10 Mai 2013
"A desconsideração de que cada ser possui valor intrínseco, independente de seu uso humano, uso racional, e que é portador de direito de existir dentro do mesmo habitat comum, o planeta Terra, abriu o caminho a que a natureza fosse tratada como mero objeto a ser explorado sem qualquer consideração, em alguns casos até a sua exaustão", escreve Leonardo Boff, filósofo, teólogo e escritor.
Eis o artigo.
As modernas constituições se fundam sobre um contrato social de cunho antropocêntrico. Não incluem o contrato natural, que é o acordo e a reciprocidade que devem existir entre os seres humanos e a Terra viva que tudo nos dá e que nós, em retribuição, a cuidamos e preservamos. Em razão disso seria natural reconhecer que ela e os seres que a compõem seriam portadores de direitos. Os clássicos contratualistas como Kant e Hobbes restringiam, no entanto, a ética e o direito apenas às relações entre os humanos. Somente se admitia obrigações humanas para com os demais seres, especialmente os animais, no sentido de não destruí-los ou submetê-los a sofrimentos e crueldades desnecessárias.
A desconsideração de que cada ser possui valor intrínseco, independente de seu uso humano, uso racional, e que é portador de direito de existir dentro do mesmo habitat comum, o planeta Terra, abriu o caminho a que a natureza fosse tratada como mero objeto a ser explorado sem qualquer consideração, em alguns casos até a sua exaustão.
Coube, entretanto, à América Latina, como o mostrou um notável criminalista e juiz da corte suprema da Argentina, Eugenio Raúl Zaffaroni (La Pachamama y el Humano, Ediciones Colihue 2012), desenvolver um pensamento constitucionalista de natureza ecológica no qual a Terra e todos os seres da natureza, particularmente os vivos e os animais, são titulares de direitos. Estes devem ser incluídos nas constituições modernas que deixaram para trás o arraigado antropocentrismo e o paradigma do dominus, do ser humano como senhor e dominador da natureza e da Terra.
Os novos constitucionalistas latino-americanos ligam duas correntes: a mais ancestral, dos povos originários para os quais a Terra (Pacha) é mãe (Mama) – daí o nome de Pachamama – sendo titular de direitos porque é viva, nos dá tudo o que precisamos e, finalmente, pela razão de sermos parte dela e de pertencermos a ela, bem como as os animais, as florestas, as águas, as montanhas e as paisagens. Todos merecem existir e conviver conosco, constituindo a grande democracia comunitária e cósmica. Aliam esta ancestral tradição, eficaz, da cultura andina – que vai da Patagônia à América Central – à nova compreensão derivada da cosmologia contemporânea, da biologia genética e molecular, da teoria dos sistemas que entende a Terra como um superorganismo vivo que se autorregula (autopoiesis de Maturana-Varela e Capra) de forma a sempre manter a vida e a capacidade de reproduzi-la e fazê-la coevoluir. Esta Terra, denominada de Gaia, engloba todos os seres, gera e sustenta a teia da vida em sua incomensurável biodiversidade. Ela, como Mãe generosa, deve ser respeitada, reconhecida em suas virtualidades e em seus limites e, por isso, acolhida como sujeito de direitos – a dignitas Terrae –, base para possibilitar e sustentar todos os demais direitos pessoais e sociais.
Dois países latino-americanos, o Equador e a Bolívia, fundaram um verdadeiro constitucionalismo ecológico; por isso estão à frente de qualquer outro país dito “desenvolvido”.
A Constituição de Montecristi, da República do Equador (datada de 2008), diz explicitamente em seu preâmbulo: “Celebramos a natureza, a Pacha Mama, da qual somos parte e que é vital para nossa existência”. Em seguida enfatiza que a República se propõe construir “uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e em harmonia com a natureza, para alcançar o bien vivir, o sumac kawsay (o viver pleno)”. No artigo 71 do capítulo VII dispõe: “a natureza ou a Pachamama, donde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência, a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos; toda pessoa, comunidade, povo ou nacionalidade poderá exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da natureza. Só o Estado incentivará as pessoas naturais e jurídicas, e aos coletivos, para que protejam a natureza e promoverá o respeito a todos os elementos que formam um ecossistema”.
Comovedoras são as palavras do preâmbulo da Constituição Política do Estado boliviano, aprovada em 2009: “Cumprindo o mandato de nossos povos, com a fortaleza de nossa Pachamama e graças a Deus, refundamos a Bolívia”. O artigo 33 prescreve: “as pessoas têm o direito a um meio ambiente saudável, protegido e equilibrado. O exercício deste direito deve permitir aos indivíduos e às coletividades das presentes e futuras gerações, incluídos outros seres vivos a desenvolver-se de maneira normal e permanente”. O artigo 34 dispõe: “qualquer pessoa, a título individual ou em representação de uma coletividade, está facultada a exercer ações legais em defesa do meio ambiente”.
Aqui temos um verdadeiro constitucionalismo ecológico que ganhou corpo e letra nas respectivas Constituições. Tais visões são antecipatórias daquilo que deverá ser para todas as constituições futuras da humanidade. Somente com tal mente e disposição é que garantiremos um destino feliz neste planeta.
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Constitucionalismo ecológico na América Latina. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU