Equipe de transição vê ‘destruição de qualquer projeto de educação no país’, inviabilização orçamentária do MEC e FNDE transformado em balcão de negócios por Bolsonaro.
A reportagem é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 01-12-2022.
Eliezer Pacheco é um dos coordenadores do conselho que, ao lado da equipe de transição do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a área da educação, tem se debruçado sobre o saldo que o governo de Jair Bolsonaro (PL) deixará aos novos gestores do Ministério da Educação (MEC). Ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Pacheco foi titular das secretarias de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) do MEC e de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Graduado em História pela Universidade de Santa Maria, com mestrado nesta área e especialização em Ciência Política pela UFRGS, Pacheco foi secretário de educação de Porto Alegre e de Canoas. Ele enfatiza que a transição na pasta segue a orientação de todas as demais áreas – ou seja, diálogo amplo com a sociedade, escuta atenta a todos os segmentos. Mas destaca que houve uma desestruturação total do MEC como ação deliberada de um “governo declaradamente inimigo da educação”.
Os dados levantados até aqui pelo grupo de trabalho da Educação na transição, segundo ele, não são nada animadores.
Nesta entrevista exclusiva ao Extra Classe, Pacheco admite que o país terá que avançar muito para ter uma educação de acordo com as necessidades do país e do povo brasileiro e diz que a prioridade é “arrumar a casa”. “Estou convicto que os brasileiros serão surpreendidos com políticas ousadas na área da educação”, projeta.
Você integrou a equipe do MEC no primeiro governo de Lula. Se na época, como um todo, se falava em uma herança maldita, o que dizer das atuais circunstâncias em que o presidente eleito assumirá em janeiro?
É muito mais grave. Há um processo de desestruturação total do Ministério da Educação e pelo que eu ouço também de outros ministérios. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) está destruída; o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) está debilitado, mas resiste porque tem um quadro funcional permanente muito qualificado. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão central para o financiamento da políticas públicas de educação virou um balcão de negócios. Isso sem contar uma total inviabilização orçamentária da pasta e a gestão direta do MEC que está muito desqualificada. Grande parte dos dirigentes estão lá por questões religiosas. Não por questões políticas ou técnicas, o que seria legítimo. Mas, nem isso. É gente que está lá por indicação de pastores.
Como a rotatividade de ministros e os cortes de verbas afetam o MEC?
No período Lula houve uma estabilidade. Teve o primeiro ano com o Cristóvam Buarque, mas logo depois assumiu uma equipe comandada por Tarso Genro que, ao sair para cumprir outras tarefas, foi substituído pelo seu próprio secretário-executivo, Fernando Haddad. Em educação, como não existe políticas a curto prazo, na melhor das hipóteses elas se dão a médio prazo, essa estabilidade. Essa continuidade foi bastante importante. Isso, além da disponibilização de recursos necessários – o orçamento na época em que ele (Lula) assumiu era R$ 16 bilhões, no final do primeiro mandato estava em R$ 96 bilhões e, com a Dilma, chegou a R$ 106 bilhões –, permitiu que se planejasse e executasse com eficácia muito maior. Eu mesmo, na Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica estive quase sete anos. Havia políticas, recursos financeiros para as efetuar e o tempo necessário.
A equipe de transição para a área da educação tem uma maioria de integrantes formalmente designados e voluntários. Como é feito esse trabalho?
Integro um conselho mais amplo que emite as opiniões políticas e tem uma equipe mais executiva que assume funções mais diárias, com tempo quase integral em Brasília. O papel da transição não é o papel de ser governo. A equipe de transição está levantando dados, elementos, as armadilhas que estão montadas, inclusive, para repassar para a futura equipe que vai dirigir o MEC. É na fase em que estamos que se observa a total destruição de qualquer projeto de educação no Brasil. Só na educação infantil, antes dos últimos cortes, teve um de 96%. Dias atrás, vimos um desvio de R$ 200 milhões para as Forças Armadas, para o Ministério da Defesa.
Como explicar o remanejo de verbas de áreas essenciais para as forças armadas?
Teve ainda em torno de R$ 140 milhões do SUS para o combate a pandemia que foram também para gastos militares. Aí nós vamos ter para 2023, pela primeira vez na história, um orçamento para a Defesa superior ao da Educação. Para um país que não está em guerra, envolvido em nenhum conflito, é no mínimo uma distorção. Tudo isso demonstra uma hostilidade do governo Bolsonaro em relação a educação e, pelo que eu ouço, também com a saúde, com a ciência, com a cultura. O governo Lula foi o que mais investiu nas Forças Armadas no Brasil, mas nunca em detrimento da educação, da cultura, da saúde pública.
O senhor fala em desmontar armadilhas. Quais?
Há um desmonte total das políticas de inclusão do MEC. Com a extinção da Secretaria de Inclusão e Diversidade (Secadi), substituída por uma secretaria voltada para as escolas cívico-militares, se deixou de ter recursos importantes voltados para estudantes com algum tipo de deficiência intelectual, motora, visual. A política de Educação de Jovens e Adultos (EJA) foi também totalmente desmontada e deixou de ter recursos significativos. Isso não é de pouca importância, porque nós temos no Brasil algo em torno de 70 milhões de pessoas que não completaram a educação básica na idade adequada. São pessoas que foram excluídas do sistema educacional. Acrescente-se a isso a política de cotas que acaba agora no final do ano. Claro que cabe ao Congresso Nacional renovar ou não a política de cotas, mas o governo deveria estar encaminhando algo. Isso é uma armadilha terrível. Para o governo Lula, a política de cotas é muito importante.
E os efeitos da pandemia?
É outra questão que nos preocupa muito. Evidentemente, com a pandemia e falta de políticas para enfrentar a crise sanitária, nós tivemos uma defasagem enorme no aprendizado das crianças mais pobres, porque o ensino remoto agravou enormemente as desigualdades. Uma coisa é ser das classes mais altas e da classe média, que têm acesso a um celular bom, a um computador, e poder minimamente acompanhar aulas. Outra, é ser da periferia e não ter nem acesso à internet. Essa defasagem é um desafio enorme e deverá ser uma das primeiras coisas a ser enfrentada.
E a nova composição do Conselho Nacional de Educação? Também é uma armadilha?
Lógico! Como é que um governo sem legitimidade, porque perdeu as eleições no final do seu mandato, nomeia sete ou nove novos conselheiros? Eles também não têm legitimidade. É algo que vai ter que ser enfrentado.
Como o governo Lula vai lidar com isso?
Existem ideias. É uma questão legal e evidentemente tem que ser tratada como tal. Está sendo levantada até a ideia de extinguir o Conselho Nacional de Educação e criar o Conselho Federal de Educação com outra composição. Olha, isso nunca houve na história, independente do governo, o aparelhamento do Conselho Nacional de Educação. Isso nunca houve. Sempre foi por mérito que se indicaram as pessoas. Em todos os governos.
Considerando o que vocês já apuraram, quais os rumos possíveis para a educação?
Nos parâmetros que estão sendo orientados não só pela comissão de transição, mas no programa de governo, no Plano Nacional de Educação (PNE) que vai até 2024, por exemplo. Nós estamos fazendo um balanço do que foi feito, o que concretizamos, o que não concretizamos e que podemos ainda concretizar até 2024. O PNE é uma referência fundamental por ser fruto de uma discussão com a sociedade. Outro parâmetro fundamental é a visão sistêmica da educação. Isso é, da creche à pós-graduação. Os problemas da educação têm que ser resolvidos em seu conjunto. É como compreendemos. Não tem que se resolver um problema em detrimento de outro. Por exemplo, para enfrentar não só a defasagem de aprendizagem a que me referi antes, mas o próprio déficit de qualidade da educação básica brasileira, que é notório, nós precisamos da participação muito intensa das universidades e de todos os institutos federais. É impossível enfrentar essa questão sem essa participação.
Por quê?
Nós não precisamos recorrer a ONGs. Temos uma belíssima rede pública de universidades e institutos federais, além das privadas e comunitárias sérias que também podem ser engajadas, chamadas para esse esforço. Então, nós vemos a necessidade de uma grande mobilização envolvendo todo o sistema educacional e a sociedade.
Após o golpe contra Dilma Rousseff, Temer alterou em 2017 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma mudança na estrutura do ensino médio. Isso poderá ser revisto?
É um terceiro parâmetro. Isso não é uma hierarquia, estou apenas relatando. Recuperar o ensino médio que, se já vinha de uma crise brutal, e que nessa reforma imposta sem maior debate com a sociedade, não responde as nossas necessidades. Foi uma reforma baseada em uma visão puramente liberal e empresarial da educação. Nós precisamos repensar o ensino médio. Temos uma excelente referência que é o ensino médio dos institutos federais. Não precisamos ir longe para procurar. Os institutos federais, pelas avaliações internacionais, estão entre as melhores escolas do mundo. A base principal deles é o ensino médio integrado. Essa tem que ser a nossa referência. O ensino médio, não vou usar a palavra modelo porque não é adequada, tem que ter como referência aquilo que é praticado hoje nos institutos federais que deverão, inclusive, ser chamados para ter uma participação mais intensa no diálogo, na relação com as redes estaduais de ensino médio.
A questão do ensino integral?
Uma referência. A formação humana integral. O papel do Estado é formar cidadãos e cidadãs que poderão ser técnicos, ser poetas, ser filósofos. Isso se dá com uma formação humana integral. Mesmo quando nós falamos em ensino técnico, nós estamos falando de ensino médio integrado. A educação integral em tempo integral, a maior permanência possível em uma escola, e nós tivemos uma excelente experiência com o Mais Educação, tem que ser um objetivo a ser buscado. Outra referência importante é a formação de professores. Temos uma realidade em que muitos professores estão sendo formado por universidades privadas através do sistema de EaD. Há uma defasagem enorme em termos de aprendizagem e uma qualificação que deixa a desejar. O professor é o principal elemento do processo de aprendizagem. Por maior tecnologia que se utilize, ele é central e tem que ser valorizado e receber a formação adequada. Se ele não receber a formação adequada, não é culpa dele. O Estado vai ter que suprir, desenvolver políticas arrojadas de formação para os professores já em atividade.
Lula tem afirmado que o Prouni e o Fies vão retornar com força. Além dessas políticas educacionais, há no horizonte outras que possam impactar na educação?
Acho que nesse momento inicial o esforço será no sentido de primeiro, viabilizar. Que as universidades funcionem, que o ensino básico funcione, que o ensino médio funcione, que as escolas infantis funcionem. Reestabelecer a solidez de entidades importantíssimas para a educação brasileira como o Inep, a Capes. Esse primeiro momento vai ser, me parece, de colocar a casa em ordem e pensar novos desafios para a educação. O principal, acho, é ampliar a educação integral e em tempo integral. No governo anterior, na metade, atingimos índices bons, mas tem que ser muito ampliado ainda. Segundo, é resgatar as políticas de grande impacto que já tivemos. Prouni, Fies. Não podemos esquecer também do Ciência sem Fronteiras que colocou estudantes de universidades brasileiras nas melhores universidades do mundo.
Lula na campanha afirmou que será preciso fazer no século 21 os investimentos em educação que não foram feitos no século 20 e que seu objetivo é fazer o país passar a exportar conhecimento. Como a equipe de transição trabalha para que isso se concretize?
Como eu falei, em um primeiro momento, a equipe que assumir o MEC vai ter que colocar ordem na casa. O governo vai ter que, através da sua equipe econômica, repensar o orçamento e tentar através do Congresso fazer uma repactuação. É colocar o trem nos trilhos. Mas, registre que o presidente Lula na área da educação assume como autoridade muito grande. Ele fez uma revolução. Foram 18 novas universidades; foram cerca de 300 campi de institutos federai; a criação do Fundeb que injetou R$ 4 bilhões na educação básica, o Prouni, o Reuni que dobrou as vagas nas universidades já existentes, o Ciência sem Fronteiras. Certamente eu vou esquecer várias iniciativas porque foram muitas. É um presidente que já comprovou o seu profundo comprometimento com a educação e a sua missão de como enfrentar desafios e superá-los.
Há otimismo, então?
Eu estou convicto que certamente os brasileiros serão surpreendidos com políticas ousadas na área da educação. Sabemos que temos muito que avançar para ter uma educação de acordo com as necessidades do país e do povo brasileiro. Na verdade, vou te dizer, nós vamos reorganizar a casa depois de um governo declaradamente inimigo da educação. Não foi inimigo no discurso, o foi na medida que tentou desestruturar todas as bases da área.
Que lição fica desse período para a sociedade brasileira?
Vamos ter que ter uma preocupação central com uma cultura democrática e uma cultura de paz. O bolsonarismo injetou dois vírus perigosos. O vírus do autoritarismo e o vírus da violência. A educação brasileira não vai ter que se preocupar só com os seus conteúdos e métodos. Vai ter que ter como fio condutor o fortalecimento e o desenvolvimento dessas culturas democrática e de paz. No nosso país, isso não é pouca coisa. Tivemos mais de 300 anos como colônia e, em 388 anos, convivemos com a escravidão. São quase 400 anos de latifúndio. Tudo isso gerou na população brasileira uma série de preconceitos e sentimentos negativos que estavam sublimados, mas que o Bolsonaro liberou. O fascismo passou a ser uma realidade no mundo político brasileiro.