O projeto bolsonarista “é uma força despolitizante porque pretende transformar a sociedade brasileira em algo mais próximo da sociedade dos EUA”, enquanto o lulista “é apenas o de resistência”, diz o filósofo
A analogia entre “garimpo e indígenas” é o que melhor explica não só o resultado do primeiro turno das eleições, mas os “afetos” que moveram uma parcela significativa da população brasileira em suas decisões políticas no último pleito. É com essa imagem que Hilan Bensusan analisa e comenta a conjuntura eleitoral deste ano. “O garimpeiro é exatamente o modelo da prosperidade buscada pelos próprios meios enquanto o indígena é o modelo da confiança nos demais, nas soluções coletivas. Uma parte considerável do Brasil – talvez a maioria – está com o garimpeiro nesse embate, mesmo se não apoie os garimpeiros reais em condições específicas. Penso que o modelo do garimpeiro venceu o do indígena. Nenhuma vitória é irreversível, mas essa parece ser a situação hoje”, ilustra.
Segundo ele, essa visão não pode ser reduzida somente aos brasileiros de classe alta. Em alguma medida, constata, “todo mundo comprou o modelo do garimpeiro, e o ‘e daí?’ que vem com ele”. As classes populares, comenta, “querem que os políticos as deixem em paz para poderem competir entre si. A sociedade brasileira talvez tenha se aburguesado – não porque melhorou suas condições de vida, mas porque comprou o modelo de vida da burguesia. Trata-se daquilo que Pasolini diagnosticou como a vitória final do fascismo: todos pensam da mesma maneira, querem riqueza pessoal, seu quinhão crescente de recursos naturais, seu lugar ao sol”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Bensusan destaca que um dos pontos que está em jogo no país “é um modelo estadunidense de vida social. Isso implica espaços cada vez mais privados, menos direitos, mais controle por parte de corporações e governo, mais privatizações, mais armas, mais de um modelo de salvação coletiva que não passa por partidos ou políticas públicas, mas por igrejas e associações privadas, mais competição amortizada pela religião e menos inteligência coletiva”.
Hilan Bensusan
Foto: DGArtes
Hilan Bensusan é graduado em Filosofia pela Universidade de Brasília – UnB, mestre pela Universidade de São Paulo – USP e doutor pela Universidade de Sussex. É editor da revista Das Questões, mantém o grupo de pesquisa e discussão Anarchai e leciona na UnB.
IHU – Nesse Brasil dividido, o que realmente está em disputa?
Hilan Bensusan – Uma das coisas que está em jogo é um modelo estadunidense de vida social. Isso implica espaços cada vez mais privados, menos direitos, mais controle por parte de corporações e governo, mais privatizações, mais armas, mais de um modelo de salvação coletiva que não passa por partidos ou políticas públicas, mas por igrejas e associações privadas, mais competição amortizada pela religião e menos inteligência coletiva.
O desligamento de mecanismos da inteligência coletiva implica a incapacidade de projetar futuros; trata-se apenas de viver de um modo alheio aos presságios e aos vestígios compartilhados. O bolsonarismo é uma força despolitizante porque pretende transformar a sociedade brasileira em algo mais próximo da sociedade dos EUA, em grande parte estimulado por companhias americanas que buscam um ambiente mais ajustado para seus negócios no Brasil. Mas não apenas isso; há outras forças que estão associadas à automação (privada) e que se interessam por avançar nessa direção, o que faz a direção ser quase inevitável.
O projeto de Lula é apenas o de resistência. O que dá força ao projeto de Lula, no entanto, é a possibilidade de uma gradual aproximação não apenas da China (e um fortalecimento do BRIC), mas também de um modelo chinês. O modelo é devastador para o planeta, mas cultiva uma certa capacidade de inteligência coletiva. No limite, há apenas essa possibilidade na geopolítica atual e, por consequência, na macropolítica atual. Porém o projeto de resistência de Lula abre a possibilidade também de uma possível geopolítica decolonial, ainda que ninguém saiba muito bem como os projetos decoloniais que fermentam de modo crescente na academia possam se traduzir em macropolítica ou em geopolítica.
IHU – Na guerra de narrativas e disputas de visões de mundo, evoca-se com frequência a liberdade. Que conceito de liberdade é esse e quais suas fragilidades, colocando em perspectiva suas consequências para vida em comum e num só planeta?
Hilan Bensusan – É um conceito de liberdade que deixa a propriedade privada intocada – e assim demole gradualmente a capacidade de qualquer inteligência coletiva. Trata-se de uma noção de liberdade que é estranha à liberdade que conduz à responsabilidade. Talvez todo o drama da direita e da esquerda, no cenário clássico da modernidade, seja em torno da propriedade privada como destituidor dos mecanismos de inteligência coletiva soberana (é certo que o capital é uma inteligência coletiva, e é também certo que a tecnologia se tornou uma maneira dele seduzir o pensamento humano). A liberdade entendida da maneira associada à propriedade privada se tornou um grande entrave a que experimentações de outros arranjos coletivos sejam possíveis. Talvez o caminho seja exorcizar essa noção – mas ninguém sabe como fazer isso explicitamente na mídia e no jogo (macro)político.
IHU – Que afetos foram mobilizados nessa eleição e por quê?
Hilan Bensusan – Acho que o afeto “e daí?” (equivalente ao “me ne frega”, de Mussolini). Ou seja, “e daí?” significa “que me deixem em paz, que não me cobrem responsabilidades para além daquela, tão difícil, de manter meu bolso e minha família”. Quando um presidente se isenta, a lição é que todos podem se isentar. Acho que é disso que se trata – o “me ne frega” atrai. A ideia é deixar de cobrar das pessoas, deixar que elas pensem que já fizeram a parte delas. Para aqueles que têm algum poder (são garimpeiros, são pais de família na supremacia masculina, são pequenos empresários como motoristas de táxi ou de aplicativo, para quem se garantiu em um emprego público ou privado por muito tempo), o “e daí?” é um afeto muito mobilizador: que me isentem, que parem de me obrigar a negociar.
IHU – Que sinal foi emitido com o resultado do primeiro turno das eleições? Que relação pode haver entre esse sinal e outros tantos sinais de que estamos fazendo Gaia doente?
Hilan Bensusan – Ninguém se importa muito com Gaia. Ninguém a percebe. Só se percebe o salve-se quem puder que sobra quando vestígios e presságios são sistematicamente postos de lado. O modelo da automação privada é péssimo para Gaia, mas todos só se importam com seus descendentes, humanos e não humanos (maquínicos).
Os votos de Bolsonaro são também votos de quem quer se isentar de preocupações ecológicas. Apoiar o garimpo e não os indígenas: o garimpeiro é exatamente o modelo da prosperidade buscada pelos próprios meios enquanto o indígena é o modelo da confiança nos demais, nas soluções coletivas. Uma parte considerável do Brasil – talvez a maioria – está com o garimpeiro nesse embate, mesmo se não apoie os garimpeiros reais em condições específicas. Penso que o modelo do garimpeiro venceu o do indígena. Nenhuma vitória é irreversível, mas essa parece ser a situação hoje.
IHU – Vivemos no Brasil uma democracia burguesa? Por quê?
Hilan Bensusan – Porque a burguesia nunca é colocada em questão. As instituições da burguesia (tribunais, exército, polícia, parlamento etc.) são sacrossantos. Isso torna a democracia possível apenas em uma baixíssima intensidade. O projeto de resistência à força do capital (que conduz a burguesia) não faz mais do que adiar alguns processos – a resistência na democracia burguesa não pode fazer mais do que secar gelo. A força da automação (do trans-humanismo triunfante, da realização do projeto cristão de almas que dispensam seus corpos) é muito grande para ser interrompida por projetos de leis ou medidas provisórias...
IHU – Mesmo considerando a nossa democracia burguesa, devemos reconhecer que o percentual de votos bolsonaristas não decorre somente de uma elite burguesa. Como o interpretar o bolsonarismo na classe média e nas mais populares?
Hilan Bensusan – Todo mundo comprou o modelo do garimpeiro e o “e daí?” que vem com ele. As classes populares querem que os políticos as deixem em paz para poderem competir entre si. A sociedade brasileira talvez tenha se aburguesado – não porque melhorou suas condições de vida, mas porque comprou o modelo de vida da burguesia. Trata-se daquilo que Pasolini diagnosticou como a vitória final do fascismo: todos pensam da mesma maneira, querem riqueza pessoal, seu quinhão crescente de recursos naturais, seu lugar ao sol.
IHU – A campanha de Lula contou com o apoio de cientistas, intelectuais e artistas, mas, ainda assim, Jair Bolsonaro conseguiu mais votos do que se esperava. Isso revela que a esquerda, a academia e a classe artística andam num ritmo enquanto o Brasil profundo anda noutro? Ou é o Brasil profundo que está em descompasso com a arte, a intelectualidade e a ciência?
Hilan Bensusan – Sim, em um outro ritmo. O Brasil profundo não tem tempo mais para arte que não seja a facilidade da televisão e das séries – e o entretenimento é fabricação de pessoas – e nem para a intelectualidade ou a ciência. O terraplanismo abre o caminho para o ceticismo quanto ao aquecimento global. Melhor que não haja tutela, que seja possível se libertar de toda responsabilidade. No modelo do garimpeiro, o modelo por ora vencedor, não há espaço para que escolhas sejam pautadas por estudos, reflexões ou teorias. O terraplanismo mostra que não há inteligência coletiva, trata-se de um exercício de suspeita sem justificação.
IHU – O que pode explicar 42,80% dos votos em Jair Bolsonaro no primeiro turno, no Amazonas, ícone da floresta devastada, do genocídio indígena e que teve sua população sufocada por falta de oxigênio durante a pandemia de Covid-19?
Hilan Bensusan – O modelo do garimpeiro, eu acho. Trata-se de uma forma renovada de racismo (talvez nem tão renovada). O modelo do garimpeiro é o modelo da solução cada vez mais individual e uma liberdade que requer que toda responsabilidade seja exorcizada. Entre o garimpeiro e o indígena, os brasileiros de hoje (sobretudo os homens, por isso o masculino) se identificam com o garimpeiro. A indígena, vivendo em aldeias em regime coletivo, parece uma inconveniência – não necessariamente a indígena, mas o modelo que ela exemplifica.
IHU – Mesmo com o avanço de expoentes do bolsonarismo no parlamento brasileiro, também vimos a eleição de indígenas, expoentes do ambientalismo global, negros, LGBTQIA+, mulheres etc. O que a eleição desses sujeitos revela?
Hilan Bensusan – Há resistência, e ela cresceu um pouco depois de quatro anos de bolsonarismo. Mas as eleições de governadores no Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul mostram que uma parte considerável do Brasil está bem com o “me ne frega” de Bolsonaro. O fenômeno é bem mais forte do que se pensava. Acho que Bolsonaro foi melhor nessas eleições do que em 2020 – a força que ele tinha em 2018 está de novo muito ativa.
IHU – A experiência da pandemia de Covid-19 foi ímpar na história e achávamos que sairíamos diferentes dela. Porém, passados mais de dois anos e meio da chegada do coronavírus ao Ocidente, vemos a ascensão da extrema-direita em muitos países, a resiliência do bolsonarismo nas eleições no Brasil e a persistência do negacionismo quanto à crise climática. Afinal, saímos de que forma da pandemia?
Hilan Bensusan – As pandemias em geral não têm consequências macropolíticas de curto prazo, ao contrário das crises econômicas, das guerras e das revoltas. O capital se aconchegou na extrema-direita: melhor assim, sem tantas concessões, sem tanta atenção a Gaia. O negacionismo climático é muito conveniente; é preciso mantê-lo pelo menos como uma alternativa macropolítica. Saímos da pandemia como entramos; é escandaloso, mas me parece inegável.
IHU – Como, diante das disputas e divergências que se expuseram nesse primeiro turno das eleições no Brasil, constituir uma cidadania terrana?
Hilan Bensusan – Não sei. Acho que a cidadania terrana é muito fraca diante do imperialismo cada vez mais forte e que vem associado à automação privada. A cidadania terrana foi irrelevante nessas eleições (majoritárias). Vão seguir sendo, a não ser que uma força antipropriedade, antiliberdade, no sentido corrente e decolonial, emerja. Depois do plebiscito de saída da constituição do Chile, das eleições francesas e do primeiro turno das eleições no Brasil e da popularidade de Milei, na Argentina, estou pessimista. Esse movimento decolonial virá, mas será melhor que ele se coloque à margem das democracias burguesas – uma Internacional Terrana tem que construir suas próprias instituições.
IHU – Que Brasil e que planeta o senhor vê logo ali na frente?
Hilan Bensusan – Vejo um país desigual, excludente e devastado. O planeta: uma floresta queimada.