14 Julho 2017
"Zaffaroni nos traz uma brilhante e convincente perspectiva, crítica severa por um lado, mas cheia de esperança por outro. Vale lê-lo, estudá-lo e incorporar em nossa compreensão sua visão de uma ecologia holística e profundamente integradora de todos os elementos da natureza e do universo", escreve Leonardo Boff, teólogo, filosofo e escritor.
Quero apresentar um livro que sairá brevemente traduzido no Brasil A Pachamama e o ser humano (Ediciones Colihue 2012) de Eugenio Raúl Zaffaroni bem conhecido no Brasil nos meios jurídicos. É um reconhecido magistrado argentino, ministro da Suprema Corte de 2003 a 2014 e professor emérito da Universidade de Buenos Aires.
O presente livro se inscreve entre as melhores contribuições de ordem ecológica e filosófica que se tem escrito ultimamente. Ele se situa na esteira da encíclica do Papa Francisco, também argentino, Laudato Si, sobre o cuidado da Casa Comum (2015). Zaffaroni aborda a questão da ecologia integral, em especial da violência social e particularmente contra os animais com uma informação admirável de ordem científica e filosófica.
O mais importante do livro é a crítica ao paradigma dominante, surgido com os pais fundadores da modernidade do século XVI e XVII que ex abrupto introduziram uma profunda cissura entre o ser humano e a natureza. O contrato natural, presente nas culturas desde tempos imemoriais, do Ocidente e do Oriente, sofreu um corte fatal e letal.
A Terra deixou de ser a Magna Mater dos antigos, a Pachamama dos andinos e a Gaia dos contemporâneos, portanto algo vivo e gerador de vida, para ser transformada numa coisa inerte (res extensa de Descartes), num balcão de recursos colocados à disposição da voracidade ilimitada dos seres humanos. Clássica é a formulação de René Descartes: o ser humano é o “maître et possesseur” da natureza, vale dizer, é o senhor e dono da natureza. Ele pode fazer dela o que que bem entender. E o fez.
A cultura moderna se construíu sobre a compreensão do ser humano como dominus como senhor e dono de todas as coisas. Estas não possuem valor intrínseco, como vão afirmar mais tarde a Carta da Terra e com grande vigor a encíclica papal. Seu valor reside apenas em poder estar a serviço do ser humano.
O projeto é o do poder entendido como capacidade de dominação sobre tudo e sobre todos, a partir de quem mais poder possui. No caso, os europeus que realizaram a aventura do submetimento da natureza, da conquista do mundo, da colonização de inteiras nações, do genocídio, do ecocídio e da destruição de culturas ancestrais. E o fizeram usando a força brutal das armas, da espada e também da cruz. Hoje em dia com armas, capazes de extingir a espécie humana.
Zaffaroni rastreia o surgimento deste projeto civilizatório e o faz com grande riqueza bibliográfica. Enfrenta com coragem e com grande liberdade crítica os presumidos corifeus do pensamento moderno como Hegel, Spencer, Darwin e Heidegger. Restrinjo-me às críticas que faz ao Hegel do Geist (espírito). Com sua filosofia-ideologia tornou-se o expoente maior do etnocentrismo. Herbert Spencer com seu biologismo estabeleceu a raça branca como superior e todas as demais tidas como inferiores, o que acabou por legitimar o colonialismo e todo tipo de preconceito.
Zaffaroni aborda a questão do animal visto como sujeito de direitos. Enfatiza eie:”ao nosso juízo, o bem jurídico no delito de maus tratos a animais não é outro que o direito do próprio animal a não ser objeto de crueldade humana, para o qual é mister reconhecer-lhe o caráter de sujeito de direitos”. O autor é duro na constatação “de que nos convertemos nos campeões biológicos da destruição intra-espécie e nos depredadores máximos extra-espécie”. Sua proposta é clara:”Somente substituindo o saber do dominus pelo de frater podemos recuperar a dignidade humana” e sentirmo-nos irmados com os demais seres.
A América Latina foi a primeira a inaugurar um constituionalismo ecológico, inserindo nas constituições do Equador e da Bolívia os direitos da natureza e da Mãe Terra. Anteriormente, e também por primeiro, foi o México. a introduzir em sua constituição em 1917 os direitos sociais. Zaffaroni faz a apologia das virtuadalidades criadoras de harmonia do ser humano com a natureza que a visão andina do “bem viver e conviver”(sumac kawsay) comporta; também de Gaia, a Terra como um super-organismo vivo que se auto-regula para sempre produzir e reproduzir vida. A Pachamama e Gaia são dois caminhos que se encontram “numa feliz coincidência do centro e da periferia do poder planetário”. Ambos são portadores de esperança de uma Terra, Casa Comum, na qual todos os seres são incluídos. Eles nos libertarão das ameaças apocalípticas do fim de nossa civilização e da vida.
Zaffaroni nos traz uma brilhante e convincente perspectiva, crítica severa por um lado, mas cheia de esperança por outro. Vale lê-lo, estudá-lo e incorporar em nossa compreensão sua visão de uma ecologia holística e profundamente integradora de todos os elementos da natureza e do universo.
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O encontro feliz da Pachamama com Gaia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU