD e, por fim, o projeto de ensino domiciliar. Também é preciso fortalecer programas assistência estudantil e ampliar ações de popularização da ciência e dos espaços acadêmicos. É preciso retomar o curso de uma educação que valoriza a ciência em toda sua diversidade.

IHU – Nos governos petistas anteriores, o acesso à educação universitária e o investimento nas instituições públicas foram destaques. Porém, atualmente há um déficit imenso já na educação básica. Diante do atual contexto, qual deve ser a maior prioridade nos investimentos em educação pública?

Pâmella Passos – Em uma realidade de tamanho caos, a prioridade deve ser investir de forma vertical em todos os segmentos/níveis de ensino da educação brasileira. Caberá ao governo federal orquestrar um processo de recuperação da educação pública que vai desde a educação básica até a pós-graduação. Tal movimento implica em mecanismos de incentivo e pressão às esferas municipais e estaduais para que estas se comprometam com ações concretas de recuperação educacional no país.

Cabe destacar que o investimento não é apenas financeiro, mas de retomada de uma concepção de educação crítica e comprometida com a promoção de direitos na esteira do que o legado de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, ensinou. A crescente violência nas escolas, os recentes ataques a esses espaços e a comunidade escolar denunciam a urgência em abordar, com responsabilidade, temas que foram silenciados pelo crescimento do ódio e intolerância.

O pânico moral do qual a educação brasileira foi alvo precisa ser desfeito. Como resultado de inúmeras fake news sobre kit gays, banheiros perigosos, entre outros, famílias passaram a desacreditar dos educadores. Enquanto isso, os números de abusos sexuais em crianças e adolescentes não diminuíram: é preciso pôr o dedo na ferida e essas pautas não serão fáceis de dialogar com os setores da base de apoio que elegeu Lula. Nesse momento, será sempre necessário escolher para quem governar e lembrar a que ponto de desumanidade o governo brasileiro chegou nos últimos quatro anos.

A prioridade colocada é, sem dúvida, o investimento na educação básica, no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE e nos trabalhadores da educação, em especial os professores. A educação superior suplica por mais políticas de assistência estudantil, infraestrutura e consolidação com ampliação da pesquisa e extensão.

IHU – Quais os maiores desafios para o financiamento da educação pública no país?

Pâmella Passos – Poucos dias após ter sido eleito, Lula fez um pronunciamento questionando a forma de os gastos públicos serem encarados. O petista destacou que a questão social precisa ser prioridade e não apenas os interesses do mercado financeiro. Sua fala foi suficiente para gerar críticas do mercado e mesmo entre seus apoiadores.

O fato relatado diz muito sobre o desafio da reconstrução da educação pública brasileira: construir e disseminar a concepção de que educação é investimento e não gasto. A naturalização de que devemos cumprir o teto de gastos, garantindo a responsabilidade fiscal em nome de uma irresponsabilidade social e cidadã, é o ponto crucial a ser enfrentado.

Há diferentes interesses e concepções de educação no amplo arco de apoio que garantiu a vitória presidencial ao PT. Na base dessas divergências está a concepção sobre a origem dos recursos: irá o terceiro governo Lula ampliar as parcerias público-privadas e priorizar recursos públicos para instituições privadas, como fez em programas nos quais o governo federal pagava bolsas na rede particular de ensino, ou Luiz Inácio retomará o fortalecimento e o crescimento da rede pública, com o aumento de vagas, concursos e abertura de novas unidades?

A história recente do nosso país mostrou a importância dos órgãos públicos, sobretudo de produção de conhecimento frente aos piores momentos vivenciados durante a pandemia de covid-19, com a política de mortes do governo federal. A despeito da falta de incentivo e respaldo, instituições como a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz seguiram na produção de vacinas, inclusive liderando importantes colaborações científicas internacionais.

Relembrar essa realidade é afirmar como o investimento estrutural na educação pública é a garantia de sobreviver em tempos de crise. Em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak afirma que adiar o fim do mundo é poder contar mais uma história, é questionar caminhos únicos. O financiamento da educação pública brasileira dependerá de o governo eleito questionar a forma única de encarar o direcionamento dos recursos da União. Mais do que nunca, precisaremos afirmar que a educação não é mercadoria; ela é um investimento social do patrimônio nacional.

É tempo de recuperar e investir no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, de estimular e fomentar os conselhos de educação em diferentes esferas e garantir um monitoramento democrático da gestão educacional. É urgente resgatar a eterna luta pelos 10% do PIB na educação pública. É tempo de ser feliz de novo, e isso implica defender e fortalecer a educação pública de qualidade, gratuita, laica, democrática e promotora de direitos.

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Rodrigo Manoel Dias da Silva (Foto: Arquivo pessoal)

Rodrigo Manoel Dias da Silva é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, é mestre e doutor em Ciências Sociais pela Unisinos. Suas pesquisas versam sobre sociologia da educação e políticas educacionais. Entre suas publicações, destacam-se: "Experiência e subjetivação política nas ocupações estudantis no Rio Grande do Sul" (Estudos Avançados, v. 34, p. 409-424, 2020) e "Questões urbanas e a agenda formativa da educação patrimonial" (Educação e Cultura Contemporânea, v. 16, p. 392-411, 2019).

IHU – Qual é seu diagnóstico da gestão de Jair Bolsonaro na área da educação?

Rodrigo Manoel Dias da Silva – A gestão presidencial de Jair Bolsonaro para a educação foi incapaz de produzir uma agenda coordenada para o enfrentamento das principais questões que afetaram o setor no último quadriênio. A educação brasileira é marcada por desigualdades persistentes e históricas, cenário que recrudesceu a partir de 2020 com a pandemia de covid-19. Os indicadores de abandono escolar, de distorção idade-série, de aprendizagens parciais e de exclusão digital evidenciam a ausência de ações governamentais capazes de qualificar o direito à educação e às experiências escolares em nosso país.

O Ministério da Educação sofreu com cortes rigorosos em sua estrutura orçamentária, em diversos momentos inviabilizando a atividade educacional pública no Brasil, e com a fragilidade na condução política do Ministério marcada pela rotatividade de ministros e pela falta de foco estratégico na produção de uma agenda consistente para a área. Para um mandato de quatro anos, tivemos a indicação de cinco ministros, a saber: Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Milton Ribeiro e Victor Godoy, além de Carlos Decotelli que nem chegou a assumir por inconsistências em seu currículo acadêmico.

A pauta destes ministros foi em muito impregnada por questões ideológicas, sem rigor e cientificidade, caso da reincidente crítica ao pensamento de Paulo Freire e à agenda moralista de Weintraub. O episódio recente de bloqueio nos recursos do MEC e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES foi a ponta do iceberg, foi o triste fim de um governo em que a educação esteve longe de ser prioritária.

Sem articulação

O governo também foi incapaz de dialogar e articular-se com outras instâncias federativas, sobretudo com os governos estaduais. A falta de coordenação política e pedagógica fez com que a experiência de isolamento social e as atividades letivas domiciliares próprias do tempo pandêmico fossem caóticas e perversas, sobretudo aos estudantes menos favorecidos economicamente. A ausência de diálogo e coordenação em pautas educacionais com estados e municípios igualmente revela a dificuldade deste governo em construir um modelo educacional capaz de superar ações fragmentadas e descontínuas.

Educação superior

A educação superior igualmente viveu quatro anos muito difíceis. Observamos diferentes tipos de ataques à universidade, à formação qualificada em nível superior, assim como o desinvestimento em programas estruturantes ao setor. A educação superior pública experimentou profunda crise financeira evidenciada por reiteradas manifestações públicas de reitores a respeito do risco de continuidade de suas atividades pela falta de recursos básicos.

Para o setor privado e comunitário, verificou-se uma desregulamentação da educação superior privada direcionada à mercantilização absoluta e ao estímulo a um mercado privatista sem qualidade e de larga escala para cursos de graduação, principalmente. Além do exposto, há que se considerar o desinvestimento em ciência e tecnologia, acrescido de constantes posicionamentos negacionistas e anti-intelectualistas oriundos de ocupantes do alto escalão do governo.

IHU – Como reconstruir a educação pública do país diante do presente cenário?

Rodrigo Manoel Dias da Silva – Não é uma pergunta fácil de responder. O desmonte da educação básica ofertada nas redes públicas e o abandono da educação superior e da pesquisa científica no país configuram um cenário muito delicado às novas administrações – federal e estaduais. Deve ser feito um profundo diagnóstico da realidade educacional brasileira, promovido em diálogo com instituições engajadas em propósitos de qualificar a educação nacional, conhecendo e elucidando características e perfis regionais, os diversos impactos da pandemia sobre a educação, os resultados educacionais recentes e as estratégias já desenvolvidas em estados (principalmente) no ciclo 2020-2022.

Muito importante é o desenvolvimento de iniciativas de escuta à sociedade civil e aos profissionais da educação atuantes em diferentes segmentos. Nenhuma plataforma de ação reconstrutiva terá êxito se não superar o bloqueio comunicacional vigente e mobilizar-se à escuta das comunidades educacionais brasileiras.

Temos discutido que as principais estratégias governamentais vigentes a partir de 2023 devem atentar-se a três dimensões fundamentais: a repactuação de aprendizagens, as condições psíquicas e socioafetivas de professores e estudantes em sua experiência de retorno à escola e profundas discussões a respeito da formação inicial de professores. A educação deve ser um projeto democrático orientado por valores republicanos. Para tal, devemos reconhecer os cenários do “futuro apagão” de docentes e os necessários investimentos para assegurar a viabilidade e relevância da escola.

Movimentos semelhantes devem ocorrer na educação superior. É fundamental a regularização dos repasses orçamentários às instituições públicas, mas igualmente fundamental é a contenção da corrida privatista da educação superior, predominantemente ocorrida em cursos a distância, mal avaliados e desprovidos de qualidade acadêmica. A educação superior é parte fundamental de um projeto de nação. Temos que fortalecer programas semelhantes ao Prouni e ao Fies, garantir a manutenção de parâmetros de qualidades nas instituições públicas e investir em ciência e tecnologia para um mundo melhor.

IHU – Nos governos petistas anteriores, o acesso à educação universitária e o investimento nas instituições públicas foram destaques. Porém, atualmente há um déficit na educação básica. Diante do atual contexto, qual deve ser a maior prioridade nos investimentos em educação pública?

Rodrigo Manoel Dias da Silva – Por mais difícil que pareça, não pode parecer uma questão de escolha. Temos indicadores de educação básica ainda precários, que retrocederam na pandemia, mas temos que robustecer a educação superior para a criação de alternativas ao desenvolvimento social e econômico e para a superação das desigualdades locais e regionais.

A discussão orçamentária deve ser organizada para atender as demandas urgentes da educação básica e, crescente e vigorosamente, investir em educação superior – graduação, mestrado e doutorado. Nosso número de graduados, mestres e doutores é inferior à média dos países que possuem patamar de desenvolvimento parecido com o nosso. Há muito a ser feito nas duas frentes.

IHU – Quais os maiores desafios para o financiamento da educação pública?

Rodrigo Manoel Dias da Silva – O conteúdo presente no Novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) oferece avanços promissores às políticas que virão, principalmente porque, pela Lei nº 14.113/2020, o fundo se faz permanente. A atuação do Congresso Nacional, especialmente da Frente Parlamentar da Educação, do Conselho Nacional de Educação – CNE, da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – Undime e da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação – UNCME, no atual quadriênio revela as potencialidades de suas atuações para novos acordos a ampliar investimentos em educação e fiscalizar, com correção e idoneidade, o financiamento público e privado ao setor.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Rodrigo Manoel Dias da Silva – Para concluir, retomaria um livro clássico para o exame das políticas educacionais brasileiras, intitulado Educação não é privilégio, de Anísio Teixeira. Temos uma longa história de educação seletiva, desigual e excludente, que se mostrou muito mais aguda durante a pandemia de covid-19. A migração de modelos de ensino e aprendizagem aos ambientes digitais, tanto na educação básica quanto na superior, acentuou traços de exclusão digital e evidenciou a principal marca dos últimos três anos letivos: as aprendizagens parciais. As aprendizagens devem ser centrais nas propostas mais estratégicas para a próxima gestão.

Obra de Anísio Teixeira, em edição da UFRJ (2007) | Foto: divulgação

Porém, não necessariamente as aprendizagens são medidas por avaliações de larga escala, e sim nas relações de aprendizagem ancoradas nos territórios, em escolas de tempo integral e no diálogo com estudantes e comunidades escolares. Parafraseando Anísio Teixeira, não mais uma escola voltada à formação dos “privilegiados”, mas uma escola inclusiva, cooperativa e justa. Uma escola capaz de valorizar e desenvolver aprendizagens a partir de uma ecologia de saberes, em sintonia e respeito com cidades, campos e territórios diversos. Uma escola que eduque e transforme.

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