No outono de 2020, 78% dos chilenos se declararam a favor de um processo de revisão constitucional, proposto em 2019 pelo presidente Sebastián Piñera em resposta às manifestações massivas que tomaram conta do país para exigir mais justiça social. A Constituição chilena, herdada de 1980 e redigida sob a ditadura do general Augusto Pinochet, foi, na época, alvo de muitas críticas.
A entrevista é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 09-09-2022. A tradução é do Cepat.
Em dezembro de 2021, a população chilena optou pela alternância no poder e elegeu um presidente de esquerda, Gabriel Boric. O projeto da nova lei fundamental, que a Assembleia Constituinte aprovou neste verão após um ano de trabalho, está alinhado com o programa progressista do novo chefe de Estado. Concede, de modo especial, mais direitos às populações indígenas e dá maior importância às questões ambientais e às questões de igualdade entre mulheres e homens. Também permite que o Estado intervenha para regular a economia e setores como a saúde ou a educação.
No entanto, no domingo, 04 de setembro, os eleitores rejeitaram esta nova Constituição por 62%. Carolina Cerda-Guzman, professora de Direito Constitucional da Universidade de Bordeaux, especialista em Chile e autora de uma tradução integral para o francês do projeto de Constituição, discute as razões desse retrocesso e as consequências para o país.
Como explica a rejeição da nova Constituição chilena?
A ampla margem do resultado soa como uma ducha de água fria, dada a vitória muito clara do “não” (“rechazo”, em espanhol) sobre o “sim” (“apruebo”). Mas, se analisarmos detalhadamente o número de eleitores nas três eleições que envolveram este processo de revisão constitucional, verifica-se, no entanto, uma certa consistência.
À pergunta “Você quer uma nova Constituição?”, 78% dos chilenos responderam que “sim” em 25 de outubro de 2020. Só que tendemos a esquecer que apenas 51% dos eleitores aptos a votar foram às urnas naquele dia, ou seja, 7,5 milhões de chilenos de um total de 15 milhões. No total, portanto, 5,8 milhões de eleitores votaram pela reforma da atual Constituição, em vigor desde 1980 e herdada da ditadura do general Augusto Pinochet.
Alguns meses depois, no segundo turno das eleições presidenciais, 55% dos eleitores aptos a votar foram às urnas. E Gabriel Boric venceu com 56% dos votos, ou seja, 4,6 milhões de votos.
A votação de 04 de setembro, após a qual a nova Constituição foi rejeitada, era obrigatória. A taxa de participação foi, portanto, muito elevada (85%). Resultado: mesmo com uma pontuação aparentemente baixa, o “sim” recebeu 4,8 milhões de votos. Isso é coerente com as votações anteriores, porque foram principalmente os eleitores de esquerda, portanto, com poucas exceções, os eleitores de Gabriel Boric, que defenderam o novo texto.
Se nos limitarmos à análise dos percentuais das diversas pesquisas, perceberemos que se superestimou a vontade de mudar a Constituição entre a população chilena e, ao contrário, se subestimou o conservadorismo que continua fortemente difundido entre a sociedade.
Poucos dias antes da realização do referendo, vários membros do Congresso americano escreveram no Twitter, Facebook e TikTok para exigir uma melhor regulamentação das fake news que circulavam sobre a nova Constituição chilena. O clima de desinformação que pairou durante a campanha teve impacto nos resultados?
Sebastián Valenzuela, professor da Universidade Católica do Chile, de fato mostrou em julho que o nível de desinformação sobre o novo texto constitucional havia sido maior do que o observado durante a eleição de Donald Trump, em 2016. A maior parte da mídia chilena adotou uma linha muito crítica em relação à convenção.
Além disso, os opositores do texto fizeram circular a ideia de que a nova Constituição abolia o direito de propriedade, o que provocou medo em muitas pessoas. No entanto, está indicado no artigo 78 que “toda pessoa, física ou jurídica, tem o direito de propriedade em todas as suas formas e sobre todos os tipos de bens”. A única exceção é para os bens “que a natureza tornou comuns a todas as pessoas e que a Constituição ou a lei declaram inapropriáveis”.
O texto também ratificou o direito de qualquer pessoa expropriada por razões de utilidade pública ou de interesse geral de ser indenizada “pelo preço justo”. Essa mudança de vocabulário foi aproveitada pelos opositores para despertar temores, quando a mesma disposição já existe na atual Constituição de forma um pouco diferente.
As muitas fontes de desinformação certamente trabalharam contra a nova Constituição, mas estão longe de serem capazes de explicar por si só os resultados da votação.
Existe uma divisão entre direita e esquerda nos resultados da votação?
Sim. A esquerda votou majoritariamente a favor da nova Constituição. Os apoiadores da primeira hora do processo permaneceram comprometidos com ele, mas os oponentes permaneceram hostis a ele e os indiferentes permaneceram não convencidos. A direita votou mais contra a nova Constituição.
Dito isso, é mais difícil identificar os motivos do “não”. Este campo inclui, por um lado, pessoas que, como muitas vezes acontece em referendos, aproveitaram a oportunidade para expressar sua oposição ao governo de Gabriel Boric. Também aglutina pessoas a favor de uma mudança na Constituição, mas em desacordo com o texto proposto. Finalmente, alguns são pura e simplesmente contra a revisão, mesmo que tenham escondido isso no início.
As máscaras agora caem. Entre os partidários do “não”, vários partidos de centro-direita, centro-esquerda e até de esquerda, bem como a coalizão de direita do ex-presidente Sebastián Piñera, Chile Vamos, anunciaram na noite do resultado do referendo que continuariam a trabalhar a favor de uma revisão da Constituição.
Por outro lado, o partido da extrema-direita do ex-candidato a presidente José Antonio Kast mostrou claramente sua recusa em continuar o processo e seu desejo de manter a Constituição herdada da ditadura.
Algumas disposições introduzidas na nova Constituição criaram resistências?
Dois pontos cristalizaram as tensões. Trata-se, em primeiro lugar, de tudo aquilo que está relacionado à questão da plurinacionalidade, isto é, essa ideia de que o Estado chileno pode ser composto por várias nações. O novo texto previa a adoção de novos direitos para os povos e nações indígenas, o reconhecimento de sistemas jurídicos autônomos, bem como o reconhecimento, mais simbólico, das bandeiras e emblemas dessa parcela da população.
O outro aspecto que suscitou preocupações diz respeito ao papel do Estado. Em todas as suas dimensões, a nova Constituição trouxe uma mudança completa da atitude do Estado em relação à economia e à sociedade. Ela organizou a transição de um Estado neoliberal para um Estado de direito social, mais intervencionista e capaz de impor regras e princípios de funcionamento em diversos setores: da educação à saúde, passando pela gestão da água, da energia ou mesmo do setor da mineração.
Alguns opositores do texto acenaram com o espantalho venezuelano ou boliviano para impedir esse desenvolvimento. Nem todos os que votaram contra a nova Constituição se opuseram frontalmente a uma mudança de atitude do Estado, porque essa demanda por um Estado mais social estava no centro da revolução de 2019. Mas o texto talvez esteja indo um pouco longe demais para aqueles que queriam que o papel mais ativo do Estado se limitasse a alguns setores-chave, como a educação e a saúde.
Sem nenhuma surpresa, a elite econômica se mobilizou contra isso. Mas este ponto também levantou temores em ambientes mais populares. Tomemos o exemplo do setor da mineração, de fundamental importância para a economia chilena: o Estado é proprietário dos minerais, mas tem a possibilidade de fazer concessões a empresas para explorá-los. Essas concessões não estavam necessariamente sujeitas a um controle aprofundado do Estado, mas o novo texto propunha voltar ao assunto com a inclusão de critérios mais ecológicos. Isso despertou, entre os trabalhadores do setor, uma apreensão sobre possíveis perdas de emprego associadas a essa gestão mais intervencionista.
O que vai acontecer agora? A vitória do “não” marca o fim do processo de revisão, ou há outros caminhos a explorar?
A atual Constituição indica, no artigo 145, que o fracasso de um referendo constitucional indica o retorno ao texto inicial. Mas rapidamente, na noite dos resultados, Gabriel Boric anunciou que organizaria uma reunião com todos os líderes dos partidos políticos para encontrar uma forma de dar continuidade ao processo. Não há mais texto algum que oriente o que vai acontecer agora.
O Partido Republicano de José Antonio Kast recusou a mão estendida e a coalizão Chile Vamos estabeleceu como condição uma reestruturação do governo. Apenas dois dias após o referendo, Gabriel Boric substituiu vários de seus ministros por personalidades mais centristas.
Se um processo de revisão constitucional for relançado, será liderado pelo Parlamento assim que os principais partidos tiverem definido as regras do jogo. Este projeto promete ser complicado para o atual Presidente, que tem uma maioria muito apertada na Assembleia Nacional, obtida graças a uma coalizão.
Se convencer, vejo duas opções: o trabalho de redigir um novo rascunho será confiado a uma comissão de especialistas, não eleitos. Seria um retrocesso em termos de legitimidade democrática. Ou o Parlamento decidirá apelar novamente a uma assembleia constituinte.
E é provável que neste caso certos termos mudem. Como o tempo urge agora, podemos imaginar, por exemplo, que os prazos sejam encurtados. Também é provável que não haja mais, ou em todo caso menos, cadeiras reservadas aos povos indígenas, e que as regras que foram estabelecidas para facilitar a eleição de candidatos independentes sejam mais restritas.
Acredita que o trabalho da Assembleia Constituinte deixou um legado?
Os debates que ocorreram ao longo deste ano permitiram avançar na questão da paridade política, que já é um dado adquirido. Infelizmente, isso não levou a avanços mais substanciais nos direitos das mulheres.
Também houve pontos positivos, e duradouros na minha opinião, em questões relacionadas à descentralização do Estado. O projeto de Constituição previa a criação de um Estado regional com, não mais regiões como hoje no Chile, e aliás na França, simples entidades administrativas dotadas de algumas competências específicas, mas regiões autônomas dotadas de orçamento próprio e de um parlamento, o que aproximaria o Chile de um Estado federal nos moldes dos Estados Unidos.
A necessidade de ouvir mais as regiões é um ponto sobre o qual já há quase um consenso no país. Por outro lado, tenho a impressão de que não ficará um legado forte em questões ambientais.
A manutenção, pelo menos por enquanto, da Constituição de 1980 impedirá Gabriel Boric de aplicar parte de seu programa?
De fato, é de se temer que a atual Constituição bloqueie as medidas anunciadas por Gabriel Boric e sua equipe. Uma batalha recente sobre a reforma do sistema de atribuição dos direitos de pesca ilustra esses riscos.
O governo apoiou a revogação da lei atual, que concede direitos de pesca ad aeternum e em grandes quantidades às empresas de sete grandes famílias chilenas, em detrimento dos pescadores artesanais. Essa revogação foi considerada inconstitucional pelos senadores com o argumento de que atentaria contra a liberdade econômica de alguns atores. Ela foi finalmente aprovada, mas com dificuldade.
Para superar os bloqueios ligados à atual Constituição, é possível modificar alguns pontos específicos com o apoio de quatro sétimos das duas câmaras parlamentares (57%). O presidente não tem esse apoio a priori, mas se a modificação à margem do texto existente for a única concessão dos partidos de direita, pode-se imaginar que essa seja a opção seguida.
Isso permitiria, ao fazer pequenos ajustes, por exemplo em questões sociais ou relacionadas às aposentadorias, a aplicação das medidas mais emblemáticas do programa de Gabriel Boric. Mas isso enterraria qualquer desejo de mudança mais profunda e manteria o Chile em um legado histórico do qual deve se livrar.