Para o professor, “uma visão tacanha da existência nos acostumou a colocar cada reino e cada espécie dentro de escaninhos separados e antagônicos” e isso precisa ver revisto pela própria sobrevivência humana
Evando Nascimento vem do mundo das letras, mas não aceita essa perspectiva moderna que coloca as ciências separadas e quase incomunicáveis, preferindo circular para além de livros e bibliotecas. Aliás, é dessa mesma perspectiva moderna que deriva a ideia de que o mundo se divide entre nós, os humanos racionais, e os outros bichos e plantas. Para o professor, isso nada mais é do que “visão tacanha” que coloca seres humanos e outras espécies em competição antagonista. “Alguém consegue viver sem cultivar plantas e/ou criar animais, direta ou indiretamente? O que seria da polinização sem a ajuda de insetos e, também, dos humanos? O que aconteceria com os herbívoros que nós humanos devoramos (aves e gado) sem as deliciosas plantinhas?”, provoca, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Se só respondêssemos a essas indagações já chegaríamos a reflexões interessantes. Mas Evando vai além e, na perspectivava da fitoliteratura e da zooliteratura, provoca a pensarmos em animais, vegetais e outros organismos, como fungos, vírus e bactérias, como outras chaves para ver e interagir no mundo. Afinal, todos dividimos o mesmo planeta, mas parecemos ter usos bem distintos. “Não há vivente ou não vivente que não tenha seu mundo particular, o qual compartilha com outros reinos e espécies. Há um verso de Cabral de Melo Neto que eu amo citar: ‘Viver/ é ir entre o que vive.’ Eu acrescentaria: é ir entre o que vive e, também, entre o que aparentemente não vive”, explica.
Para o professor, “há um entrelaçamento fundamental entre as formas orgânicas e inorgânicas de existência”. Embora seja salutar pensar nesse movimento como um processo de alteridade, a questão ainda vai além: trata-se de pensar na cooperação entre espécies, compreendendo plenamente a ideia de uma teia de vida que habita a Terra. “A teia vital se retroalimenta sem cessar, bastando observar o trabalho dos vermes, dos fungos e das bactérias, entre outros agentes”, aponta. “Ou aprendemos a lidar com essas ‘estranhas formas de vida’, que são as plantas, os animais, os fungos, as algas, as bactérias e até os vírus (estes, como se sabe, são um híbrido de vivo e de morto), ou pereceremos muito em breve como espécie”, completa.
Evando Nascimento (Imagem: reprodução YouTube)
Evando Nascimento é professor adjunto na Universidade Federal de Juiz de Fora – UJF, atuando na Graduação e na Pós-graduação em Estudos Literários. Seu trabalho se desenvolve nas áreas de Filosofia, Literatura e Artes Plásticas. É graduado pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, possui mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Nos anos 1990, completou sua formação em Paris, onde foi aluno de Jacques Derrida na École des Hautes Études en Sciences Sociales e de Sarah Kofman na Sorbonne. Realizou um pós-doutorado em Filosofia, sobre Benjamin e Derrida, na Universidade Livre de Berlim.
IHU – O senhor tem desenvolvido reflexões no campo literário, em particular nesse interesse seu relacionado à zooliteratura e fitoliteratura. Poderia nos detalhar como se deu a aproximação com esses campos?
Evando Nascimento – Utilizando uma metáfora vegetal, digo que o interesse não brotou do nada, foi antes uma longa germinação. Poderia começar com minha formação na graduação da Universidade Federal da Bahia, mas vou encurtar a história e demarcar 1999 como o ano no qual escrevi o primeiro ensaio que vai desencadear tudo o que farei nas décadas seguintes: “Uma literatura pensante: Clarice e o inumano”. Esse texto foi republicado com pequenas modificações no ano seguinte. Tal foi a matriz para o livro que publiquei em 2012, Clarice Lispector: uma literatura pensante (Civilização Brasileira), no qual me concentro na questão zooliterária, mas abordo também a fitoliteratura e até mesmo o papel das coisas e objetos, ou seja, o dito inorgânico, na ficção clariciana.
Tudo isso está ligado a minhas origens rurais na região do cacau, no sul da Bahia, e, também, a esse poema extraordinário de Drummond, que li em plena adolescência, “Especulações em torno da palavra homem”, que se conclui com a indagação “Mas existe o homem?”. Esse questionamento poético sobre nossa existência humana, considerada como não óbvia, é a semente germinada que me move a problematizar o privilégio antropocêntrico, hoje mais do que nunca.
O capítulo do livro O pensamento vegetal: a literatura e as plantas (Civilização Brasileira, 2022) intitulado “Clarice e as plantas: a poética e a estética da sensitiva” é um desdobramento “natural” de tudo o que fiz nas décadas anteriores. As aspas se devem ao fato de pôr em dúvida o conceito tradicional de “natureza” ser parte decisiva do projeto e das reflexões que desenvolvo. Sem isso, não damos um passo além do percurso planetário da humanidade até aqui.
Cito uma das epígrafes do Pensamento vegetal, na fala do indígena Ailton Krenak: “Tudo em que eu consigo pensar é natureza.” Em síntese, bichos, plantas e coisas compõem o universo infinito do que se chama de não humano, mas que habita intimamente nossa humanidade e que está no cerne da sobrevivência de nossa e de outras espécies. E tudo isso deve ser pensado mais além da oposição natureza/cultura.
Tanto meus ensaios quanto meus cinco livros ficcionais são movidos por essa temática, ao lado de outras afins.
IHU – O senhor dedicou um lugar muito especial ao pensamento de Jacques Derrida. É possível relacionar esse interesse seu pelo tema da animalidade com a reflexão desse autor, em particular no livro O animal que logo sou?
Evando Nascimento – Sim, sem dúvida. Derrida não foi o primeiro nem o último pensador ou escritor, de qualquer gênero, a abordar a animalidade, ajudando-a a se emancipar da servidão involuntária ao Homem, em sentido tradicional. Mas decerto foi um dos que mais deram ênfase a essa problemática. Desde que comecei a lê-lo, percebi que a questão da animalidade se encontrava nas linhas e entrelinhas de seus textos, como um contraponto ao etnocentrismo europeu e ao antropocentrismo clássico.
Sem dúvida, é com seu primeiro ensaio sobre “La main de Heidegger” [A mão de Heidegger], de 1983, que ele começa a questionar o que mais tarde chamará de “humãonismo” (humainisme), neologismo que aponta a mão como órgão de apreensão, o qual serve como argumento privilegiado para justificar a superioridade humana, do tipo: Só nós humanos somos capazes da verdadeira “apreensão” das coisas do mundo, pois somos dotados de uma verdadeira “mão”.
Além disso, muito cedo ele mostrou como o Dasein heideggeriano, apesar de ser crítico em relação ao humanismo tradicional, ainda privilegiava a existência humana na relação fundamental com o Ser. Finalmente, os últimos seminários de Derrida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde fui seu aluno nos anos de 1990, foram dedicados à animalidade, com o título sintomático de La bête el le souverain (de 2001 a 2002 e de 2002 a 2003). Título que poderíamos traduzir como A besta (ou a Fera) e o Soberano, ou seja, o Animal e o Homem, dentro da tradição metafísica.
Ao chamarmos o animal não domesticado, não submisso ao humano, de “besta” ou “fera”, nos colocamos no lugar do Soberano, o homem civilizado que deve reinar sobre todas as coisas, tal como reza o mito adâmico da Bíblia. Esquecemos de imediato de nossa própria “ferocidade”, que promoveu e promove ainda inúmeros conflitos interpessoais e internacionais em todo o globo. Além disso, desconheço outra espécie que faça uma guerra permanente, por qualquer motivo, contra as outras espécies, num tipo de predação contínua.
IHU – Em seu livro sobre Clarice Lispector, Uma literatura pensante (2012), o senhor afirma: “A literatura de Clarice tem ajudado a questionar os limites do humano, na medida mesma em que traz para seu espaço formas concorrentes em relação à tradição.” Essa abertura para a nova alteridade é algo importante no momento?
Evando Nascimento – Extremamente importante. Clarice, já em seu livro de estreia, Perto do coração selvagem, aborda a questão do animal seja de forma metafórica, seja de forma literal. Por exemplo, a protagonista Joana, quando criança, é insultada pela tia como “víbora”, um xingamento clássico contra as mulheres, que o marido dela Otávio repetirá no momento de abandoná-la. Ora, no contexto do livro, esse insulto adquire conotação positiva: Joana é uma “víbora” por não se submeter à ordem falocêntrica, em que o Homem como pai, marido ou irmão reina absoluto.
E, assim, já vinculo o rebaixamento metafísico ocidental do animal ao rebaixamento do feminino em relação ao masculino. É a mesma ordem falocêntrica que sempre colou as mulheres e as condutas sexuais não heteronormativas em lugar de inferioridade que também inferioriza e escraviza os animais em geral. São questões distintas, porém correlatas: a misoginia e a bestialização dos bichos.
Agradeço por você sublinhar isso: embora trate de muitos assuntos, meu livro Clarice Lispector: uma literatura pensante aborda sobretudo a zoopolítica clariciana, a qual promove uma nova inserção dos animais na pólis ou na Cosmópolis. A pólis é humana, a cosmópolis é de todos os viventes e não viventes, na Terra e fora dela. E já nesse estudo de 2012, as plantas e o inorgânico comparecem tratados em subcapítulos, mostrando o modo segundo o qual, em nosso espelho narcísico, nos vemos sempre como os soberanos indiscutíveis da “Natureza”.
IHU – Como explicar esse “chamado” de Clarice para o mundo animal? O senhor fala em “zoografia ficcional”.
Evando Nascimento – Cito uma frase que para mim explica bem a relação de Clarice Lispector com os animais: “não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado”. Isso é dito numa crônica publicada no Jornal do Brasil e republicada na coletânea A descoberta do mundo. Ela se sente convocada (palavra que tem “voz”) pelos bichos, os quais de algum modo mobilizam sua animalidade. É esse algo de animal no humano que nós mais negamos, embora Darwin, há mais de um século, provou que os hominídeos têm ancestrais em comum com os primatas.
O que autores como Kafka, Guimarães Rosa, Drummond, Lygia Fagundes e tantos outros na modernidade fizeram foi ficcionalizar os bichos de modo não moralizante. Eu amo as fábulas de Esopo, de La Fontaine, bem como os contos Perrault e dos irmãos Grimm, mas é patente que esses escritores recorrem aos animais sobretudo para estabelecer regras morais para o humano. Bem lidos, esses textos clássicos são também muito enriquecedores, mas o componente moralista atrapalha um pouco a interpretação.
Já em Kafka e em Clarice, entre tantos escritores e escritoras modernos ou atuais, os bichos por assim dizer estão muito mais “soltos”: eles são vistos de forma mais detida em suas especificidades, que em parte compartilham conosco. E é essa complexidade que me interessa na zoografia ficcional: cada espécie animal é de fato singular, mas também divide uma parte do legado com outras espécies, inclusive a nossa.
E é desse grau de ficcionalidade “bio-lógica” que agora eu chamaria de humano-animal, ou humanimal – para utilizar um neologismo que acabei de inventar – que todos os viventes animais são dotados. Penso neste momento na delicadeza que é “Um boi vê os homens”, de Drummond, ou no lindíssimo conto-crônica “Macacos”, de Clarice. Detalhe: parodiei este último conto narrando a história do ponto de vista da macaquinha Lisette e não da narradora-personagem dona-de-casa – minha história se chama “Humanos”.
IHU – Para o senhor, o pensamento de Clarice “é também intensamente desfigurante” com respeito à nossa visão dos animais e da diferença em geral, na medida em que questiona os nossos preconceitos arraigados. Poderia desenvolver isso um pouco melhor?
Evando Nascimento – A desfiguração das figuras tradicionais atribuídas aos animais (nas fábulas e nos contos morais citados anteriormente, por exemplo) está relacionada ao que desde 1992 venho chamando de literatura, escrita ou ficção pensante – esse adjetivo pode ser estendido ao cinema e às artes em geral, como eu mesmo já fiz. Vivemos de fato contemplando o espelho de Narciso e recusando o que achamos feio, muito embora a fábula grega seja mais complexa do que a interpretação vigente.
A imagem ou figura que a chamada civilização ocidental construiu para si própria foi baseada nas culturas de alguns países hegemônicos: Inglaterra, França, Itália e Alemanha, mas Portugal, Espanha, Holanda e Bélgica também deram grande contribuição ao longo da história moderna. O próprio conceito de modernidade foi forjado nesses países, em contraste com outros povos que supostamente não eram desenvolvidos do ponto de vista socioeconômico. A cultura greco-romana deu os fundamentos míticos da história do “progresso civilizacional”.
Mas quero deixar claro que não sou antiocidental, pois devo muito às culturas dos países citados, tendo vivido em dois deles, França e Alemanha. E minha formação da escola primária até o doutorado foi baseada em conceitos veiculados pelas línguas portuguesa, espanhola, inglesa e alemã predominantemente.
Essa imago ou figura é então sobretudo masculina, branca e colonizadora – o retrato fiel dos invasores e exploradores europeus nas Américas e noutros continentes a partir do século XV, tratados pela História oficial como “heróis”. Basta lembrar a mitificação escolar dos bandeirantes genocidas, que abriram caminho para a ocupação territorial, matando indígenas e extraindo minérios, no que se tornou o abrasado Brasil.
Nesse espectro europeu, tudo o que não se encaixa na figura hegemônica é rebaixado: as mulheres em geral, as etnias indígenas, africanas, asiáticas e australianas, os animais e as plantas. Hegel hierarquizou as civilizações do planeta como nenhum outro filósofo. Hoje temos no Brasil um governo que encarna o protótipo do macho devastador.
Lida com atenção, a literatura de Clarice e de diversos autores e autoras problematiza essa hegemonia falocêntrica (privilégio do falo) e logocêntrica (privilégio do lógos em detrimento de outras linguagens não verbais). Ou falogocêntrica, como nomeou Derrida, juntando as duas potências destrutivas das diferenças. Ele criou também um neologismo maior, o carnofalogocentrismo, carno significando a carne do animal sacrificado e por nós devorado de forma devastadora.
É nesse sentido que digo que uma literatura pensante é aquela que permite pensar o impensado ou o impensável de nossas culturas ocidentais. Veja que utilizei “culturas”, porque não há uma única cultura de origem europeia, mas várias. A própria noção de Ocidente como bloco homogêneo e isolado foi questionada há décadas por Edward Said.
Noutras palavras, o próprio chamado Ocidente abriga muitas diferenças dentro de si, e isso precisa ser levado em consideração, até porque as fronteiras para com o Oriente se esfumam cada vez mais. Há muito de Oriente no Ocidente (pensemos na Inglaterra e na França, com seus imigrantes oriundos das ex-colônias) e muito de Ocidente no Oriente (pensemos no Japão e nos demais países industrializados).
IHU – Em determinado momento de sua reflexão, o senhor se dedica ao pensamento de Heidegger e sua abordagem da “diferença ontológica” que separa os seres vivos em geral e ao “homem humano”. Poderia tecer algum comentário a respeito?
Evando Nascimento – É difícil resumir em poucas palavras o que desenvolvi com muito cuidado no Pensamento vegetal. Diria apenas que tentei expor uma contradição no pensamento heideggeriano. Por um lado, no rastro de Nietzsche, ele foi um dos que mais criticaram o humanismo tradicional, tentando evitar a antropomorfização do Dasein, como visto. No entanto, em textos como a Carta sobre o humanismo e Os conceitos fundamentais da metafísica, ele estabelece uma separação abissal entre o Dasein humano, de um lado, e as plantas, animais e as pedras, do outro.
O inimigo em causa é sem dúvida Darwin. Heidegger precisa provar que, a despeito do que pregou o naturalista britânico, do ponto de vista ontológico há um abismo entre os viventes humanos e os não humanos. Só nosso Dasein está apto a se relacionar fundamentalmente com a questão do Ser. Motivo pelo qual ele qualifica o humano como “formador ou construtor de mundo” (weltbildend), os animais e as plantas como “pobres de mundo” (weltarm) e as pedras como “desprovidas de mundo” (weltlos). Só nós humanos somos dotados de mundo e, portanto, ontologicamente essenciais. Esse é o velho antropocentrismo humanista travestido de inovação ontológica!
IHU – Como situar essa singular importância da abertura de Clarice ao “fluxo vital” em geral?
Evando Nascimento – Escritas pensantes como as de Clarice e as de Pessoa, com o heterônimo Alberto Caeiro, abrem perspectivas inusitadas no que diz respeito ao fluxo vital. Mas isso já tinha sido antecipado por Walt Whitman no século anterior e, também, pela pintura exuberante de Van Gogh. E não quero me deter apenas nos escritores ou artistas modernos, pois em qualquer tempo das culturas ocidentais essa potencialização dos fluxos vitais ocorre.
Sou fascinado, por exemplo, pelas Metamorfoses de Ovídio, que anteciparam muitas das questões atuais. Grande parte do que faço como ensaísta ou ficcionista deriva desse texto desmesurado da antiguidade. Inclusive uma de minhas histórias da última coletânea de contos que publiquei em 2019, A desordem das inscrições (ed. 7Letras), não por acaso se chama “As Metamorfoses”. Sempre houve, desde as origens, artistas-pensadores e pensadoras que contribuíram com grande vitalidade para o tecido da cultura. Destacaria o pensador-poeta Heráclito e o poeta-pensador Hesíodo entre os que mais me fascinam. Safo também foi uma poeta-pensadora de grande importância.
Mas, claro, estou falando apenas da vertente europeia. No que diz respeito a culturas ameríndias, asiáticas, africanas e australianas, o legado vital é gigantesco e só agora está sendo devidamente apreciado no Brasil e noutros países pan-americanos e europeus. Nessa conjunção cada vez maior entre culturas ocidentais e não ocidentais está toda minha esperança no porvir. Infelizmente os governantes atuais fazem tudo para que isso não aconteça. Penso em Biden e Putin, os verdadeiros senhores da guerra em curso, enquanto escrevo essas respostas – a Ucrânia e seu povo massacrado são somente um “pretexto” para as grandes potências nucleares mostrarem sua força. E como isso dói!
IHU – Mais recentemente, você tem avançado numa reflexão mais ampla, que envolve agora a fitoliteratura. Foi o tema de seu singular livro de 2021, dedicado ao “pensamento vegetal” . Como entender esse novo movimento em sua reflexão e na reflexão literária em curso hoje no Brasil?
Evando Nascimento – Lidar com o vasto tema “literatura e plantas”, que é o subtítulo do livro O pensamento vegetal, foi um correlato da pesquisa sobre os animais. Como disse anteriormente, minha questão não é a dos humanos ou dos animais em si, como reinos, independentes, mas da relação entre todos os viventes. No livro sobre Clarice, já há um subcapítulo sobre o que chamo a poética e a estética das sensitivas. Foi a partir desse esboço que comecei a fomentar nos anos seguintes um estudo concentrado na problemática vegetal, não apenas na obra clariciana mas também na de outros autores, artistas e pensadores.
Para minha surpresa, encontrei todo um movimento de reflexão que ainda não tinha chegado ao Brasil, e que se nomeou, não sem equívocos, como “virada vegetal”. A expressão é ruim porque o termo “virada” (turn, em inglês) denota um efeito de moda, como antes se falou na “virada linguística”, na “virada cultural”, na “virada ético-política” e na “virada animal”.
Não é de moda que se trata, até porque também faz parte da tradição ocidental abordar as plantas, embora de forma nem sempre satisfatória. Além disso, culturas ameríndias e afrodescendentes sempre tiveram outra conexão com os demais viventes. Só é virada para quem está viciado nas últimas novidades. Como explico no livro, já na época de Aristóteles estava em discussão se as plantas tinham ou não psyché, que traduzem como “alma” (termo demasiadamente latino e cristão) e que seria mais bem traduzido como princípio vital.
A botânica, como tantas outras ciências, foi plenamente constituída entre os séculos XVIII e XIX. Mas então qual a diferença dos novos estudos, surgidos nas últimas décadas? A de dar um papel de protagonista aos vegetais, mostrando como praticamente todos os animais dependem deles para viver.
E mais: ao contrário de certa opinião difundida (doxa), as plantas são muito sensíveis, inteligentes e inventivas, nada devendo nesse aspecto aos animais. Esse preconceito contra os vegetais está expresso no verbo vegetar, o qual originalmente significava algo como vivificar, dar vida etc., mas em diversas línguas ganhou o sentido de não ter vitalidade ou estar em coma. O sentido positivo do termo latino ainda existe em português, basta consultar o Houaiss, mas ninguém conhece.
IHU – Você menciona os trabalhos de Emanuelle Coccia e Stefano Mancuso , entre outros, para indicar essa “nova ontologia dos vegetais”. Qual a importância desses autores e desse novo momento para a reflexão literária?
Evando Nascimento – Faria duas distinções: ambos são italianos, mas Coccia é um filósofo e Mancuso um cientista, então o modo de trabalhar com as plantas é muito distinto, mas também convergente em vários pontos. Coccia, junto com o Michael Marder, é um dos poucos a utilizar ainda hoje a palavra “ontologia” para falar da existência das plantas no sentido que me interessa. Porém, ambos fazem grandes ressalvas ao termo.
No livro, explico por que não endosso em hipótese alguma a “ontologia das plantas”, nova ou antiga, fundamental (Heidegger) ou não, mas não tenho como explicar isso em poucas palavras. Para quem quiser conhecer um pouco mais a esse respeito, remeto ao Derrida e a literatura (3ª. ed., É Realizações), no qual falo disso em mais de um capítulo. Só diria que a ontologia, como ela se constituiu sobretudo a partir de Sócrates e Platão, um como discípulo do outro, é um dos maiores problemas da metafísica dita ocidental, legitimando inúmeras discriminações.
Apesar desse viés ontológico, consigo tirar proveito e dialogar com Coccia e Marder, a fim de desenvolver minhas próprias reflexões. Em nenhum momento desejei fazer uma “história das ideias”, por isso não estou preso a simples resenhas críticas do pensamento alheio, mas sim desejando fazer brotar algo de novo, uma flor que dê fruto, como tantas outras nos trópicos.
Já Mancuso, Francis Hallé, Jean-Marie Pelt e Anthony Trewavas, entre outros, são cientistas não deterministas que me dão argumentos empíricos e teóricos extremamente úteis para uma reflexão inovadora. Não sou cientista e por isso escolhi esses que praticam uma espécie de “ciência nômade”, a qual ousa ir além dos dogmas da tradição positivista. Por muitas razões, em diversos momentos me sinto mais próximo deles do que dos dois filósofos citados.
Já de Judith Butler e Donna Haraway, a proximidade é imensa, não por acaso são duas leitoras de Derrida, feministas, que desenvolveram um pensamento próprio. Todos esses pesquisadores e pesquisadoras nada têm a ver com a tecnocracia que domina as ciências ligadas ao universo digital. Sem serem tecnofóbicos nem anti-humanistas, tentam pensar um mais além das oposições metafísicas humanos-máquinas, humanos-animais, humanos-plantas, humanos-coisas etc.
Com Derrida, o diálogo envolve grande parte de minha formação acadêmica, e no capítulo “Derrida e as plantas” faço um ajuste de contas sem cair no clichê do “discípulo que trai o mestre”. Isso não ocorre desde logo porque, apesar de ter sido seu aluno, jamais me considerei um discípulo ou seguidor, apenas um leitor atento, que deseja seguir seus próprios passos, com erros e acertos, talvez mais erros do que acertos. E mesmo nas pontuações que faço em relação à obra derridiana, predominam sobejamente as convergências. Não foi a primeira vez que expus algumas de minhas divergências, mas creio que dessa vez o fiz de forma mais contundente, tentando não ser grosseiro. Para mim, depois de Nietzsche, entre os filósofos europeus que li, Derrida é quem foi mais longe, desde logo pelo fato de não ser apenas mais um “filósofo”, mas um pensador.
IHU – O senhor fala também de uma situação ameaçadora hoje em dia, inclusive para o futuro dos humanos, que relaciona com um “holocausto vegetal”. Como tem desenvolvido essa questão?
Evando Nascimento – Inventei a expressão “holocausto vegetal” a partir do termo holocausto, que significa etimologicamente “queimar o todo”, e sob o choque das queimadas e incêndios no Pantanal e na Amazônia em 2019 e 2020, com o incentivo criminoso do desgoverno federal e demais autoridades públicas. Foram dezenas de hectares de terras verdejantes que viraram cinzas, com a consequente morte de animais. Uma barbárie que se repete há anos, mas que se intensificou desde que o “Bolsonazista” assumiu o poder.
O capítulo em que trato do assunto assume um tom quase jornalístico ou de “diário de bordo”, porque precisei escrever perante uma realidade que me paralisava de tristeza e raiva. Tenho muita dificuldade de lidar com a morte alheia, e não só a dos humanos, mas a das plantas e dos animais também. Cada vivente que morre estupidamente, por causa de nossas ações desumanas, corrói um tanto de nossa própria humanidade. Razão pela qual falo também de “suicídio coletivo da humanidade”, pois é impossível imaginar que nossa espécie sobreviverá se os animais e as plantas continuarem a ser sacrificados no ritmo alucinante de agora. O mesmo acontece com a extração mineral dentro das florestas e das reservas naturais.
No momento em que escrevo estas respostas, mais uma barbárie foi cometida: o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Philips, do The Guardian, foram mortos por indivíduos praticantes da pesca ilegal. Os dois faziam uma reportagem sobre a destruição ambiental no Vale do Javari e sobre a ameaça permanente em que vivem os indígenas da região. O holocausto, a destruição cabal, não é só vegetal, mas também animal, humana e até mineral.
A sanha é de aniquilação total, até chegarmos a uma Terra calcinada. A continuar assim, o fim não está muito longe. Nunca fui apocalíptico, mas diante do horror atual, só me resta repetir alguns versos do poema “O sobrevivente”, de Drummond:
“Mas até lá, felizmente,/ estarei morto”. A estrofe final é de enorme lucidez premonitória: “Os homens não melhoraram/ e matam-se como percevejos./ Os percevejos heroicos renascem./ Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado./ E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio”. Mesmo quando não caem lágrimas, costumo chorar muito com o descalabro atual, aqui e alhures.
IHU – Há todo um movimento em curso na antropologia que abre espaço para uma reflexão distinta sobre o lugar dos animais e vegetais na teia da vida. Como você capta esse momento novo para a literatura?
Evando Nascimento – Um dos melhores exemplos disso é “Meu tio o Iauraretê”, de Guimarães Rosa, em que se narra em primeira pessoa a transformação de um personagem em onça. Esse devir-animal foi muito bem refletido por Deleuze e Guattari no livro sobre Kafka, Por uma literatura menor. A mimese literária tem esse poder de evocar (palavra que também contém “voz”) outras linguagens, outras escritas e outras “vozes” não humanas. Não se trata de mera “imitação”, mas de um processo em que a linguagem verbal se deixa contaminar por algo que a excede e que vem de viventes não humanos e até dos minerais: todos a meu ver são formadores de mundo e dotados de alguma forma de linguagem.
Não há vivente ou não vivente que não tenha seu mundo particular, o qual compartilha com outros reinos e espécies. Há um verso de Cabral de Melo Neto que eu amo citar: “Viver/ é ir entre o que vive”. Eu acrescentaria: é ir entre o que vive e, também, entre o que aparentemente não vive. Há um entrelaçamento fundamental entre as formas orgânicas e inorgânicas de existência. Essa é toda a diferença do pensamento vegetal para a “ontologia fundamental” de Heidegger, que impõe um abismo até entre os humanos e os outros viventes.
IHU – Como o senhor vê em Clarice essa preocupação com o mundo vegetal? Em certo ponto de seu livro, traz que “praticamente ninguém se deu conta da igual relevância dos vegetais na literatura de Clarice”. Poderia nos falar sobre isso?
Evando Nascimento – Esse foi um de meus espantos quando comecei a abordar sistematicamente o tema vegetal em literatura. Benedito Nunes deve ter sido o primeiro a assinalar a importância dos animais na literatura de Clarice; fez isso numa linguagem assumidamente heideggeriana. Então, há algumas décadas que não é mistério para nenhum leitor atento esse papel animal na ficção clariciana.
Usei de propósito o termo papel: são bichos escritos, em linguagem humana, mas em plena conexão com as linguagens não humanas – penso em especial nesse texto inclassificável “O ovo e a galinha”. E a partir de 1999 propus minha própria leitura da questão animal, que enfim consignei plenamente (mas sem esgotá-la, pois é inesgotável) em Uma literatura pensante. Todavia, a não ser por alguns comentários sobre o conto extraordinário “Amor”, em que a personagem Ana vai parar no Jardim Botânico, ou no igualmente fora do comum “A imitação da rosa”, as plantas não chamaram particularmente a atenção dos intérpretes claricianos.
Todo o capítulo do Pensamento vegetal intitulado “Clarice e as plantas: a poética e a estética das sensitivas” é para mostrar a potência vegetal como articuladora da ficção pensante de Clarice. Não se tratou de abordar apenas criticamente a temática, mas sobretudo de me conectar plenamente com a seiva vegetal das palavras de Clarice. Razão pela qual fiz várias incursões ao Jardim Botânico do Rio, sempre em busca de uma experiência com as alteridades a meu redor.
Minhas origens rurais ajudaram bastante, tendo morado um ano em fazenda. Como disse na mesa da Festa Literária de Paraty - Flip, de que participei com Mancuso: sou filho de Nhe’éry, que é o termo utilizado pelos guaranis para designar o que nós chamamos de Mata Atlântica. Com esse estudo vegetal, me reconectei com minhas raízes, que são móveis e até “aéreas”. Como Drummond, me sinto a meu modo um “fazendeiro do ar”.
IHU – É algo que também ocorre na literatura de Rosa, por exemplo, a forma de Diadorim apresentar a Riobaldo a riqueza do bioma do Cerrado. Isto também poderia abrir um campo de reflexão?
Evando Nascimento – Sem dúvida! A finalidade de uma pesquisa como a minha não é nem de longe a de esgotar uma temática que eu sei infinita. Ao contrário, é despertar nos jovens e nos pesquisadores sêniores (do CNPq ou não) o desejo de investigar essas questões noutros autores e autoras, bem como nas artes plásticas e no cinema etc. E, de fato, desde que comecei a fazer palestras e a publicar ensaios, muitos dos quais se encontram on-line desde 2017, surgiram pesquisadores que dialogam com meu trabalho e desenvolvem suas próprias reflexões.
A problemática vegetal em Rosa, só para aproveitar seu exemplo, é assunto para mais de uma tese de doutorado, sobretudo se se cotejar o texto literário com as inúmeras cadernetas com nomes de plantas e bichos que estão no IEB da USP! É uma verdadeira enciclopédia botânica e zoológica, decerto também mineral. O mesmo vale para outros autores. Como concluí com meus colegas da Flip: ao atentar para a “literatura e as plantas”, é toda uma nova biblioteca que se descobre na própria casa, basta ter olhos para reler...
IHU – Essa é uma preocupação que provoca igualmente a reflexão poética brasileira? Percebes um impacto dessa nova mudança também na poesia?
Evando Nascimento – A poesia sempre esteve atenta às plantas, embora muitas vezes apenas como metáforas e símbolos para a existência humana. No Brasil, Leonardo Fróes reconhecidamente foi um dos primeiros a se vincular às questões ambientais, inclusive como cronista, já nos anos de 1970. Não por acaso, optou por morar na região serrana do estado do Rio, deixando a capital. Edimilson é mais jovem, de minha geração, e já há algum tempo escreve também poemas inspirados na vegetação e correlatos. Ambos estão comentados em meu livro vegetal, junto com diversos outros e outras, inclusive indígenas.
Creio que a tendência é cada vez mais termos uma literatura atenta ao que acontece nesses reinos vicinais, dos animais, dos minerais e das plantas. Me chamou a atenção a quantidade de mulheres voltadas para essa vertente literária: entre outras, a norte-americana Louise Glück, Josely Vianna Baptista, Ana Maria Martins, Júlia Hansen, Adriana Lisboa e minha grande amiga Maria Esther Maciel, que há alguns anos pesquisa o tema literatura e animalidade, tendo inclusive lançado um livro na Coleção Contemporânea, que dirijo na Civilização Brasileira.
Em nenhum momento me preocupei em fazer um mapeamento completo dessas questões em literatura, por duas razões: é uma tarefa gigantesca e só pode ser realizada coletivamente por vários pesquisadores; e, também, porque não tenho uma ambição generalizante: gosto de fazer recortes mais ou menos motivados, e a partir deles desenvolvo minhas próprias reflexões. Todos os meus ensaios funcionam assim: o desejo não é de abarcar o todo (se isso é possível...), mas sim de, com uma seleção prévia, propor interpretações diferenciais.
Ao longo do percurso obviamente o corpus inicial é ampliado – sem isso não existe a aventura do pensamento, que para mim é o que mais conta. Gosto de ter o acaso a meu favor, sem medo de errar, se possível tornando o erro parte do processo. Em síntese: pouco me interessam as abordagens abstratizantes – meu trabalho se propõe a uma experiência vital, que é antes de tudo corporal, no que o corpo tem de intelecto e de sensibilidade, inseparavelmente.
IHU – O antropólogo Tim Ingold e também o estudioso de fungos Merlin Sheldrake , em seu livro A trama da vida , falam no emaranhamento que marca a trilha da vida, irmanando bichos, plantas, humanos e coisas. Ingold diz em sua obra Estar vivo que o entrelaçamento é a “textura do mundo”. O que dizer a respeito?
Evando Nascimento – Os fungos são um domínio conexo ao das plantas e de tudo o que é vivo e até do não vivo. Eles estão em toda parte, inclusive em nossos corpos. Essa teia fúngica é realmente global, constituindo um dos mais importantes canais de comunicação entre todos os viventes. É claro que essa “comunicação” nem sempre é saudável, pois há cogumelos venenosos para outras espécies, por exemplo. Trato disso de passagem, em diálogo com Mancuso, mas não abri um capítulo separado porque seria um longo desvio, e o livro, que não é pequeno, ficaria bem maior.
De qualquer modo, em mais de um momento sublinho os aspectos relacionais da vida, explicando como, numa floresta, ao contrário do que nós urbanoides imaginamos, tudo está interligado. É um grande erro a leitura rasa que se faz de Darwin, supondo que a seleção natural é uma espécie de corrida de obstáculos. Bem lido, A origem das espécies é um livro muito mais sutil e complexo do que a vulgata expressa. Como têm sublinhado diversos biólogos, em especial botânicos como Trewavas e Pelt , a vida não é só competição, há muita colaboração entre fungos, bactérias, plantas, animais e humanos.
Uma visão tacanha da existência é que nos acostumou a colocar cada reino e cada espécie dentro de escaninhos separados e antagônicos. Alguém consegue viver sem cultivar plantas e/ou criar animais, direta ou indiretamente? O que seria da polinização sem a ajuda de insetos e, também, dos humanos? O que aconteceria com os herbívoros que nós humanos devoramos (aves e gado) sem as deliciosas plantinhas? Essa obviedade é cotidianamente ignorada por causa do preconceito antropocêntrico. Nem as diversas predações entre os viventes são uma guerra como se costuma conceber. A competição entre as espécies é apenas um dos fatores para a sobrevivência geral da própria vida.
Toda vez que, assistindo a um programa sobre bichos na TV a cabo, ouço o comentarista falar de “orcas assassinas” ou de “tubarões sanguinários”, estremeço – logo nós, que todos os dias matamos sanguinariamente diversas espécies para nos alimentarmos, vamos posar de moralistas isentos?! E muitas vezes comemos bem mais do que necessitamos, por pura crueldade voraz.
Nada tenho contra o consumo de carne vermelha ou branca, pois acho que também faz parte do cardápio da espécie, definido milênios atrás. Não sou vegetariano nem vegano, mas acho escandaloso o consumo abusivo de proteína animal. O que os nutricionistas dizem é que, por exemplo, carne vermelha uma vez por semana bastaria, para adquirirmos a quantidade de vitaminas e ferro que ela nos fornece. Há pessoas que comem bifes e afins duas ou três vezes ao dia.
IHU – É possível constituir uma particular sintonia dessa reflexão com o pensamento do Mestre Dogen , que inaugurou o Soto Zen . Ele nos diz em seu Shôbôgenzô que a nossa incapacidade de ver o movimento dos rios e montanhas expressa, na verdade, a nossa incapacidade de perceber o nosso movimento. Chegastes a pensar nessa relação da nova reflexão em curso com o pensamento Zen?
Evando Nascimento – Há uma série de saberes tradicionais que precisei deixar de lado na pesquisa, pelo simples motivo de que o livro é antes de tudo um ajuste de contas com a filosofia e as ciências ocidentais, fundadas na racionalidade logocêntrica. Minha formação teórica, com autores como Derrida, Barthes, Foucault e Deleuze, me permitiu “desconstruir” ou, como hoje prefiro, disseminar uma forma de pensamento mais além das teses metafísicas tradicionais de Aristóteles, Hegel ou Kant. Nietzsche na verdade foi o primeiro a me abrir os olhos para uma realidade outra, muito além do humano. As leituras que fiz no mestrado, quando tinha vinte e poucos anos, do Zaratustra, da Gaia ciência e da Genealogia da moral me permitiram uma conexão diferenciada com o humano e todos os seus “outros”: gatos, cacaueiros e rochedos. Ou seja, o próprio “Ocidente” produziu desde o século XIX o antídoto ou phármakon para suas teses hiper-racionalistas.
O único saber não ocidental com que dialoguei no livro foi o de alguns indígenas brasileiros, como Ailton Krenak, Sonia Guajajara, Davi Kopenawa e João Paulo Barreto – este último pertence à etnia Tukano e foi um de meus parceiros na Flip. Em meu estudo, foi um verdadeiro deleite aproximar as metáforas botânicas de Hegel ao que dizem os indígenas sobre as plantas, os animais, as pedras e as florestas. É para mim um dos pontos altos do livro; claro que os leitores podem discordar.
O pensamento indígena ajuda muitíssimo bem a “desconstruir” ou a disseminar a dialética hegeliana. O filósofo alemão deve ter se revirado no túmulo, ele que dizia que somente o europeu pensa de fato.
IHU – Essa reflexão hoje em curso, apontada, por exemplo, por Emanuelle Coccia em seu livro Metamorfoses, vem indicar um novo modo de trabalhar com a ideia de morte, que envolve a ideia de uma “reintegração ao inorgânico”?
Evando Nascimento – Um pensamento radical da morte, sem temor nem tremor, está em Clarice e em Derrida, bem como em muitos outros escritores-pensadores. Gilberto Gil fez também algumas lindas canções, em que diz, por exemplo, “Se a morte faz parte da vida,/ E se vale a pena viver,/ Então morrer vale a pena,/ Se a gente teve o tempo para crescer,/ Crescer para viver de fato/ O ato de amar e sofrer./ Se a gente teve esse tempo,/ Então vale a pena morrer” – há outras composições de igual teor, de uma sabedoria única.
Um dos elementos que mais recalcamos nas culturas ocidentais é nossa relação com a morte. É disso que fala esse texto extraordinário de Freud, Das Unheimliche, título que não tem equivalente noutras línguas, mas foi vertido como o “estranho”, “l’inquiétante étrangeté”, “l’étrange familier”, “the uncanny”, “lo siniestro” etc. O próprio Freud fez uma pesquisa vocabular, no alemão e noutras línguas, para entender o conteúdo semântico desse termo “esquisito” (uma vez o traduzi assim). É um dos ensaios fundamentais sobre o “retorno do recalcado”, e que dialoga implicitamente com o “eterno retorno” de Nietzsche. Em dado momento, Freud diz que poderia ter começado com exemplos de morte, porque a morte é unheimlich por excelência.
Como todo vivente, tenho medo da morte por não saber o que há do outro lado, o undiscovered country de Hamlet, nem mesmo se há “outro lado”. Todavia, esses autores que leio desde muito jovem me ensinaram a encará-la como um processo intrínseco à vida, e que começa desde o nascimento. Costumo dizer até que começou quando as duas células reprodutivas de nossos pais se encontraram – ali principiamos a correr todos os riscos que podem dar cabo de nossa existência. Há uma frase extraordinária de Proust , que cito no Derrida e a literatura, na qual ele diz que já morreu diversas vezes, desde que nasceu.
Parafraseio aqui propositalmente de memória, porque nesse caso, como noutros, me importa o modo como recebo e interpreto o pensamento do outro, conectando-o a minha própria experiência vital, literária e artística. Essa é uma estratégia fundamental do ensaísta, do escritor e do artista visual que me tornei, segundo meus e minhas intérpretes: oscilar entre a mais estrita filologia e a mais livre interpretação – ambas as categorias se encontram em Nietzsche. Sem imaginação inventiva, não há pensamento, apenas erudição vazia. É preciso ousar, com o risco de errar – se não der certo, reavalia-se o percurso intencionado e se tenta de novo.
Em síntese: é por ter aprendido a morrer e a renascer constantemente que pude escrever esse livro de título estranho (unheimlich): O pensamento vegetal. Quem conhece meus problemas de saúde nos últimos anos, dos quais quase nunca falo, sabe do que se trata. Temo, mas não sinto pavor da morte, simplesmente porque já a conheci de perto, vi sua cara mais de uma vez e ela estava “viva”, como muito bem disse o saudoso Cazuza.
Ri dela e ela riu de mim, pois sabe que a partida para nós viventes está desde sempre perdida – tema do belíssimo O sétimo selo, de Bergman. Perdida em termos, pois o ciclo vital jamais termina: cada vida que se dissipa acaba por se reintegrar ao orgânico e ao inorgânico. A teia vital se retroalimenta sem cessar, bastando observar o trabalho dos vermes, dos fungos e das bactérias, entre outros agentes.
Tenho horror apenas ao sofrimento brutal. Sartre e Blanchot disseram a mesma frase: Soufrir est abrutissant, sofrer é embrutecedor. Morrer é tão “natural” como comer, respirar, caminhar, amar. Sofrer de forma desmedida e aparentemente gratuita é atroz, a não ser para os que creem no sofrimento como forma de ascese, mas isso nada tem a ver comigo. Queria morrer como Lou Reed e outros privilegiados: olhando o jardim através da janela. Que linda despedida da existência! E, aliás, contrariamente ao que é comum sobretudo no “Ocidente”, tendo a celebrar as vidas bem vividas quando se findam e não a lamentar sua perda. E “bem vivida” inclui altas doses de alegria, tédio e sofrimento, sem idealizações.
Por outro lado, um certo nível de sofrimento é inevitável e deve ser incorporado como parte do processo vital. O que também está em Nietzsche: a afirmação da vida mesmo na dor. E isso com certeza está igualmente em muitas culturas não ocidentais. Já o capitalismo quer nos vender um mundo asséptico, indolor, com o gozo sem fim que o consumismo permite. Espero que a pandemia tenha ensinado a muitas pessoas ao menos a entender a necessidade do luto, sem denegá-lo em função de uma alegria ilusória e constante.
IHU – Sua reflexão vai ainda mais longe quando busca captar as pesquisas inovadoras no campo da biologia, quando fala em rizoma, micorrizas e fungos, ou seja, num “mundo invisível” que nos rodeia e sustenta, e que é essencial para a nossa sobrevivência. Fala-se hoje em inter-relação com esse mundo. Pode nos falar algo a respeito?
Evando Nascimento – Respondi essa questão em parte anteriormente. Não foi o tema principal da pesquisa, mas o trouxe para o livro porque me ajudou a pensar uma estrutura descentrada para a vida. Há três centramentos que ocorrem na história das culturas ocidentais e que estão em vias de forte abalo: teocentrismo, antropocentrismo e zoocentrismo. Como biblicamente se sabe, Deus foi criado à nossa imagem e semelhança, fazendo do antropocentrismo um teocentrismo, e vice-versa (inverti a sentença bíblica de propósito, pois o que se diz é que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança). É o que chamo de narcisismo antropodivino.
Quando as ciências ditas naturais se estabeleceram na modernidade, o humano foi sem dúvida o objeto de maior preocupação. E como guardamos muitas relações fisiológicas e fisionômicas com os animais, a zoologia forneceu de algum modo o modelo para estudar a vida. As plantas ficaram em último plano, só perdendo para os fungos, as algas e as bactérias. Ora, rizomas, fungos e micorrizas são estruturas acêntricas, sem começo, meio e fim determinados, fornecendo um padrão diferencial para se estudar os fenômenos da vida. Descentramento é um termo decisivo no Derrida dos anos 1960, assim como rizoma será para Deleuze e Guattari nas décadas seguintes. E a ficção é eminentemente descentrada e rizomática: penso, por exemplo, nas inúmeras entradas e saídas, ou melhor, nas inúmeras bifurcações que têm os textos de Borges, o autor da escrita-labirinto.
IHU – É possível se inspirar nas formas de “ressurgência” observadas nesse mundo invisível para encontrar caminhos de sobrevivência para o “homem humano”?
Evando Nascimento – Essa é a chave por excelência para o humano conseguir não só sobreviver, mas até superviver, o qual, para mim, é o viver mais e melhor, como há anos defendo. Ou aprendemos a lidar com essas “estranhas formas de vida”, que são as plantas, os animais, os fungos, as algas, as bactérias e até os vírus (estes, como se sabe, são um híbrido de vivo e de morto), ou pereceremos muito em breve como espécie. A pandemia terrível que sofremos desde final de 2019 é a prova cabal de que algo de muito errado está acontecendo com nossa humanidade, a qual se revela tantas e tantas vezes cruel, desumana e bárbara.
E infelizmente isso não é privilégio do “Ocidente” – basta pensar nas autocracias do Irã, da Turquia e da China, para ver que a asfixia da democracia ocorre em lugares diversos. E onde não há liberdade para o pensamento se expandir, não há vida que perdure. Pensamento não é para mim em absoluto o ato de refletir para se afirmar que “existo” (como estipulou Descartes). Pensamento é tudo o que acontece em nossa abertura para as alteridades. Pensar é uma experiência de transformação de si com o outro, pelo outro, para o outro. E para não nos fixarmos no masculino, tenho utilizado cada vez mais esse pronome que caiu em desuso: outrem. Pensar é saber aprender não apenas consigo mesmo, mas sobretudo com outrem. Outrem que também somos. Pensar é, portanto, da ordem de um acontecimento e não da mera consciência autorreflexiva.
Grande parte de meu trabalho está voltado para essa zoopolítica e essa fitopolítica, em defesa dos animais, das plantas e da vida em geral, sobretudo em regimes neofascistas como o atual no Brasil. Foi lutando em defesa da floresta amazônica e dos povos que nela habitam que foram assassinados Bruno Pereira e Dom Phillips. É preciso combater com todas as forças vitais esse terror sem fim.
IHU – O senhor já destacou sua presença na última Flip, dedicada à virada vegetal. Qual relevância que concede ao evento?
Evando Nascimento – Dei a máxima importância, foi uma das melhores (e mais difíceis) coisas que me aconteceram. Apesar das muitas críticas, justas ou injustas, que a Flip sofreu e sofre, continua sendo o evento literário mais prestigioso do país. Sua relevância pode ser medida pelas inúmeras “Flips” que surgiram Brasil afora, com nomes adaptados ao local de realização: Fliaraxá, Fliporto, Flica etc. Tivemos um trabalho desmesurado para fazer uma programação diversificada com muitos autores brasileiros e estrangeiros. A preocupação também era grande com o equilíbrio de gênero e étnico: negr’s, branc’s, indígenas, uma coreana, uma moçambicana. Alguns são nomes consagradíssimos, como Conceição Evaristo, Itamar Vieira Júnior, Ana Maria Martins, Margareth Atwood, David Diop, Hang Kang, entre muitos outros e outras. Tudo isso tendo como critério a presença das plantas e afins no que escrevem.
Dois dos maiores pesquisadores que já citei também compareceram: Stefano Mancuso, com quem dialoguei, sob mediação da poeta Prisca Agustoni, no dia da abertura, e Emanuelle Coccia, que dialogou com Adriana Calcanhoto, no penúltimo dia. O fato de o evento ter sido on-line facilitou em parte, mas dificultou também. Faltou a presença calorosa dos convidados e do público. Mesmo assim, quatro dos curadores fomos a Paraty, e lá encontramos os indígenas, no lindíssimo ritual de abertura, na Praça da Matriz. Chamei de “Primeira Missa às avessas”, realizada não pelos invasores portugueses, mas por representantes dos povos autóctones.
Ressalto o profissionalismo da organização da Flip, em particular de seu diretor artístico Mauro Munhoz. Porém, ele trabalha com uma excelente equipe, que deu assistência o tempo todo aos curadores Hermano Vianna (coordenador), Anna Dantes, Pedro Meira, João Paulo Barreto e eu mesmo. Formamos, em conjunto, uma teia curatorial, não sem discrepâncias.
Foi uma felicidade concluir e publicar um livro no evento que também foi inspirado em meu trabalho, pois fui convidado para participar pelo antropólogo Hermano Vianna a partir de uma conferência que fiz na Academia Brasileira de Letras sobre “Pessoa/Caeiro e as plantas”. Foi um aprendizado árduo, mas extremamente proveitoso. Árduo também porque há claramente uma implicância da grande mídia com a Flip – parece que eles ficam buscando um escândalo para vender jornal e ter audiência. É a sociedade do espetáculo levada a seu ápice, como a definiu muito bem Guy Debord nos anos de 1960. Felizmente o resultado foi excepcional, com excelente retorno por parte de quem assistiu. Todos os vídeos das palestras se encontram em livre acesso na Web, por tempo indeterminado.