25 Julho 2020
"Não estamos diante de um doente mental que não pode ser responsabilizado por seus atos (situação que, por si, já é catastrófica), mas diante de alguém simplesmente mau e destituído de qualquer resquício de empatia e compaixão. 'E daí?', então, seria simplesmente a expressão espontânea de uma natureza pervertida", escrevem Zenon Lotufo Junior, filósofo, teólogo, analista transacional, doutor em Psicologia da Religião pela PUC-SP e autor de "Kind God, Cruel God: How Images of God Shape Belief, Attitude, and Outlook", e Francisco Lotufo Neto, doutor em Psiquiatria, professor associado da Universidade de São Paulo e da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da USP e do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Em sua coluna de 03 de maio último, Vera Magalhães (“O ‘e daí’ como política”) levanta interessantes questões sobre o papel dessa expressão em contextos nos quais ela revela problemas sérios de caráter; situações em que seu autor “coloca em risco a saúde pública”, “se esquiva de responsabilidade pelos seus atos” e, talvez o mais grave “demonstra num só ato sua absoluta ausência de empatia com os mais vulneráveis”. Embora a perspicaz jornalista não use o termo, temos aí sinais peculiares de psicopatia, sinais que, sugere Magalhães, são exibidos pelo presidente com o intuito de apresentar-se como um doente mental, como quem não tem condições de responder por seus próprios atos, ou seja, como alguém inimputável. A tese é, ao mesmo tempo, contundente e plausível, fazendo por merecer algumas considerações.
Se partirmos da hipótese, atualmente bastante encontradiça em meios acadêmicos, de que o ser humano tende, por natureza, a ser empático, compassivo (ver, p. ex., a coletânea organizada por Dacher Keltner, da Universidade da California em Berkeley, “The Compassionate Instinct”, ou “The Psychology of Compassion and Cruelty”, organizado por Thomas Plante, de Stanford, do qual participamos com um dos capítulos) a ausência dessas qualidades requer que se busquem explicações em fatores não biológicos, quer dizer, em causas psicológicas e socioculturais. Vejamos, ainda que à vol d’oiseau, algumas delas e como podem produzir os “e daí” da vida.
Herdamos das culturas que mais nos influenciaram, a crença de que o mundo é justo e que as pessoas recebem sempre o que merecem, visão que dota os acontecimentos de certa previsibilidade, além de explicar sofrimentos, tragédias e sucessos. A persistência dessas crenças e os problemas delas decorrentes levaram Melvin Lerner, durante muitos anos professor de Psicologia Social na Universidade de Waterloo, a dedicar muitos anos de sua vida aos aspectos psicológicos da justiça, sobretudo ao que foi chamado “Hipótese Mundo Justo” ou “Falácia Mundo Justo”. Lerner e pesquisadores que caminharam em suas pegadas realizaram grande número de estudos abordando várias áreas do comportamento humano sob o prisma dessa falácia. São especialmente interessantes, dentre essas pesquisas, as desenvolvidas por John T. Jost e Orsolya Hunyady, respectivamente das universidades de Nova York e Adelphi, apontando para o fato de que a cultura atual é permeada por ideologias que permitem às pessoas “justificarem e racionalizarem o modo com o as coisas são, de tal forma que situações sociais, econômicas e políticas atuais tendem a ser percebidas como justas e legítimas.”
Assim, o sentimento que naturalmente decorreria da presença de miséria e sofrimento pode ser desativado pela constatação panglossiana de que “Tout est pour le mieux dans le meilleur des mondes”. “E daí? Não tenho nada a ver com isso”, seria manifestação típica dessa racionalização. Em outro escrito, registramos que ideologias desse tipo funcionam como “lobotomias não invasivas”, considerando o parentesco destas com aquelas cirurgias que, para tranquilizar doentes psiquiátricos, destruíam áreas nobres de seus cérebros.
Mas nossa espécie é criativa quando se trata de encontrar nebulosas justificativas para comportamentos antissociais, moralmente reprováveis seja por comissão, seja por omissão. Quem estudou mais de perto essas contorções mentais foi um dos mais importantes psicólogos da atualidade, o canadense Albert Bandura, que propôs o conceito de “desengajamento moral” (“moral disengajement”) para analisar os processos aí envolvidos, identificando oito variações:
Ex. “Um homem deve lançar mão de todos os recursos disponíveis quando se trata de evitar que um filho corra o risco de ser condenado pela justiça”.
Ex. “E daí que morra muita gente nesta pandemia? Paralisar a economia é pior”.
Ex. “Não há por quê fazer tanto barulho por uma simples gripezinha”.
Ex. “É válido incentivar aglomerações durante a epidemia porque põe em evidência o direito de reunião”.
Ex. “Quilombolas são tão desprezíveis que não merecem ser tratados como seres humanos”.
Ex. “Vejo com bons olhos o fechamento do STF porque estou indignado pelo modo como me desautorizam”.
Ex. “Se um policial trabalha em um ambiente violento, ele não tem culpa se vez por outra mata um inocente”.
Ex. “Um militar não pode ser condenado por torturar alguém quando ele o faz sob ordens superiores e a prática é comum em seu meio”.
Passemos às explicações propriamente psiquiátricas. “Descaso pela segurança de si ou de outros. Irresponsabilidade reiterada” são duas das características apontadas pelo Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais, DSM-5, coerentes com a atitude “E daí?” e indicadoras de Transtorno da Personalidade Antissocial, padrão anteriormente referido como psicopatia ou sociopatia. A descrição das “Características Diagnósticas” assim inicia: “A característica essencial do transtorno da personalidade antissocial é um padrão difuso de indiferença e violação dos direitos dos outros” (realce nosso).
É relativamente farta a literatura científica que associa psicopatia (o termo ainda mais usado) ao sucesso nas áreas organizacional, política e militar, êxito explicável por certas características nada éticas, mas valiosas em circunstâncias nas quais competição é a palavra de ordem e o esprit du temps incensa o sucesso a qualquer preço. Martha Stout, autora de conhecida obra sobre sociopatia, observa: Estranhamente, alguns atos envolvem tal deterioração emocional que eles requerem a ausência de consciência, da mesma forma que a astrofísica requer inteligência e a arte requer talento. Com relação aos guerreiros que podem agir sem consciência, o tenente-coronel Dave Grossman escreve, em On Killing, “Chamemo-los psicopatas, cães pastores, guerreiros ou heróis, eles estão lá, constituem uma distinta minoria e, em tempos de perigo, uma nação precisa deles desesperadamente (“The Sociopath Next Door”).
Nesse contexto, Bolsonaro não estaria simplesmente representando um papel com vistas a parecer inimputável. Como ressaltam encomiasticamente seus asseclas, um de seus grandes méritos está em ser autêntico. Contudo – ponto para Vera Magalhães – há psiquiatras com irretocáveis credenciais acadêmicas que defendem a tese de que boa parte dos indivíduos rotulados como psicopatas não podem ser considerados doentes. Em artigo publicado ano passado, sob o título “Cruel, Immoral Behavior Is Not Mental Illness”, os professores norte-americanos James Knoll e Ronald Pies explicam: É altamente desconfortável aceitar a noção de que extremo egoísmo, ressentimentos e tendências infames são simplesmente parte do amplo espectro da natureza humana. Mas esses traços têm estado conosco desde o alvorecer de nossa espécie. Esse tipo de turbulência psicológica pode ser tratado por profissionais de saúde mental, mas apenas com envolvimento e dedicação de um ‘paciente’. Indivíduos coagidos, ameaçados ou desinteressados tendem a se mostrar pacientes muito problemáticos.
Pode-se pensar, então, que não estamos diante de um doente mental que não pode ser responsabilizado por seus atos (situação que, por si, já é catastrófica), mas diante de alguém simplesmente mau e destituído de qualquer resquício de empatia e compaixão. “E daí?”, então, seria simplesmente a expressão espontânea de uma natureza pervertida.
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E daí? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU