Os desafios de uma constituição global para preservar o futuro comum. Entrevista especial com José Geraldo de Sousa Júnior

"O ser humano deve superar o olhar antropocêntrico que se agravou com a modernidade e que nos faz esquecer que somos parte do todo", diz o pesquisador

Foto: Pixabay

Por: Edição: Patricia Fachin | 18 Abril 2022

 

A crise sanitária e os efeitos gerados pela pandemia de Covid-19 recolocaram em pauta as discussões sobre a possibilidade ou necessidade de um "constitucionalismo global", que garanta fundamentalmente saúde pública e o cumprimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, como renda e salário. Essa proposta tem sido defendida, por exemplo, pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, autor dos livros La costruzione della democrazia. Teoria del garantismo costituzionale (A construção da democracia. Teoria do garantismo constitucional, em tradução livre, Laterza, p. 466, euro 30) e Perché una Costituzione della terra? (Por que uma Constituição da Terra?, Giappichelli, p. 80, euro 11).

 

Para discutir o tema à luz dos desafios dos povos da América Latina e da Constituição da Terra, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promoveu a palestra "Direitos fundamentais e a Constituição da Terra", ministrada pelo jurista José Geraldo de Sousa Júnior. No evento virtual, ele explicou os princípios e objetivos de documentos internacionais que já foram elaborados com o desafio de atender às necessidades dos povos e preservar a casa comum. A Carta da Terra, exemplifica, "é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Busca-se inspirar todos os povos a um novo sentido de interdependência global e responsabilidade compartilhada voltado para o bem-estar da família humana, da grande comunidade da vida e das futuras gerações. É uma visão de esperança e um chamado à ação".

 

A seguir, reproduzimos a conferência no formato de entrevista, na qual José Geraldo de Sousa Júnior também comenta a discussão sobre o reconhecimento dos direitos da natureza ou o reconhecimento da natureza como um sujeito de direito, que tem como objetivo garantir o "equilíbrio biocêntrico, centrado no todo e não apenas nos seres humanos", a partir das cosmologias indígenas e das necessidades dos povos originários.

 

Ele também reflete sobre a Encíclica Laudato Si', publicada pelo Papa Francisco, e suas contribuições enquanto fundamento para a elaboração de uma constituição global. "Mais programática e convocatória, entretanto, é a Encíclica Laudato Si’, lançada em 2015 pelo Papa Francisco, porque ela é um chamado de atenção ao mundo inteiro para ajudar a humanidade a compreender a destruição que o ser humano está causando ao meio ambiente e aos seus semelhantes".

 

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil)

 

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB, onde leciona desde 1985 e foi reitor de 2008 a 2012. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D'Plácido, 2016).

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como o senhor avalia as discussões acerca dos direitos fundamentais e da Constituição da Terra?

 

José Geraldo de Sousa Júnior - Eu acolho este tema a partir de duas referências que recolhi na semana que passou. Elas vêm do Chile e dizem respeito a duas notas constitucionais de relevante interesse para esta discussão.

 

Convenção Constitucional do Chile

 

A primeira é a Convenção Constitucional do Chile. Mais precisamente o fato de a Assembleia Constituinte em curso ter aprovado os primeiros artigos relacionados ao reconhecimento do país como estado plurinacional e sobre a descentralização dos poderes. No total de 36 artigos escritos pela Comissão, que tratam do ordenamento, da autonomia, da descentralização, da equidade, da justiça territorial, dos governos locais e da organização fiscal, 28 foram aprovados por 2/3 do plenário. No tocante a essas normas consensuadas, está o reconhecimento de “plurinacionalidade” e “interculturalidade” do Chile, país que conta com 13 etnias indígenas, que representam 12,7% da população.

Com isso, as entidades territoriais e seus órgãos reconhecem, garantem e promovem o reconhecimento político e jurídico dos povos e nações pré-existentes ao Estado, isto é, aos povos que habitam o território. Com isso, garantem sua sobrevivência, existência e desenvolvimento harmônico, a distribuição equitativa do poder, uso e reconhecimento e promoção das línguas indígenas. A Bolívia, em 2007, foi o primeiro país da América Latina a se reconhecer como Estado plurinacional.

O processo constituinte do Chile é resultado da revolta social de 2019, que exigia uma nova Carta Magna para abandonar a Constituição implantada durante a ditadura de Augusto Pinochet. A Convenção Constitucional foi eleita após um plebiscito popular que obteve mais de 70% do apoio da população chilena. Entre os 155 constituintes chilenos, 15 deputados representam os povos originários que até março puderam votar sobre quais propostas serão levadas pela bancada indígena à Constituinte.

 

 

Um todo inseparável

 

A segunda nota diz respeito ao fato de que a Comissão Constitucional do Chile acaba de aprovar por 104 votos a favor, 45 contra e duas abstenções, o artigo nono que será incluído no novo texto Constitucional. Segundo ele, natureza, indivíduos e povos são interdependentes e formam um todo inseparável. Sobre essa aprovação, leio, no Brasil de Fato, o texto assinado por Pablo Solón, ativista ambiental e político boliviano, que serviu como embaixador da Bolívia na Organização das Nações Unidas - ONU entre 2009 e 2011, durante o governo do presidente Evo Morales. Ele trabalhou pelo direito dos povos indígenas, pelo direito humano à água e pelo dia internacional da Mãe Terra. Ele também ajudou a impulsionar parte das negociações sobre mudanças climáticas, e a articular a conferência mundial dos povos sobre mudanças climáticas e os direitos da Mãe Terra, realizada em Cochabamba em 2010. Segundo Pablo Solón, a matéria que acontece no Chile é auspiciosa porque “se a natureza é sujeito de direitos, a situação é radicalmente nova porque agora o rio e a lagoa podem levar o poluidor às autoridades e tribunais competentes para que tomem providências para deter e reparar os danos. Qualquer cidadão ou comunidade deve poder falar por aquele rio ou lago que está morrendo, assim como qualquer membro da sociedade pode e deve interceder em defesa de uma criança que está sendo maltratada.

 

 

Direitos da natureza

 

O argumento de que o rio não pode ter direitos porque não pode se defender na justiça desmorona quando vemos, como em nossa legislação, que crianças, idosos e deficientes têm direitos mesmo quando não podem exercê-los sozinhos. Além disso, a Constituinte chilena está discutindo a criação da ouvidoria da natureza. Os direitos da natureza, portanto, vão muito além disso porque nos dizem que não podemos tratar seres não humanos como simples objetos, coisas; natureza é vida, não é insumo.

 

Direitos fundamentais e a Constituição da Terra:

 

IHU – Quais são as objeções a esse entendimento?

 

José Geraldo de Sousa Júnior - Neste momento, a pergunta que o entrevistador poderia fazer é se não podemos cortar uma árvore, extrair minerais ou usar a água do rio. Os direitos da natureza não promovem uma natureza intocável. Na própria natureza existem ciclos de afetação entre as diferentes espécies. O problema está quando uma espécie, a humana, em particular os proprietários de grandes propriedades e empreendimentos, começam a afetar a capacidade de regeneração da natureza. Pegar alguns peixes não é uma violação dos direitos da natureza, mas a pesca intensiva que mata todos os peixes e impede sua capacidade de reprodução é uma violação do direito destes. Os direitos da natureza nos obrigam a pensar em termos do outro não humano, a partir de uma perspectiva sistêmica e não apenas particular.

 

 

IHU - Por que os direitos da natureza estão surgindo agora, com tanta força, e começando a ser reconhecidos nas regulamentações nacionais e locais de vários países?

José Geraldo de Sousa Júnior - No Brasil, há três meses, o Senado considerou que os animais não humanos são seres senciente, não são coisas. Segundo Pablo, porque nosso planeta, nossos ecossistemas e nosso clima estão entrando em colapso devido ao total desrespeito aos ciclos vitais da natureza. Como humanidade, estamos assistindo à sexta extinção na Terra e o mais grave é que somos o meteorito. O cerne dos direitos da natureza é o equilíbrio biocêntrico, centrado no todo e não apenas nos seres humanos. O que se busca é recuperar o equilíbrio quebrado pelo crescimento ilimitado em um planeta finito em que poucos consideram ter direitos absolutos de propriedade sobre uma natureza inerte que é percebida apenas como fonte de riqueza.

 

 

Equilíbrio dinâmico

 

Na natureza, nada cresce para sempre. Todos os processos tendem a um equilíbrio dinâmico. O ser humano deve superar o olhar antropocêntrico que se agravou com a modernidade e que nos faz esquecer que somos parte do todo. Portanto, a natureza tem direitos. O Estado e a sociedade têm o direito de protegê-los e respeitá-los. O Estado deve adotar uma gestão ecologicamente responsável e promover a educação ambiental e científica por meio de processos permanentes de capacitação e aprendizado. Falta agora a aprovação dos artigos que desenvolvem em efetivo esse princípio e, então, o novo texto constitucional do Chile será aprovado em referendo por toda a população. O caminho é longo e complexo, mas esse passo é histórico.

 

IHU – Que papel os indígenas estão desempenhando neste processo?

 

José Geraldo de Sousa Júnior - Esse caminho, no Chile e na América Latina, tem sido percorrido pelo impulso de movimentos sociais que se fazem sujeitos coletivos de sua história e de construção de seu futuro. Não por acaso, no Chile, o protagonismo mapuche demarca o imaginário constituinte: a primeira presidenta da convenção foi a professora universitária indígena mapuche Elisa Loncón, que cumpriu seu mandato de seis meses à frente da mesa diretora. Esse é o primeiro demonstrativo de reconhecimento do protagonismo indígena, que desencadeou no movimento que tomou forma constituinte atual no Chile. Ela acaba de ser substituída e a Comissão também está renovando sete vice-presidências, sendo que dois desses cargos são reservados a representantes dos povos originários.

María Elisa Quinteros, doutora em Saúde Pública pela Universidade do Chile, integrante do diretório da sociedade chilena de epidemiologia e pesquisadora da Universidade de Talca, presidirá a convenção nos próximos seis meses. Ela defende um projeto de sociedade e de ser humano em que os direitos das pessoas prevalecem sobre os demais interesses, em que a saúde é um direito e não um privilégio, em que o feminino tem o mesmo valor que o masculino, em que a natureza é considerada um bem comum e não um recurso privatizado a ser explorado, em que as pessoas não estão mais expostas ao mercado que privatiza os lucros e socializa as perdas, em que podemos contar com um Estado que garante o bem comum. Bom auspício traz por essa referência a presidência atual da Assembleia e, portanto, continuaremos a ter novidades pedagógicas do ponto de vista da ideia de direitos fundamentais a partir do Chile.

 

Pluralismo constitucional

 

Isso me recorda Raquel Yrigoyen, diretora do Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima, no Peru, que tem uma concepção fundamentada na hipótese teórica do pluralismo jurídico. É a mesma hipótese que sustenta a concepção da Bolívia. Ela defende a tese de um pluralismo constitucional e tem avançado desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais em direção a um constitucionalismo ecológico ou ecoconstitucionalismo. Ela expressa isso na obra que acabei de organizar, sobre os 30 anos do Direito Achado na Rua. No conjunto que produzimos, Raquel oferece um texto chamado “Direito à alimentação como um direito humano coletivo de povos indígenas”.

Ainda que, nessa abordagem, o pluralismo jurídico seja compreendido como pluralismo jurídico igualitário, há outros estudos sobre o tema. Os escritos fundamentais de Boaventura de Sousa Santos ou de Antônio Carlos Wolkmer trabalham a expansão desse pluralismo para a dimensão interlegal, na disputa apropriativa de legalidades que se opõem, se complementam ou entram em conflito. O mais recente livro de Antônio Carlos Wolkmer é “Pluralismo, Buen Vivir, Bens Comuns e Princípio do ‘Comum’”, e assimila teoricamente os enunciados desses fundamentos para, a partir da possibilidade dos direitos fundamentais, imaginar um modo de constitucionalizar a Terra.

Nesses autores, os estudos se dirigem muito aos povos indígenas e originários. Essa acepção pluralista, orientada por uma racionalidade jurídica diferente, alcança também outras dimensões de sociabilidade, como no caso do Peru. Lá, os princípios de organização e ação dos povos ronderos [líderes camponeses] e campesinos também se fundam no direito dos povos ancestrais em respeito ao que eles chamam de pachamama.

 

 

Direitos fundamentais, novo constitucionalismo latino-americano e constitucionalismo ecológico

 

Essas teses, em qualquer acepção emancipatória no plano filosófico, teológico, sociológico ou jurídico, se abrem ao entendimento no plano dos direitos fundamentais e instituintes para levar a uma nova formulação do próprio direito constitucional entre nós já consagrado como novo constitucionalismo latino-americano.

Leonardo Boff, em artigo publicado no IHU, aludiu ao constitucionalismo ecológico latino-americano. Ele diz que as modernas constituições se fundam sob um contrato social de cunho antropocêntrico e não incluem o contrato natural, que é o acordo e a reciprocidade que deve existir entre os seres humanos e a Terra viva que tudo nos dá e que nós, em retribuição, a cuidamos e preservamos. À razão disso, seria natural reconhecer que ela e os seres que a compõem seriam portadores de direitos. Os clássicos contratualistas, como Kant e Hobbes, restringiam, portanto, a ética e as relações apenas entre os humanos. Somente se admitia obrigações humanas para com os demais seres, especialmente os animais no sentido de não destruí-los ou submetê-los a sofrimentos e crueldades desnecessárias. A desconsideração de que cada ser possui valor intrínseco independente de seu uso humano, e que é portador do direito de existir dentro do mesmo habitat comum, o planeta Terra, abriu caminho para que a natureza fosse tratada como mero objeto a ser explorado sem qualquer consideração; em alguns casos, até à sua exaustão.

O criminalista e juiz da Corte Suprema da Argentina Eugenio Raul Zaffaroni, no texto “La pachamama y el humano”, desenvolveu um pensamento constitucionalista de natureza ecológico no qual a Terra e todos os seres da natureza, particularmente os seres vivos e os animais, são titulares de direitos. Esses devem ser incluídos nas constituições modernas que deixaram para trás o arraigado antropocentrismo e o paradigma do ser humano como senhor e dominador da natureza e da Terra.

Tal como explica Boff, os novos constitucionalismos latino-americanos ligam duas correntes. A mais ancestral, dos povos originários, para os quais a Terra, pacha, é mãe, mama, sendo titular de direitos porque é viva e nos dá tudo que precisamos e, finalmente, pela razão de sermos parte dela e de pertencermos a ela, bem como aos animais, às águas, às florestas, às montanhas e às paisagens. Todos merecem existir e conviver conosco, constituindo a grande democracia comunitária e cósmica. Os novos constitucionalismos aliam essa ancestral tradição eficaz da cultura andina, que vai da Patagônia à América Central, à nova compreensão derivada da cosmologia contemporânea, da biologia genética e molecular, da teoria dos sistemas que entende a Terra como um superorganismo vivo que se autorregula, a autopoiesis, da qual fala Maturana, Valera e Capra.

 

 

Terra: superorganismo

 

Valera atualmente trabalha com Dalai Lama. Para esses autores, a Terra, que é um superorganismo, se autorregula de modo a sempre manter a vida e a capacidade de reproduzi-la e fazê-la coevoluir. Essa Terra, segundo Boff, denominada de Gaia, engloba todos os seres, gera e sustenta a teia da vida em sua incomensurável biodiversidade. Ela, como mãe generosa, deve ser respeitada e reconhecida em suas virtualidades e limites e, por isso, acolhida como sujeito de direitos, base para possibilitar e sustentar todos os demais direitos pessoais e sociais.

Entre nós, uma lealdade que representa uma disposição generosa para adiar o fim do mundo ou para fazer emergir desse mundo antropocêntrico outro mundo possível. Pensemos no que diz Ailton Krenak, com sua lição ensinada ao repassar com maestria uma das mensagens de que a Terra e a humanidade caminham juntas e que precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza, e que mais do que nunca está diante de nós a impossibilidade de garantir a vida. Há outros mundos nos quais a diversidade e a pluralidade também possam estar presentes sem ser humilhadas, caladas, para que possamos também viver em um mundo no qual ninguém precisa ficar invisível, no qual possamos ser quem somos, cada um com a sua singularidade, humanos nas suas competências, nas suas deficiências e dificuldades, capazes também de reciprocidade. Esse é um lema que deveria estar entre aqueles que propõe que nos juntemos para pensar mundos.

Retomo de Ailton Krenak os livros “A vida não é útil” e “Ideias para adiar o fim do mundo”, que escreveu antes da pandemia de Covid-19, não sem prever a reaçãoantropocena” da peste ambulante que, para ele, não é covid, mas o contágio do encontro entre humanos, que leva à antevisão de uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou. Segundo ele, quando despersonalizamos o rio e a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Trata-se do divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra. Resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferentes gradações são chamados de índios e indígenas ou povos indígenas, mas a todos.

 

Povos indígenas na Amazônia, Xamanismo e Antropoceno. Notas contra a destruição

 

Krenak diz que é incrível que este vírus esteja atingindo somente as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra de “tirar a teta da nossa boca” e de dizer: “respirem agora; quero ver”. Isso denuncia o artifício do tipo de vida que criamos: precisamos de uma máscara, de um aparelho para respirar, mas, em algum lugar, o aparelho precisa de uma usina hidrelétrica nuclear ou de um gerador de energia qualquer, que também pode apagar, independentemente do nosso decreto ou disposição. Estamos sendo lembrados que somos vulneráveis, que se cortarem nosso ar por alguns segundos, morreremos. Não é preciso nenhum sistema bélico ou complexo para apagar essa tal de humanidade. Ela se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada. Essa é a declaração da Terra. Pois, contra a acumulação que canibaliza a Terra e a consome na coisificação que a economia produz, a vida, que atravessa tudo no atravessamento do organismo vivo do planeta em uma dimensão imaterial, vem nos ensinar que ninguém come dinheiro e ela é transcendência. Essa palavra está para além do dicionário; não tenho a definição. Só ela e apenas ela é cura. Mas para tal é preciso reconfigurar o mundo, sobretudo após a pandemia. O que, da perspectiva dos povos indígenas, significa passar por transformações, sonhar e imaginar de modo coletivo um mundo para reinserir a humanidade, abrindo frestas de entendimento no mundo do conhecimento para poder pensar outros modos de habitar o planeta e sustentar o céu – segundo a metáfora de Kopenawa.

 

Ciclos da terra, ciclos do corpo

 

Alguns povos têm um entendimento de que nossos corpos estão relacionados com tudo que é vida e que os ciclos da terra são também os dos nossos corpos. Observamos a terra, o céu e sentimos que não estamos dissociados dos outros seres. O meu povo, diz Kopenawa, assim como outros parentes, tem essa tradição de suspender o céu. Quando ele fica muito perto da terra há um tipo de humanidade que, por suas experiências culturais, sente essa pressão. Suspender o céu é ampliar o horizonte de todos, não só dos homens. Trata-se de uma memória, de uma herança cultural de um tempo em que nossos ancestrais culturais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver.

Voltando a Krenak, a experiência de estar dentro desse fluxo nos dá claramente um sentimento de que a pandemia não é a maior desgraça do planeta. Se ficarmos presos a uma concepção de mundo chapada, de mercadorias e controle e dominação, é claro que vamos morrer de medo. Mas experimente sair de dentro desse carro, ter uma relação cósmica com o mundo. Muita gente deve achar que só os pajés ou gente que já cumulou alguma forma de transcendência pode ter essa experiência. Mas isso que chamam de ciência está constatando o tempo todo a relação da Terra com o sistema solar e por isso devemos constatar a experiência de estarmos harmoniosamente habitando o cosmos. É possível experimentar isso na nossa vida cotidiana, sem se render a todo o terrorismo da modernidade. Enquanto isso, por causa do vírus, vivemos uma experiência de isolamento social, como está sendo definido o confinamento, em que todas as pessoas têm que se recolher.

Segundo Kopenawa, se durante um tempo eram os povos indígenas que estavam ameaçados do sentido ou ruptura de sentido em relação às suas vidas, hoje todos estamos nessa situação, todos diante da iminência de a Terra não suportar nossa demanda. Assistimos a uma tragédia de gente morrendo em todos os lugares do planeta, ao ponto de na Itália os corpos serem transportados para a incineração em caminhões, cenas que vimos terrificados pela televisão.

Uma mudança que estanque a erosão da vida, provocada por uma modernidade que instrumentaliza a existência e a mente humana, pede também uma mudança em uma escala de utilidade. Pede que se reestabeleça a insanidade do viver segundo aquela orientação de pisar suavemente na terra de forma que pouco depois da nossa passagem não seja mais possível rastrear nossas pegadas e que nossas marcas, ao contrário, nessa vida canibalizadora, estão ficando cada vez mais profundas. Cada movimento que cada um de nós faz, todos fazemos. Foi-se a ideia de que cada um deixa a sua pegada individual no mundo. Quando eu piso no chão, não é o meu rastro que fica, mas o nosso, de uma humanidade desorientada.

Os povos originários ainda estão presentes nesse mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam. É interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta resistiram com força e coragem para não serem completamente engolfados por este mundo utilitário. Os povos nativos resistem a essa investida do branco porque sabem que ele está enganando e, na maioria das vezes, são tratados como loucos. Escapar dessa captura e experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa experiência de silêncio foi prejudicada.

 

Cosmopolítica índigena, estados plurinacionais e partidos movimento - Prof. Dr. Salvador Schavelzon

 

Tem razão José Benatti, conforme indica em seu memorial de titulação na Universidade Federal do Pará, sobre a trajetória acadêmica que vai do agrarianismo aos direitos socioambientais. Ele diz que para fazer um contraponto a todas as ações nefastas contra a natureza e o ser humano, um dos caminhos é apoiar e fortalecer a luta dos povos tradicionais em defesa do seu sistema e cultura, pois a proteção das terras tradicionalmente ocupadas constitui condição para a consolidação de um modelo democrático e participativo de um modelo de gestão sustentável do meio ambiente. No território tradicional insere-se a vida da humanidade e do planeta, envolvem-se os fundamentos da vida coletiva construídos como uma nova relação com a natureza e a vida, implementados em formas de organização que respeitem a coletividade e estejam fundamentadas na cultura.

 

IHU – Quais são as questões centrais envolvidas na discussão sobre o reconhecimento dos direitos da natureza?

 

José Geraldo de Sousa Júnior - A discussão sobre o reconhecimento dos direitos da natureza ou o reconhecimento da natureza como um sujeito de direito necessariamente perpassa pelos entendimentos sobre antropocentrismo, que é a valoração intrínseca e utilitarista dos recursos, e ecocentrismo e biocentrismo, que é a valoração intrínseca da natureza. Será necessário questionar a relação formal entre ser humano e natureza, a valoração jurídica existente entre sujeito e objeto, direito de propriedade e valor econômico.

Com menos invisibilidade e ao estilo declamatório próprio dos documentos internacionais, a preocupação principiológica vem das Nações Unidas desde que ela se abriu para as manifestações do social e não apenas para as dos Estados-parte, pautando os temas dos direitos humanos e ecológicos. É o que se pode vislumbrar no documento conhecido como Carta da Terra.

 

 

IHU – Do que trata a Carta Terra?


José Geraldo de Sousa Júnior - A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Busca-se inspirar todos os povos a um novo sentido de interdependência global e responsabilidade compartilhada voltado para o bem-estar da família humana, da grande comunidade da vida e das futuras gerações. É uma visão de esperança e um chamado à ação. Oferece um novo marco inclusivo e integralmente ético para guiar a transição para um futuro sustentável. Ela reconhece que os objetivos de proteção ecológica, erradicação da pobreza, desenvolvimento econômico equitativo, respeito aos direitos humanos, democracia e paz são interdepententes e indivisíveis como vimos na Declaração de Direitos Humanos de Viena em 1993.

A Carta da Terra é resultado de uma década de diálogo intercultural em torno de objetivos comuns e valores compartilhados. O projeto começou como iniciativa da ONU, mas se desenvolveu e foi finalizado como iniciativa global da sociedade civil. Em 2000, a comissão da Carta da Terra, entidade internacional e independente, concluiu e divulgou o documento como a Carta dos Povos. A redação da Carta da Terra envolveu o mais inclusivo e participativo processo associado à criação de uma declaração internacional. Esse processo é a fonte básica de sua legitimidade como um marco ou guia ético. A legitimidade do documento foi fortalecida pela adesão de mais de quatro mil organizações, incluindo organismos governamentais e organizações internacionais. Ela foi primeiramente idealizada pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas em 1987. Durante o ano de 1992, no Rio de Janeiro, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio-92, onde foi elaborada a primeira versão da Carta da Terra.

Paralelo a isso, o documento foi assinado por 179 países para constituir a Agenda 21, um instrumento de planejamento com o intuito de alertar para uma sociedade sustentável, desdobramento da Carta da Terra. Ainda que tenha sido apresentada naquele evento, a Carta da Terra foi somente ratificada e assumida pela Unesco em 2000.



Princípios da Carta da Terra



A Carta da Terra é uma inspiração para a busca de uma sociedade em que todos sejam responsáveis por ações de paz, respeito e de igualdade. Assim, ela preza pelo bem-estar mundial ao tratar de temas éticos de suma importância para todos os cidadãos do século XXI. Ela é um importante instrumento de educação e deve ser apresentada nas instituições educacionais. Ela tem 16 princípios básicos, agrupados em quatro grandes tópicos:

1. Respeitar e cuidar da comunidade da vida, o que envolve respeitar a Terra e a vida em toda a sua diversidade. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor para construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacíficas. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e futuras gerações;

2. Integridade ecológica para proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação com a diversidade biológica e os processos naturais que sustentam a vida. Prevenir o meio ambiente com o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário e avançar o estudo da sustentabilidade ecológica. Promover a troca aberta e a ampla aplicação do conhecimento adquirido;

3. Justiça social e econômica, compreendendo erradicar a pobreza como imperativo ético, social e ambiental. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam o desenvolvimento humano de forma equitativa e sustentável. Afirmar a igualdade e equidade de gênero como pré-requisito para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência de saúde e oportunidades econômicas. Defender, sem discriminação, o direito de todas as pessoas ao ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.

4. Democracia, não-violência e paz, compreendendo fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo. Participação inclusiva na tomada de decisões e acesso à justiça. Integrar na educação formal e na aprendizagem, ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração e promover uma cultura de tolerância, não-violência e paz.

 

 

IHU – Além da Carta da Terra, que outros documentos importantes foram elaborados recentemente?

 

José Geraldo de Sousa Júnior - Mais programática e convocatória, entretanto, é a Encíclica Laudato Si’, lançada em 2015 pelo Papa Francisco, porque ela é um chamado de atenção ao mundo inteiro para ajudar a humanidade a compreender a destruição que o ser humano está causando ao meio ambiente e aos seus semelhantes.

Embora aborde o meio ambiente diretamente, o escopo do documento é mais amplo em muitos aspectos, pois examina os efeitos do ser humano não apenas sobre o meio ambiente, mas também sobre as muitas causas filosóficas, teológicas e culturais que ameaçam a relação do ser humano com a natureza e entre os seres humanos em várias circunstâncias. O documento pontifício tem como destinatário as pessoas de boa vontade, mas guarda a referência teológica ao enunciado do Evangelho. Propondo desafios para repensar a nossa ação no mundo, o Papa Francisco afirma o objetivo do documento: “Nesta encíclica, pretendo entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum. Em diálogo, lanço um convite para renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental que vivemos e suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós”.

Isso está no cerne do documento, mas o Papa Francisco também faz um apelo muito marcante à conversão para aqueles que estão na Igreja. Ele diz: “A crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior. Entretanto, temos de reconhecer também que alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com pretexto de realismo pragmático, frequentemente se burlam das preocupações com o meio ambiente. Outros são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica que comporta em deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã. Mas parte essencial de uma existência virtuosa”.

 

 

Escolher o futuro


Diferentemente do caráter declamatório dos chamados consensos, alguns protelatórios, dos organismos internacionais, o chamado pontifício, com seu núcleo pastoral, convoca o serviço ao discernir para agir. É o cuidado do qual fala Leonardo Boff. Todos e em toda parte engajados em uma disposição ecológica que leve a humanidade a escolher o seu futuro – o que bem pode ser escolher ter um futuro. Isso está em um texto do Boff chamado “A Terra na palma da mão: Uma nova visão do planeta e da humanidade”. Não é ocasional que o Papa Francisco tenha acolhido fortes enunciados de Leonardo Boff, quando compôs a Laudato Si’.

O Papa quer mobilizar energias que preservem o nosso futuro comum por meio de uma ação política e econômica em diálogo para a plenitude humana. Essa exortação presidiu a convocação pontifícia do Sínodo da Amazônia para novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. O documento preparatório “Amazônia, novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral” se orientou segundo a aposta entre uma relação harmoniosa entre a natureza e o criador, e expressa com clareza o fundamento ético de que a defesa da Terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida.

 

A Carta Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco sobre o cuidado da casa comum:

 

Laudato Si’, teoria da complexidade e ecologia integral – Prof. Dr. José Roque Junges

 

Desafio

 

Também me insiro nesse duplo desafio, simultaneamente político e teórico, como está na convocação do Papa Francisco. De um lado, atender ao apelo de conversão ecológica para engajamento no processo de construção e reconstrução do planeta e do humano inscrito plenamente na natureza, para fazê-lo a partir da clivagem do jurídico, que é meu campo de atuação contínuo. Chegou o momento de se repensar consequentemente a pátria grande latino-americana. Dentro de um horizonte histórico passado, o pensamento jurídico se esquivava desse debate e insistia na reprodução de dogmas inadequados e conservadores frente à realidade dos povos do Sul. O debate sobre o novo constitucionalismo latino-americano tem buscado subverter em alguma medida os paradigmas tradicionais da construção jurídica eurocêntrica e liberal. A importância desse tema está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a teoria constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando o constitucionalismo achado na rua. Principalmente porque o arranque epistemológico dessa concepção teórico política postula uma leitura sobre o constitucionalismo ao acicate da conjuntura de assalto neoliberal às constituições democráticas participativas, atributos do novo constitucionalismo latino-americano para o qual concorre o Direito Achado na Rua.

Semeando Esperança para o Planeta: Rede de Oração pelo Cuidado da Criação

 

 

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