21 Março 2022
"No campo da política, o que incumbe é manifestar a recusa e sempre, sempre, agir para romper com toda forma imoral de vitupério que afronte a dignidade civil. É o que os indígenas estão fazendo. Se, ao fim e ao cabo, baldas as suas impugnações, restará o raio fulminante da História e da Justiça", escreve José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), em artigo publicado por Brasil Popular, 18-03-2022.
Segundo Suetônio na sua biografia de Calígula, Incitato, cavalo que o imperador fez Senador e pretendia que fosse Cônsul, tinha criados pessoais, era enfeitado com um colar de pedras preciosas e dormia no meio de mantas de cor púrpura (a cor púrpura era destinada somente aos trajes imperiais, ou seja, era um monopólio real), (cf. disponível aqui).
Não difere na observação o relato de Sêneca relativamente às idiossincrasias de um dos “Césares Loucos”, oferecendo bases para estudos, no contemporâneo, que desnudam o complexo e ambíguo sistema de comunicação entre os que exercem poderes despóticos e as coortes que os sustentam. No caso de Calígula e o incidente de honraria a seu cavalo, o permitir trazer à cena a questão central dessa comunicação que muitas vezes se mantêm por conta de adulação obsequiosa. De certo modo, expectativas de um contexto em que devem operar (“ao confirmar legalmente e honrar os respectivos titulares do poder, para sublinhar sua própria e contínua importância”) e, ao mesmo tempo reforçar sua impotência (cf. Aloys Winterling, Loucura imperial na Roma antiga – disponível aqui).
Representou-se assim, para a opinião mais crítica do País o ato do ministro da Justiça que concedeu a Medalha do Mérito Indigenista ao Presidente da República e a um rol de ministros e dirigentes de organismos ligados ao sistema de proteção aos povos indígenas "como reconhecimento pelos serviços relevantes em caráter altruísticos, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas".
Para essa opinião crítica, o ato soa a escárnio, pois, como é sabido, na pauta do Presidente da República está a defesa da exploração de minério em terras demarcadas; o incentivo à propagação de agrotóxicos na agricultura incluindo terras indígenas. Ele já foi denunciado duas vezes pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) por sua “política anti-indígena”.
Matéria do site UOL (disponível aqui), a propósito dessa outorga, dá conta de ação direta de apoio a garimpeiros, quando o Presidente publicou decreto que cria o Pró-Mape. Na prática, uma ação para apoiar a lavra garimpeira, principalmente na região amazônica, uma prática que é majoritariamente marcada pela extração ilegal de ouro e pedras preciosas.
No ano passado a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil apresentou uma queixa ao TPI (Tribunal Penal Internacional) por crime de genocídio e crimes contra a humanidade contra os povos indígenas. Uma segunda denúncia foi submetida contra o Presidente após avanço do desmatamento e da invasão de terras indígenas por garimpeiros.
Na petição da APIB, a entidade e as organizações subscritoras da denúncia ainda apontam para a alta taxa de mortalidade entre os indígenas durante a pandemia da Covid-19, com base em fatos revelados pela CPI da Pandemia.
Por isso, as Organizações Indígenas e seus aliados imediatamente se movimentaram para adotar medidas de recusa ao ato do ministro da Justiça caracterizado como verdadeiro escárnio e desvio de finalidade.
No campo da política, o que incumbe é manifestar a recusa e sempre, sempre agir para romper com toda forma imoral de vitupério que afronte a dignidade civil. É o que os indígenas estão fazendo. Se, ao fim e ao cabo, baldas as suas impugnações, restará o raio fulminante da História e da Justiça.
Todos conhecemos o fim trágico dos césares insanos e de muitos de seus bajuladores. Baste a evidência da morte de Herodes Agripa I, feito tetrarca da Judéia, por Calígula, em gesto de resposta a sua descarada bajulação. Temos o registro histórico de Josefo (Antiguidades, XIX, 7.2), de sua morte em seguida aos eventos de louvação ao César, em “ímpia bajulação”. Como está também no fim do capítulo 12, do livro de Atos, no relato de Lucas: “Herodes, vestido de trajo real, assentado no trono, dirigindo-lhes a palavra; e o povo clamava: É voz de um deus e não de homem! No mesmo instante, um anjo do Senhor o feriu, por ele não haver dado glória a Deus; e, comido de vermes, expirou” (Atos 12:19-23).
No dia 31 de março, quinta-feira, às 17h30, o Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Júnior, ministrará a conferência Direitos fundamentais e a Constituição da Terra. A atividade é gratuita e integra o IHU ideias, espaço de discussão, análise e avaliação de questões que se constituem em grandes desafios de nossa época.
Direitos fundamentais e a Constituição da Terra
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Calígula, Incitato e o Escárnio da Bajulação: A Medalha do Mérito Indigenista a Bolsonaro et Caterva. Artigo de José Geraldo de Sousa Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU